Cada obra é sempre uma resposta às deter- minações de um corpo e às determinações de um mundo. Depois de três anos de pandemia seguidos de uma guerra na Europa, o mundo impõe-nos a sua desfiguração, as suas tragédias sucessivas, o seu enlouquecimento. As palavras e as imagens de pensamento que me ocorreram durante o longo período da composição foram: abismo,
Abgrund (abismo ou abissal), um chão (grund) arrancado bruscamente, um temor latente, um obscuro particular.
Durante o segundo confinamento da pan- demia, em 2021, encontrei refúgio e abrigo no estudo de algumas obras compostas nos anos 60 e 70. As razões de uma tal escolha são-me desconhecidas. Planaltos sonoros, manchas, texturas. Desenhos. Filtros. Uma busca de modos de expressão que não me têm sido habituais. Constituí um mapa de desenhos: massas sonoras, turbulências, clusters, quartos de tom usados de forma dispersa. Compor é pôr com.
Os elementos musicais, agrestes, são tanto compostos como me compõem a mim, numa dialéctica misteriosa. Robert Schumann passava longas horas, durante os seus últimos meses, a olhar um atlas, à procura de nomes de lugares para transcrever, diz-nos Clara. Talvez no estado de espanto e perplexidade que lhe restava. A leitura dessa descrição e das suas cartas marca igualmente a obra.
Oscuro. Um mapa/ atlas.
Oscuro foi encomendada pela Casa da Música e é dedicada a
Carlos Caires e
Luís Tinoco. Agradeço à Casa da Música e ao seu director artístico António Jorge Pacheco.
António Pinho Vargas · Folha de Sala · Casa da Música · 15/10/2022