Entrevista a Sara Carvalho / Interview with Sara Carvalho
2004/Jul/06
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A tese de doutoramento / Solos I e Solos
II
A tese é um fólio com 12 obras, todas elas para agrupamentos
muito diferentes – mas tudo música acústica, não
tenho electroacústica. E são 12 obras que vão desde agrupamentos
grandes, como uma peça orquestral, até peças solo. O
doutoramento tem quatro peças solo que foram escritas em anos seguidos
– isto é uma ideia que eu tenho mantido, que acho que é
interessante. Portanto, tens o Solos I, que foi escrito em Fevereiro
de 1997, depois tens os Solos II, que foram escritos no Verão
do ano seguinte, o Solos III, em Agosto de 1999, e por aí
adiante. De certa forma, o livro dos solos é quase como um percurso
daquilo que eu fazia e daquilo que eu faço neste momento, uma vez que
tenho uma peça nova escrita todos os anos. O primeiro Solos
foi escrito a seguir ao Quarteto de Cordas e os primeiros três
minutos estão cheios de regras. O primeiro andamento do quarteto acaba
com um pequeno solo de violino, quase para rebentar com aquele esquema todo,
e eu pensei: “Não, eu preciso de continuar este solo noutro sítio
qualquer. Aqui não há espaço mas eu preciso de o continuar
intuitivamente”. E o Solos I foi a primeira peça em
que utilizei material do quarteto – eu tinha desenvolvido esse material
demasiadamente e então quis que o Solos I fosse como que uma
ampliação, mas de uma forma mais livre. Mesmo assim, as frases
são todas controladas, há uma frase que vai diminuindo…
portanto, há muitas regras! Os Solos II, no ano a seguir,
continuam a ser uma obra bastante estruturada, na qual os andamentos e as
modificações metronómicas se vão alterando –
imagina que começas com uma semínima igual a 52 e tens uma quintina,
depois passas a ter uma semínima de base 60 com uma tercina. O objectivo
era de grande virtuosismo, a obra foi escrita para o Pedro Carneiro…
Solos III
O Jorge Salgado Correia pediu-me para escrever uma obra para flauta, e queria
que eu utilizasse as quatro flautas. Foi aí que eu tive que resolver
uns problemas complicados, mas, ao mesmo tempo, bastante interessantes até.
Foi preciso pensar como é que eu poderia utilizar as quatro flautas
sem que houvesse aquela coisa de “instrumentista pega, toca, pousa,
vinte segundos depois volta a tocar…”. Ainda por cima ele tem
que aquecer um bocadinho a flauta, todas essas coisas para aquilo sair bem,
e então a solução que achei foi fazer da obra uma peça
teatral, em que o instrumentista tem que declamar um texto. Ele toca parte
do texto – toca literalmente, aquilo foi ajustado e tudo – e depois
também diz o texto. No fundo, é a palavra feita música,
literalmente. Havia também uma tabela que eu construí –
o A seria o Lá, o A não sei quantos seria o Lá quarto
de tom… Claro que isto depois não ficou literalmente assim, porque
os resultados podem ser demasiado indeterminados para resultarem de alguma
forma interessante. Portanto, eu depois ajeitei a coisa conforme fui necessitando…
Se as pessoas quiserem utilizar essa tabela, se calhar vão ver que
as palavras saem um bocadinho ao lado. Mas era a intenção da
frase – eu fiz essa equivalência de fonemas e depois tentei ajustar
o sentido da palavra a esse mesmo contexto. Pensei na forma como o próprio
gesto cabe dentro do texto, no fundo. Eu precisava de liberdade para compor,
as coisas não podiam ser só delinear uma estratégia a
nível de “ok, tenho aqui os meus esquemas todos, isto está
bem pensado, pensei nestes acordes, nestas harmonias, nestes ritmos e isto
agora vai sair tudo direitinho, um bocadinho à moda do serialismo integral”.
Eles têm aquelas coisas todas e há coisas que resultam bem –
com sorte – e há outras que resultam pior – com um bocado
mais de azar – mas eu cheguei à conclusão que não
conseguia trabalhar assim. Isto porque a ideia musical que eu tinha não
era transmitida, estava próximo mas não era exactamente aquilo.
A ideia resultava como embrião, mas depois o embrião teria que
crescer de uma forma um bocadinho diferente.
Solos IV, V e VI
Chegando aos Solos IV, no final do meu doutoramento, as coisas já
tinham mudado. Essa foi uma obra que eu trabalhei a pensar já na ópera,
no Musical Theatre – nem sei muito bem como é que hei-de traduzir
para português… Teatro Musical ou Musical-Teatro…
O meu problema é que aparece o teatro primeiro, e o meu objectivo é
que apareça a música primeiro – por isso é que
eu gosto do Musical Theatre, porque aparece em primeiro a música e
só depois é que aparece o teatro. É o teatro que trabalha
para a música e não a música que trabalha para o Teatro.
Portanto, de qualquer das formas, a música está em primeiro
plano. Mas se a obra fosse tocada sem ser no teatro também tinha que
funcionar, porque eu depois sou uma pessoa um bocado prática nessas
coisas. Penso: “Não, mas depois aquilo vai estar em CD, e se
não resulta? As pessoas não estão a ver, não é?”.
Mas é importante de facto tentar criar uma ligação directa
com o público, porque há o elemento teatral e porque há
alguma coisa que nos faz alargar a imaginação. Cada um depois
interpreta os movimentos da sua forma, o que dá um bocadinho de liberdade
ao intérprete para poder assimilar as coisas de uma forma mais pessoal
– não vais encontrar dois intérpretes a fazerem uma peça
de Musical Theatre da mesma maneira. Mas, simultaneamente, gosto que a coisa
depois ouvida, sem imagem, resulte também. Os Solos IV foram
um projecto para a tal peça de Musical Theatre, e foi com esse fim
que eu a compus. Tentei trabalhar um bocadinho a voz soprano e também
a forma como eu conseguiria pegar na história que quero vir a desenvolver,
a história de Perséfone.
O material já se começou a delinear
de uma forma muito mais simples, porque eu tenho quatro personagens dentro
da mesma obra e, portanto, tive que delinear espaços, tive que delinear
vestimentas, luzes. A peça acaba por se transformar e o esquema que
eu arranjei, musicalmente, de ela se transformar é com determinadas
harmonias, com determinados ritmos, com formas de cantar. Quando eu digo que
estão lá os esquemas, quero dizer que… É que eu
continuo a trabalhar com muitas regras e com muita organização!
Por isso é que eu digo que, se calhar, e só para falar do doutoramento,
o livro dos solos é muito interessante, porque mostra um percurso.
As pessoas têm-mas pedido, já tenho quem toque os solos para
harpa, para piano e para guitarra, e agora até vou começar um
outro, mas eu ainda não os libertei da minha pessoa. Acho que eles,
embora tenham sido construídos um por ano, continuam de certa forma
a seguir a vertente do teatro. Falta-lhes qualquer coisa… E até
essa coisa surgir eu não os vou entregar… Isto embora eles estejam
escritos e continuem a seguir um percurso parecido… É engraçado,
o primeiro e o segundo estão agrupados, o terceiro e o quarto estão
agrupados também de alguma maneira, o quinto e o sexto continuam essa
ideia, o oitavo ainda não sei exactamente o que é que vou fazer,
nem para que instrumento será – isto porque as pessoas se têm
irritado um bocado comigo porque eu não os tenho libertado: “Então
o Solo e tal? Nunca mais mo entregas!”. Eles estão prontos, mas
há qualquer coisa que falta – não sei se é na parte
teatral… Acho que se eles fossem gravados, a coisa resultava…
Mas há qualquer coisa ao nível da imagem… Preciso de falar
com alguém que saiba mais do que eu destes assuntos, há qualquer
coisa que está bloqueada ali… Mas a promessa é escrever
um por ano, e vai continuar assim!
O terceiro e o quarto são aquela experiência do teatro, mas o
quinto e o sexto continuam... Quando eu falo de agrupar os Solos,
falo a nível de trabalho, a nível de alguma coisa de harmonia,
de material, de alguma história que continua de um para o outro. De
certa forma, neste caso temos o mesmo tipo de drama no Solos V e
no Solos VI, mas é em relação a este drama que
não estou muito satisfeita. Por isso é que eu gostava de não
me exceder muito e esperar que a coisa surgisse – provavelmente até
podíamos gravar este vídeo daqui a dois anos e eu teria então
algumas soluções diferentes, porque no fundo isto é sempre
uma procura… Estou tão satisfeita com os primeiros quatro! Gostava
que isto continuasse a dar-me algum prazer e se eu estou com o quinto e com
o sexto é porque lhes falta qualquer coisa. Eu não sei muito
bem o que é ainda – provavelmente quando os largar vão
ser quatro ou cinco estreias seguidas, não sei…
Squashed Fairies, Máscara, Blows Hot and
Cold
Eu não começo uma obra até descobrir o título
– se tem uma história, tem que ter um título, não
é? Ou, mesmo que não seja o título chapado, mas é
algo que me leva a fazer alguma coisa relacionada. No Squashed Fairies,
por exemplo, o título estava lá mesmo antes de eu escrever uma
nota, portanto isso significa que, quando eu descubro o título, a obra
está praticamente pronta. Depois é só aquele trabalho
de pôr as notinhas, de orquestrar e de fazer as coisas. Todas as obras
têm uma história… A Máscara é sobre
as diferentes máscaras que as pessoas colocam para lidarem umas com
as outras. O Blows Hot and Cold é o título de um poster
do Dexter Gordon, onde ele fuma um cigarro. Estava uma vez a olhar para esse
poster, que é a preto e branco e muito bonito, e lembrei-me: “eh
pá, ele está assim com um ar pensativo, mas eu vou é
arranjar uma história sobre o que o cigarro está a pensar, não
o Dexter Gordon”. Isto porque realmente os cigarros têm uma duração…
Eu na altura fumava, agora não fumo… Mas pensei que seria interessante
fazer uma peça com a duração de um cigarro, que é
mais ou menos três minutos e meio. O segundo andamento do quarteto veio
a ter esses três minutos e meio – lá vêm as regras!
Portanto, no fundo, Blows Hot and Cold é a história
de um cigarro! Claro que é uma metáfora, evidentemente, mas
falo do inalar e do expirar, do fumo, dos momentos de pausa, enquanto a pessoa
conversa, com o cigarro a arder lentamente… Aquelas coisas são
quase programáticas. Claro que as pessoas não percebem nada
que é a história de um cigarro, não é? Mas eu
agora não fumo, já deixei porque é um vício terrível…
O Squashed Fairies é um livro muito engraçado. É
um livro sobre fadas no mundo imaginário, e fala duma miúda
que diz que apanha fadas entre as páginas do seu diário. A miúda
escreve com muitos erros, e isso foi o ponto de partida. No fundo, são
três cenas, uma introdução e um prólogo, que representam
o apanhar dessas fadas pela miúda. É apenas isso, uma visão
musical daquilo que ela fazia na visão escrita: "Nanny, today
I caught a fairy!”. É muito giro, os meus filhos adoram o livro,
e eu achei que seria interessante. Orquestralmente, era um piano, uma harpa
e um quarteto de cordas, e achei que aquele mundo etéreo resultava
bastante bem dessa forma.
Notas de programa como aproximação
ao público
Geralmente não me interessa que as pessoas percebam os textos que uso
nas obras – eu dou-lhes um imaginário. Isto porque as minhas
notas de programa são um bocadinho surrealistas, não é?
Dou-lhes uma frase, ou duas, ou três, mas nunca falo sobre como é
que construí a obra – senão, teria de partir do princípio
que o ouvinte sabia música, e eu tento sempre escrever as minhas notas
de programa para um público leigo a nível analítico.
Acho que deve ser assim, porque se queremos disseminar este tipo de música
e fazer com que toda a gente o ouça, temos que dar às pessoas
algo com que se identifiquem de alguma maneira. Aliás, o teatro é
óptimo, porque as pessoas têm mais referentes, por qualquer motivo.
Mas se tiveres uma obra orquestral, as pessoas ouvem, entram naquele mundo,
como no Squashed Fairies, e dizem: "ah, realmente, nota-se aquele
mundo etéreo das fadas…". No entanto, quando tens muito
teatro em palco, os instrumentistas podem passar um bocadinho por patetas
que andam por ali, e eu não queria que isso acontecesse. Se por um
lado isso não é suficientemente importante, por outro lado foi
precisamente esse o ponto gerador da minha história. Acho que tem que
haver um ponto de equilíbrio, especialmente em peças que são
muito teatrais, de forma a que possa comunicar com o público da melhor
forma possível. Mas no que toca a eles perceberem exactamente aquilo
que eu estou a fazer, prefiro ter uma nota de programa explicativa. Por acaso,
as pessoas normalmente perguntam: "Mas o que é que quer dizer
Squashed Fairies?" ou "Porque é que deste o nome
em inglês?". Aí eu respondo: "Olha, porque Fadas Esmagadas
é um título um bocado horroroso em português, e em inglês
sempre escapa a esse problema...”
Surya Namaskara
Há uma obra minha, o Surya Namaskara, que tem aspectos teatrais.
Há um ecrã enorme e por trás está a minha professora
de yoga, e ela faz o “surya namaskara” – é um conjunto
de posições do yoga que representam a saudação
ao Sol. São doze movimentos, e há também o grupo de música
de câmara. Estava tudo às escuras, e portanto foi um teatro de
sombras – a minha professora passou a obra a fazer apenas o “surya
namaskara”, porque eu pensei que seria interessante ter aquilo que gerou
a própria peça integrado nela. Não quer dizer que nós
não possamos só ouvir a peça mas também seria
interessante termos a saudação ao Sol ao vivo. Nesse caso, como
eu dizia, são doze movimentos, e esses doze movimentos correspondem
a doze secções da peça, cada uma quase como que respeitando
cada um dos movimentos que a Ana – a minha professora – apresentava.
São posições de permanência, essencialmente, e
claro que a música não pode ser permanente o tempo todo –
há mudanças, e quando as há a música sofre algumas
das mudanças. Mais uma vez é uma história, mas neste
caso não é uma história concreta… Tenho uma soprano
e ela vai dizendo o Mantra. Eu criei uma melodia minha e agora já nem
sei a melodia original, mas ela vai dizendo “Om Bhoor Bhuvassuvah /
Tat Saviturvarenyam” ao longo da peça, de forma cíclica.
Diz seis vezes o mantra, que está relacionado com o dia e com a noite
– temos as 24 horas do dia e a metade é representada pelos 12
meses do ano… É este género de coisas que me interessa
explorar, que se calhar nunca ninguém vai saber mas também não
me interessa que ninguém saiba. Para mim, é o que me faz escrever,
e é assim que eu consigo encontrar a minha própria coesão.
O Solos IV, por exemplo, tem a ver com a mudança das estações
e com as mudanças de ciclos – falo do próprio ciclo do
mantra, que corresponde ao ciclo do dia e ao ciclo do ano. Há coisas
que eu faço dentro da própria música, mas acho que provavelmente
não são perceptíveis. Também não são
para ser perceptíveis, basta que o sejam para mim ou se calhar até
para alguém que um dia mais tarde tenha algum interesse e queira olhar
para a peça com mais atenção.