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ENTREVISTA
 
Virgílio Melo
Entrevista a Virgílio Melo / Interview with Virgílio Melo
2005/May/27
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Formação

 

Para já há uma coisa que eu queria salientar é que de vez em quando há aí um discurso, que parece que quem se dedica a formas musicais mais complexas ou contemporâneas, fálo por uma espécie de obrigação militante.  Ouve-se muito dizer: “Ah, isso da música contemporânea não dá prazer”; não (!), a minha primeira experiência de música contemporânea e da música em geral foi da ordem da revelação e do prazer. A primeira vez que ouvi Webern foi assim um terramoto intelectual e sensorial. E portanto foi sempre assim muito nessa base. A minha formação foi, enfim, uma formação má.

A Constança Capdeville que é um daqueles fenómenos assim quase um pouco zen… não aprendi nada com ela, mas era daquelas pessoas que sabia abrir o que havia em cada pessoa - o não aprender neste caso é positivo. Ela nisso era uma pessoa absolutamente extraordinária, e sei que nestas entrevistas vais ter mais gente que diz exactamente a mesma coisa ou quase. Depois houve uma pessoa muito importante, o Santiago Kastner, porque contrariamente ao que se possa pensar não era exclusivamente – contrariamente a muitos musicólogos infelizmente– centrado na sua especialidade (a música ibérica). Ele foi a primeira pessoa, por muito que isso possa envergonhar outros professores, que me explicou com pés e cabeça o que era o dodecafonismo, por exemplo. Depois mais tarde surge obviamente aquela figura do Emmanuel Nunes que é para mim obviamente um dos nossos grandes compositores vivos, embora já não esteja na moda dizer isso, obviamente que teve influência com os seus seminários, e depois mais tarde estudei com ele. Depois a pessoa que, costumo dizer, me ensinou a  pensar, que é um senhor chamado Rémy Stricker, com quem estudei estética em Paris e que é o autor de vários livros muito meritórios… e pronto é uma formação assim um pouco – não gosto de dizer eclética porque o termo tem sido tão rebaixado (eclético quase igual a confusão mental) – mas é realmente muito eclética. Por um lado tenho um homem com uma certa dimensão humanística e ao mesmo tempo conservadora, como o Kastner, alguém simpaticamente anarquista como a Constança Capdeville  e alguém com o extremo rigor intelectual e sensibilidade do Emmanuel Nunes. E finalmente  alguém como o Rémy Stricker, completamente virado para a psicanálise mas que ao mesmo tempo era um excelente analista. Há um texto sobre o João Pedro Oliveira que escrevi que fala muito daquela imagem da abelha, que tenta fazer o seu mel de polens diferentes, é um pouco essa ideia.

 
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Perspectiva histórica, perspectiva estética

 

Há uma espécie de EU artístico o que terá a ver com o EU mítico ou com as profundezas do inconsciente ou (provavelmente com as duas coisas ao mesmo tempo), que é muitas vezes diferente do nosso eu social, psicológico, e até mesmo íntimo, – relacional, digamos. Portanto ás vezes eu próprio fico surpreendido com aquilo que sai, genericamente falando e confesso que às vezes é difícil ganhar distância e poder fazer um juízo, não estou a falar de um juízo de valor mas por exemplo há muitos compositores – o Boulez é um caso típico do tipo que sabe o que quer fazer e faz, e quando não consegue, sabe perfeitamente onde não conseguiu e passa para frente. Na minha opinião há outros que estão completamente iludidos, o que não tem nada a ver obviamente com o valor da música. Curiosamente um caso que eu acho desses é o Debussy, que muitas vezes diz coisas sobre a música – fiz isto, fiz aquilo – e depois provavelmente aquilo que fica e teve grandes consequências são coisas completamente diferentes. Portanto, no meu caso, eu acho que há uma coisa que no fundo é comum a muitos outros, uma certa tentativa dum lado – como hei-de dizer isto sem ser um bocado pretensioso – uma espécie dum lado sagrado da música, assim uma espécie de parênteses de eternidade no nosso tempo cronológico, no qual vivemos, e que no fundo eu acho que toda a boa música tem. E também há um aspecto que me preocupa que é a questão do silêncio, porque acho que é uma ficção extremamente real. No fundo o Cage tem razão quando diz que o silêncio não existe, e como muitas outras coisas que não existem, isto tem extrema importância. O que realmente é importante na vida são as coisas que não existem, o som também não existe. Eu tinha um professor de acústica que dizia  “o som não existe” – é uma perturbação de partículas, se a pessoa não estiver lá, se o sujeito não estiver lá não há som, há  simplesmente partículas a perturbarem-se e a mexerem-se – é uma coisa puramente mecânica. Isso é um dos aspectos. O outro aspecto – Digamos que eu assumo uma certa herança da música de 45 para cá, não sei como é que lhe hei-de chamar, não gosto de “vanguarda” porque é um termo militar e político absolutamente horripilante; chamar-lhe música contemporânea também não quer dizer nada, porque toda a música é contemporânea na sua época. – mas, essa geração a que costumo  chamar a “geração de ouro“ , que são os que agora estão lentamente a desaparecer (o Berio e o Nono já desapareceram, o Stockhausen e o Boulez já têm provectas idades), mas acho que naquelas gerações que começavam as suas actividades como compositores a seguir à Segunda Guerra, uma coisa que abriu portas, mesmo que hoje em dia esteja a ser recusado em certos aspectos, eu estou convencido que vai voltar porque as portas que ela abriu ainda não estão completamente exploradas, ao contrário do que se possa pensar. E aliás estou convencido de que os aspectos a que se chama pós-modernismo (vá-se lá saber o que isso é!) tem a ver com coisas que já se ouviram – um pouco como um super mercado de estilos, como costuma dizer o Alexandre Delgado; está já magnificamente realizado na sinfonia do Berio, em 68, e nesta data ainda não se falava em pós-modernismo  - há ali aspectos que vão voltar. Depois há uma preocupação minha que é: já reparei que tenho oscilado entre dois extremos: por um lado uma certa lógica, aquilo a que os franceses chamam especialmente a música espectral, o “processus”, uma coisa que se desenrola… não é bem desenrola… é unfold, se desdobra, calmamente nasce, vive e morre, e depois um discurso formal, no outro extremo, um discurso formal mais… moderno, um bocado como as experiências de Joyce, em literatura, um discurso mais fragmentário não imediatamente tautológico.

E no fundo a minha recusa – provavelmente também porque há uma dificuldade pessoal (muitas vezes essas coisas são assim) – é do discurso narrativo, clássico; não o recuso necessariamente nos outros… E acho que um aspecto que se está um bocado a perder é uma certa riqueza formal na música– coisas muito interessantes, sonoridades, mas há uma certa preguiça formal. Porque há aquela obsessão que há que atingir o público… Eu costumo ter uma “boutade”, que é: “O público só tem uma utilidade – é um material absorvente do ponto de vista acústico”. Porque eu acho que não há “público”, na realidade há “públicos”. E depois eu desconfio muito por natureza dos conceitos colectivos; há pessoas que são tocadas, ou que não são tocadas, mas “público”, não sei o que isso é.

 
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Comunicação

 

Eu acho que todos nós, quando compomos temos um auditor ideal, se não éramos  completamente autistas. Há uma perspectiva de comunicação.

O que eu acho é que se abusa muito destes termos. Eu agora estou a reler o Proust, prometi a mim próprio que fazia isso antes de morrer, e lá para o fim, no “ Temps Retrouvé“, há uma passagem admirável sobre a arte popular ou nacional que ele mete no mesmo saco, e com toda a razão (esse tipo de ideias que ele diz e que seriam ingénuas se não fossem perigosas). Diz ele, entre outras coisas, uma frase que sempre me marcou: que a arte a que chamam popular seria mais consumida pelos membros do “Jockey Club“ ou seja pela elite, do que pela confederação geral do trabalho. Acho que ele tem toda a razão; são muitas vezes coisas que vêm duma certa burguesia intelectual com má consciência. No fundo, o que torna a coisa por vezes ridícula é que se há a vontade que é um tanto infantil de ser apaparicado e de agradar a muita gente, então de qualquer maneira estamos no domínio errado e mais vale fazer outra coisa, jogar futebol ou fazer música ligeira, e portanto acho que o problema nem se devia estar a pôr.

 
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A questão do silêncio e a  perspectiva oriental

 

Eu gosto muito daquela frase Taoísta – bom, eu vou citar uma das milhares traduções possíveis do texto pois tu conheces os chineses e sabes bem – que é “O importante no vaso é o vazio que está no seu interior”. É uma ideia fundamental, que aliás se reencontra em muita tradição ocidental. Nós é que começámos a  ficar voltados de costas para a nossa tradição espiritual.  A certa altura “bateu-nos” o Oriente na cara e se calhar numa boa altura, por um lado para nos virarmos para a nossa, e por outro para ver que há coisas que são um bocadinho comuns. Quando há certo tipo de caminho, há certas intuições fundadoras, que podem aparecer no Oriente, no Ocidente, no Norte ou no Sul.

O Oriente são orientes, é uma coisa tão vasta! Mas há o descobrimento no Ocidente, até através da música tradicional desses países, que me marcou muito.  Quando eu cheguei ao Taira já era uma coisa que me havia marcado – o que aliás me marcou mais no Yoshihisa Taira foi o seu ouvido para sonoridades,  enfim coisas mais ocidentais. Bem, é preciso ver que o  Taira já vive em França há algum tempo; não sei a biografia dele, mas foi para lá  estudar com o André Jolivet que era um orientalista. Há algo que se nota no Taira que é música de um japonês, mas também se nota que é música dum japonês com formação Ocidental.

 [No caso da minha peça] Nó, é muito engraçado porque, sobretudo em França – devido à subtileza dos acentos agudos -  muita gente estava convencida que era uma referência ao teatro Nô. Não tem rigorosamente nada a ver, é Nó no sentido acústico do termo, portanto – o ponto de máxima pressão e mínimo movimento, essa é que é a ideia. Acho que é uma ideia que eu tinha em mim, mas em que também fui influenciado pelo Nunes, aquela espécie de imobilidade agitada não é… que a coisa está a avançar mas no fundo não avança tanto como isso, e há ali um paradoxo que é muito interessante.  Mas é curioso ver que realmente o Oriente marca, e ainda estava a pensar por exemplo no Boulez, há uma coisa que eu não gosto muito que são os lugares comuns, classificar as coisas, o serialismo não tem a ver com o Oriente, Stockausen teria a ver com o Oriente, que tem obviamente, mas o Boulez não tem nada a ver, quer dizer… ele pode mesmo escrever em textos que a guitarra do “Marteau  sans Maître “ é inspirada pelo Kôtô japonês que não interessa nada. E depois outra coisa também que há que tomar  distâncias, é com o que o próprio compositor escreve, que é interessante conhecer, é fascinante estudar, sobretudo com pessoas como Boulez que escrevem magnificamente, mas não é necessariamente a verdade evangélica muitas vezes sobre a própria obra. O exemplo máximo é o Debussy; eu nunca vi tanto disparate magnificamente escrito como nos escritos de Debussy . Isto para dizer que essa perspectiva do silêncio e duma certa maneira de abordar o tempo, marcou o Ocidente vindo pelo pensamento Oriental – por exemplo pelas músicas tradicionais  - mas acho que é um fenómeno geral. Numa determinada época está no ar do tempo, não foi particularmente com o Taira.

 
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Obras: “Embalos”

 

Há uma com a qual estou pessoalmente muito contente que é a única peça para uma orquestra, que se chama “Embalos”.  Por várias razões: porque há uma vertente que de vez em quando eu pratico e de que gosto muito, que são as chamadas  obras pedagógicas, obras portanto relativamente fáceis tecnicamente e em que o desafio é fazer algo de interessante musicalmente, sobretudo não abdicando da sua própria estética e personalidade. E com essa limitação é já em si um exercício muito engraçado. Os “Embalos” é uma obra sobre melodias populares portuguesas. Eu peguei em canções de embalar – daí o título da obra – e acho que peguei bem nisso, ela tem um certo impacto e acho que conciliei bem (que é assim uma das minhas utopias, enfim, a minha quadratura do círculo) a lógica do “processus”, a coisa que é contínua e que tem uma certa envolvente muito redondinha, sem grandes bicos, e um certo “éclatement”, uma certa dispersão do discurso;  e acho que a coisa saiu bem, e depois foi muito bem trabalhada, quer dizer, foi um prazer, foi uma encomenda da Escola Oficial  de Santo Tirso e foi tocada por uma orquestra que reunia gente de duas escolas profissionais, Santo Tirso e Viana do Castelo. E a qualidade do trabalho… eu fiquei absolutamente espantado. E devo dizer já agora – pronto, eu felizmente, uma coisa boa de uma pessoa passar os quarenta anos é que já não tem papas na língua – o que eu vejo recentemente numa iniciativa muito interessante que são aquelas obras de alunos que são tocadas pela Gulbenkian depois duma escolha em comité, ou de jovens compositores, a atitude dos instrumentistas da orquestra Gulbenkian… acho que nojenta… é estar a ser simpático, porque há assim uma espécie de frustrações acumuladas ao longo dos anos que eles descarregam sobre os pobres jovens, e geralmente os “maîtres” não têm autoridade, não sei porquê, de os mandar calar, porque eu acho que um profissional numa orquestra não tem que gostar ou não gostar da música, tem é  de tocar o que lá está. E felizmente o ensino da composição tem avançado o suficiente para que o que lá está  escrito seja perfeitamente possível em 99% dos casos. E uma notazita ou outra irrealizável numa partitura de milhares de notas, acho menos grave do que a quantidade de notas que os músicos desafinam em qualquer tipo de reportório por sistema, portanto eu queria deixar esta nota porque acho que é realmente  triste.  Esse tipo de atitude não se encontra em estudantes, curiosamente muitas vezes mudam de atitude quando entram no circuito profissional, e é um prazer trabalhar com essa gente. Ainda nos faz acreditar na música e no lado sagrado – porque isso também está ligado ao lado sagrado, de respeito; a música é para ser respeitada. Uma pessoa pode não gostar, nunca mais tornar a pegar naquilo, tudo bem, mas a primeira atitude é de respeito.

 
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“Circuitos”

 

Depois há uma obra - pronto, agora vou fazer a minha lisonja ao entrevistador – que foi estreada no Festival Música Viva 2000, foi o “Circuitos”, no Instituto Franco-Português… que tem um aspecto em que pela primeira vez tentei fazer uma forma aberta e já tive oportunidade de experimentar a obra  noutras combinações e a coisa funciona tão  bem ou tão mal como a primeira, - e acho que aí estão ligados vários aspectos. Creio que aí está conseguida  a ligação entre vários aspectos, o lado sagrado e simbólico, a utilização da electrónica em tempo real, que é uma expressão de que gosto. Acho imensa piada, porque não existe electrónica em tempo real como se sabe, há sempre um período de latência e a utilização de espaços, de temperamentos diferentes do temperamento igual – que é uma coisa que também me fascina. Que é pena a Organologia Ocidental andar um bocadinho afastada disso. Mas tu que és conhecedor da cultura Chinesa, eu agora descobri o Gujin – que é um instrumento que tem uns harmónicos absolutamente maravilhosos – ando absolutamente entusiasmado, agora tenho discos de Gujin, passo a vida a ouvir aquilo, mas realmente há uma, não porque eu acredite que há uma afinação mais natural que outra, o que eu acredito é que a paleta interválica devia – e já há obras muito interessantes que vão nesse sentido – deveria ser alargada a várias possibilidades. Seria um bocadinho como as várias tonalidades e a modulação na música tonal.

Bem, eu nos “Circuitos” utilizei os intervalos  da série dos harmónicos. Mas as flautas estão a tocar em temperamento igual, enfim, ou na aproximação prática ao temperamento igual, o que não é a mesma coisa. Depois, é um esquema de transposições com intervalos tirados da série dos harmónicos. Mas pronto, a série dos harmónicos se continuas podes tirar tudo, é entre proporções de números maiores ou menores. Agora para mim o aspecto que me interessa, é a questão de estabelecer vários campos harmónicos, vários temperamentos de uma maneira que, para já, seja prática e que não implique sempre o recurso à electrónica, e depois a passagem entre eles, portanto um esquema de modulação. O que é que há de comum -  aparentemente pelo menos há a oitava… e devo dizer que no fundo há resistências no campo da música erudita da criação, mas é uma coisa que, por exemplo, o ressuscitar da música antiga  - que é uma expressão absurda porque apanha catorze séculos de música ou lá quantos são - nos alertou para esse fenómeno. Os grupos, sei lá, que cantam música medieval em pitagórico, enfim aproximação de pitagórico, uns Mesotónicos e tudo isso… isso é uma coisa que já entrou nos nossos hábitos auditivos e até mesmo o público não cultivado já reconhece as diferentes cores; portanto nós é que não aceitamos no circuito; eu agora estou cada vez com mais vontade de compor para os instrumentos ditos antigos ou instrumentos exóticos porque realmente onde há mais resistência é no meio dos instrumentos ocidentais por razões puramente sociológicas e institucionais. E às vezes consegue-se coisas extraordinárias com uma flauta barroca ou um cravo – se fores dizer a um violino para ele tocar quatro tons, ele protesta; se disseres a um cravista – “olha, vou afinar isso de outra maneira”, ele até fica interessado. E até é capaz de te propor  “Ah, mas há o Werkmeister e tal!…”

 
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A utilização da electrónica: “Epiclesis”

 

Eu só posso responder peça a peça, embora possivelmente – mas eu deixo isto para os musicólogos do futuro – seja possível encontrar constantes.

Mas aquele aspecto um bocadinho… isto talvez seja injustiça, mas um bocadinho “francês” de estar ali a gozar o som, a certa altura cansa-me – mas cansa-me completamente. Como um bolo magnífico: à terceira fatia já estás enjoado. E portanto aquele ar um bocado Ircam – essa é outra coisa curiosa, há certos jornalistas que falam da estética Ircam: eles ainda não perceberam que a estética Ircam virou 180º de há uns anos a esta parte como tu sabes – tornou-se completamente GRM, tornou-se espectral, sensorial. Essa história do som/nota, essas oposições para mim são um bocado falaciosas, como na história da música. Eu acho que quando a pessoa está a trabalhar com uma série dodecafónica, se estiver bem composto, está a criar um som obviamente, e pode-se criar um som também com a série dos harmónicos.

Mas há um pensamento que tem a ver… eu não gosto de dizer que tem a ver com o serialismo, porque eu acho que o serialismo tem a ver com uma corrente do pensamento ocidental desde pelo menos o “Ma fin et mon commencement” do Machaut. Uma corrente abstracta, estruturante e sobretudo que é um pouco a ideia da planta original do Goethe: dali sai tudo. Nesse sentido, o pensamento serial vai estar sempre presente – hoje em dia chama-se serial a toda a música onde existe um intervalo dissonante com mais de uma oitava. Isto é pelo menos o que os jornalistas chamam de serial. E eu no outro dia encontrei uma peça que começa com o ré 2, e a seguir ataca o dó 4…e não digo o que vem a seguir, e pensei logo… aliás é ao contrario: está com o dó sustenido 4 e depois o ré 2; conclusão, é serial, pena é ser o princípio dos “Amores de Poeta” do Schumann! Mas pronto, entraria na classificação de serial no nosso eminente jornalista musical com certeza.

Mas voltando “á vaca fria”, existe um lado espectral nesta peça e também a utilização da modulação em anel. E depois há a minha costela pós-moderna (tenho um aluno que me diz que é a minha costela africana) que é de integração de músicas várias e tal – aspecto que eu voluntariamente não insisto no meu discurso porque acho que hoje em dia é uma maneira tão reles de vender qualquer coisa, que eu prefiro que se veja a qualidade dos bombons em vez da qualidade do papel que os está a embrulhar. A melhor que eu ouvi recentemente - não cito nomes - é que o Gershwin era um compositor “crossover” quando na verdade é um compositor de music-hall que sempre viveu obcecado em ser um compositor erudito. Se dissessem isso ao Gershwin ele tinha um ataque de coração que nunca mais se recompunha. Bom, há que ir para lá do discurso do marketing, ver realmente o que é que a música é e qual é o efeito. Mas na peça Epiclesis existe esse lado até porque tem a ver com a evocação do Espírito Santo, existe assim um lado ecuménico e um lado um pouco programático – tens canto gregoriano, tens uma espécie de “tabla” electrónica que referencialmente remete para a música clássica indiana – e tens  o apelo à oração muçulmana, aliás muito bem cantada por um tipo absolutamente genial do Yemen du Sul, bem como o instrumento dos aborígenes: o Didgeridoo.

 
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Obras para instrumentos de sopro: a preferência pelo clarinete

À partida há uma preferência pelos sopros, acho que são dos instrumentos mais humanos que existem. Não me venham cá com as cordas, são lindíssimas, mas é possível tocar cordas sem respirar musicalmente falando, o que é uma coisa um bocadinho assustadora. Nos sopros eu sei que também, com técnicas de respiração contínua e não sei quê, mas de qualquer maneira são efeitos especiais – como também é possível tocar piano sem respirar, temos também muitos exemplos por aí. Há assim um gosto pelos sopros e sobretudo pelos que têm palheta. Acho que têm uma sonoridade ao mesmo tempo muito humana, sincera, com um poder mágico, mais do que a flauta que às vezes soa um pouco pura demais acusticamente. Eu gosto muito de tudo o que tem palheta. E hás-de reparar que há por aí uma onda de composições para clarinete. Em certa altura, em certas circunstâncias… tem a ver com uma pessoa chamada Antonio Saiote, e que formou uma escola de clarinetes competentes e em relação aos quais uma pessoa ao menos tinha a certeza de ouvir uma versão bastante fiel do que tínhamos escrito. Contrariamente a outros instrumentos que aliás depois se desenvolveram. E pronto eu fiquei um bocado fiel ao clarinete, ao clarinete e à flauta, que é óbvio que são instrumentos ágeis e flexíveis. O oboé e o fagote, são fascinantes mas já não são tão ágeis. Depende da natureza acústica dos instrumentos. Acho que não há assim nenhum mistério.

 
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Actividade pedagógica e doutoramento

O lado pedagógico é fundamental, porque eu gosto realmente muito de ensinar. Obviamente que não é um compartimento estanque quanto ao lado do compositor – e muitas vezes já os alunos me deram ideias. Há desafios, quando tu tens de explicar as coisas, que te obrigam a explicá-las noutra perspectiva. Quer na música alheia, quer na tua própria.

Também tenho uns projectos analíticos (que estão a ser muito bem recebidos) mas isso é a ponta do iceberg, daquele animal mítico que atormenta a vida dos universitários portugueses chamado o doutoramento: “Não posso! Não posso ligar à minha mulher por causa do doutoramento! Não posso ligar aos meus filhos por causa do doutoramento. Não posso sair por causa do doutoramento…” Pronto, também estou nessa aventura mas tem a ver com o desenvolvimento de métodos analíticos que sejam aplicáveis a vários tipos de música, de várias épocas.

 
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Por uma nova qualidade de audição

Há duas coisas que eu gostava de dizer…eu tenho um lado um pouco apocalíptico, no sentido em que tenho fé em que isto vá dar uma grande volta, mas que vamos passar por umas catástrofes antes – e na música acho que estamos numa época um bocadinho… eu sei que a história não se repete, mas é um bocado parecido com a época por volta da morte de Bach e o estilo galante… “Ah, é interessante o que os professores e outros fizeram mas é muito complicado; vamos fazer umas coisinhas mais simples…”. Ora, eu acho isto terrível e na história da música há ali um época de passagem em vazio até aparecer o Mozart – existem uns tipos interessantes mas um bocado marginais. Creio que isto é uma coisa que realmente tem a ver com o lado espiritual porque eu acho que a audição... Se há coisa que tem o condão de me enraivecer é o dizerem que a música erudita não é interactiva – e aqui há uns anos, após o 25 de Abril, diziam que as pessoas não participavam. Como se uma audição inteligente não fosse dos actos mais participativos que existe! Eu nada tenho contra que se bata o pé, ou o rabo, ou outra coisa mas aquela ideia que a audição é uma coisa passiva enfurece-me. Algo que me toca muito por exemplo é o último Nono, o modo como ele se voltou para os termos da percepção, para forçar as pessoas a ouvir e que ele achava que era coisa de revolucionário – e eu sou partidário das suas ideias políticas e também acho. É preciso pôr as pessoas a saber ouvir e aí o sistema de ensino é muito responsável. E é muito responsável também por todo um frenético… as pessoas abusam do café, para não falar de outros excitantes (eu sou um adepto do café como sabes), e há aquela célebre história do tempo de atenção que os Americanos inventaram para a publicidade e qualquer dia vamos ter de estar a compor a forçar-nos para o tempo de atenção… Se fores conhecido és um místico, se não fores conhecido és um chato.

Portanto acho que centrarmo-nos na qualidade da audição, até como exercício quase de meditação é extremamente importante.

 

 
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