Entrevista conduzida por Miguel Azguime na Miso Music Portugal (Parede)
Transcrição, Redacção, Revisão: António Ferreira, Patrícia Ribeiro e Silva, Marta Catana
Para já há uma coisa que eu queria salientar é que de vez em
quando há aí um discurso, que parece que quem se dedica a formas musicais mais
complexas ou contemporâneas, fálo por uma espécie de obrigação militante.Ouve-se muito dizer: “Ah, isso da
música contemporânea não dá prazer”; não (!), a minha primeira experiência
de música contemporânea e da música em geral foi da ordem da revelação e do
prazer. A primeira vez que ouvi Webern foi assim um terramoto intelectual e
sensorial. E portanto foi sempre assim muito nessa base. A minha formação foi,
enfim, uma formação má.
A Constança Capdeville que é um daqueles fenómenos assim quase um
pouco zen… não aprendi nada com ela, mas era daquelas pessoas que sabia
abrir o que havia em cada pessoa - o não aprender neste caso é positivo. Ela
nisso era uma pessoa absolutamente extraordinária, e sei que nestas entrevistas
vais ter mais gente que diz exactamente a mesma coisa ou quase. Depois houve
uma pessoa muito importante, o Santiago Kastner, porque contrariamente ao que
se possa pensar não era exclusivamente – contrariamente a muitos musicólogos
infelizmente– centrado na sua especialidade (a música ibérica). Ele foi a
primeira pessoa, por muito que isso possa envergonhar outros professores, que
me explicou com pés e cabeça o que era o dodecafonismo, por exemplo. Depois
mais tarde surge obviamente aquela figura do Emmanuel Nunes que é para mim
obviamente um dos nossos grandes compositores vivos, embora já não esteja na
moda dizer isso, obviamente que teve influência com os seus seminários, e
depois mais tarde estudei com ele. Depois a pessoa que, costumo dizer, me
ensinou apensar, que é um senhor
chamado Rémy Stricker, com quem estudei estética em Paris e que é o autor de
vários livros muito meritórios… e pronto é uma formação assim um pouco – não
gosto de dizer eclética porque o termo tem sido tão rebaixado (eclético quase
igual a confusão mental) – mas é realmente muito eclética. Por um lado tenho um
homem com uma certa dimensão humanística e ao mesmo tempo conservadora, como o
Kastner, alguém simpaticamente anarquista como a Constança Capdevillee alguém com o extremo rigor
intelectual e sensibilidade do Emmanuel Nunes. E finalmentealguém como o Rémy Stricker,
completamente virado para a psicanálise mas que ao mesmo tempo era um excelente
analista. Há um texto sobre o João Pedro Oliveira que escrevi que fala muito
daquela imagem da abelha, que tenta fazer o seu mel de polens diferentes, é
um pouco essa ideia.
Há uma espécie de EU artístico o que
terá a ver com o EU mítico ou com as profundezas do inconsciente ou
(provavelmente com as duas coisas ao mesmo tempo), que é muitas vezes diferente
do nosso eu social, psicológico, e até mesmo íntimo, – relacional, digamos.
Portanto ás vezes eu próprio fico surpreendido com aquilo que sai,
genericamente falando e confesso que às vezes é difícil ganhar distância e
poder fazer um juízo, não estou a falar de um juízo de valor mas por exemplo há
muitos compositores – o Boulez é um caso típico do tipo que sabe o que quer
fazer e faz, e quando não consegue, sabe perfeitamente onde não conseguiu e
passa para frente. Na minha opinião há outros que estão completamente iludidos,
o que não tem nada a ver obviamente com o valor da música. Curiosamente um caso
que eu acho desses é o Debussy, que muitas vezes diz coisas sobre a música –
fiz isto, fiz aquilo – e depois provavelmente aquilo que fica e teve grandes
consequências são coisas completamente diferentes. Portanto, no meu caso, eu
acho que há uma coisa que no fundo é comum a muitos outros, uma certa tentativa
dum lado – como hei-de dizer isto sem ser um bocado pretensioso – uma espécie
dum lado sagrado da música, assim uma espécie de parênteses de eternidade no
nosso tempo cronológico, no qual vivemos, e que no fundo eu acho que toda a boa
música tem. E também há um aspecto que me preocupa que é a questão do silêncio,
porque acho que é uma ficção extremamente real. No fundo o Cage tem razão
quando diz que o silêncio não existe, e como muitas outras coisas que não
existem, isto tem extrema importância. O que realmente é importante na vida são
as coisas que não existem, o som também não existe. Eu tinha um professor de
acústica que dizia“o som não existe”
– é uma perturbação de partículas, se a pessoa não estiver lá, se o sujeito não
estiver lá não há som, hásimplesmente partículas a perturbarem-se e a mexerem-se – é uma coisa
puramente mecânica. Isso é um dos aspectos. O outro aspecto – Digamos que eu
assumo uma certa herança da música de 45 para cá, não sei como é que lhe hei-de
chamar, não gosto de “vanguarda” porque é um termo militar e político
absolutamente horripilante; chamar-lhe música contemporânea também não quer
dizer nada, porque toda a música é contemporânea na sua época. – mas, essa
geração a que costumochamar a
“geração de ouro“ , que são os que agora estão lentamente a desaparecer (o
Berio e o Nono já desapareceram, o Stockhausen e o Boulez já têm provectas
idades), mas acho que naquelas gerações que começavam as suas actividades como
compositores a seguir à Segunda Guerra, uma coisa que abriu portas, mesmo que
hoje em dia esteja a ser recusado em certos aspectos, eu estou convencido que
vai voltar porque as portas que ela abriu ainda não estão completamente
exploradas, ao contrário do que se possa pensar. E aliás estou convencido de
que os aspectos a que se chama pós-modernismo (vá-se lá saber o que isso é!)
tem a ver com coisas que já se ouviram – um pouco como um super mercado de estilos,
como costuma dizer o Alexandre Delgado; está já magnificamente realizado na
sinfonia do Berio, em 68, e nesta data ainda não se falava em
pós-modernismo- há ali aspectos
que vão voltar. Depois há uma preocupação minha que é: já reparei que tenho oscilado
entre dois extremos: por um lado uma certa lógica, aquilo a que os franceses
chamam especialmente a música espectral, o “processus”, uma coisa
que se desenrola… não é bem desenrola… é unfold, se desdobra,
calmamente nasce, vive e morre, e depois um discurso formal, no outro extremo,
um discurso formal mais… moderno, um bocado como as experiências de Joyce, em
literatura, um discurso mais fragmentário não imediatamente tautológico.
E no fundo a minha recusa –
provavelmente também porque há uma dificuldade pessoal (muitas vezes essas
coisas são assim) – é do discurso narrativo, clássico; não o recuso
necessariamente nos outros… E acho que um aspecto que se está um bocado a
perder é uma certa riqueza formal na música– coisas muito interessantes, sonoridades,
mas há uma certa preguiça formal. Porque há aquela obsessão que há que atingir
o público… Eu costumo ter uma “boutade”, que é: “O público só tem uma
utilidade – é um material absorvente do ponto de vista acústico”. Porque eu
acho que não há “público”, na realidade há “públicos”. E depois eu desconfio
muito por natureza dos conceitos colectivos; há pessoas que são tocadas, ou que
não são tocadas, mas “público”, não sei o que isso é.
Eu
acho que todos nós, quando compomos temos um auditor ideal, se não éramoscompletamente autistas. Há uma
perspectiva de comunicação.
O que eu acho é que se abusa muito
destes termos. Eu agora estou a reler o Proust, prometi a mim próprio que fazia
isso antes de morrer, e lá para o fim, no “ Temps Retrouvé“, há uma passagem
admirável sobre a arte popular ou nacional que ele mete no mesmo saco, e com
toda a razão (esse tipo de ideias que ele diz e que seriam ingénuas se não
fossem perigosas). Diz ele, entre outras coisas, uma frase que sempre me
marcou: que a arte a que chamam popular seria mais consumida pelos membros do “Jockey
Club“ ou seja pela elite, do que pela confederação geral do trabalho.
Acho que ele tem toda a razão; são muitas vezes coisas que vêm duma certa
burguesia intelectual com má consciência. No fundo, o que torna a coisa por
vezes ridícula é que se há a vontade que é um tanto infantil de ser apaparicado
e de agradar a muita gente, então de qualquer maneira estamos no domínio errado
e mais vale fazer outra coisa, jogar futebol ou fazer música ligeira, e
portanto acho que o problema nem se devia estar a pôr.
Eu gosto muito daquela frase Taoísta –
bom, eu vou citar uma das milhares traduções possíveis do texto pois tu
conheces os chineses e sabes bem – que é “O importante no vaso é o vazio que está no
seu interior”.
É uma ideia fundamental, que aliás se reencontra em muita tradição ocidental.
Nós é que começámos aficar
voltados de costas para a nossa tradição espiritual.A certa altura “bateu-nos” o Oriente na cara e se calhar
numa boa altura, por um lado para nos virarmos para a nossa, e por outro para
ver que há coisas que são um bocadinho comuns. Quando há certo tipo de caminho,
há certas intuições fundadoras, que podem aparecer no Oriente, no Ocidente, no
Norte ou no Sul.
O Oriente são orientes, é uma coisa
tão vasta! Mas há o descobrimento no Ocidente, até através da música
tradicional desses países, que me marcou muito.Quando eu cheguei ao Taira já era uma coisa que me havia
marcado – o que aliás me marcou mais no Yoshihisa Taira foi o seu ouvido para
sonoridades,enfim coisas mais
ocidentais. Bem, é preciso ver que o Taira já vive em França há algum tempo; não sei a biografia
dele, mas foi para láestudar com
o André Jolivet que era um orientalista. Há algo que se nota no Taira que é
música de um japonês, mas também se nota que é música dum japonês com formação
Ocidental.
[No caso da minha peça] Nó, é muito engraçado porque,
sobretudo em França – devido à subtileza dos acentos agudos -muita gente estava convencida que era
uma referência ao teatro Nô. Não tem rigorosamente nada a ver, é Nó no sentido
acústico do termo, portanto – o ponto de máxima pressão e mínimo movimento,
essa é que é a ideia. Acho que é uma ideia que eu tinha em mim, mas em que
também fui influenciado pelo Nunes, aquela espécie de imobilidade agitada não
é… que a coisa está a avançar mas no fundo não avança tanto como isso, e há ali
um paradoxo que é muito interessante.Mas é curioso ver que realmente o Oriente marca, e ainda estava a pensar
por exemplo no Boulez, há uma coisa que eu não gosto muito que são os lugares
comuns, classificar as coisas, o serialismo não tem a ver com o Oriente,
Stockausen teria a ver com o Oriente, que tem obviamente, mas o Boulez não tem
nada a ver, quer dizer… ele pode mesmo escrever em textos que a guitarra do
“Marteausans Maître “ é inspirada
pelo Kôtô japonês que não interessa nada.E depois outra coisa
também que há que tomardistâncias, é com o que o próprio compositor escreve, que é interessante
conhecer, é fascinante estudar, sobretudo com pessoas como Boulez que escrevem
magnificamente, mas não é necessariamente a verdade evangélica muitas vezes
sobre a própria obra. O exemplo máximo é o Debussy; eu nunca vi tanto disparate
magnificamente escrito como nos escritos de Debussy . Isto para dizer que essa
perspectiva do silêncio e duma certa maneira de abordar o tempo, marcou
o Ocidente vindo pelo pensamento Oriental – por exemplo pelas músicas
tradicionais- mas acho que é um
fenómeno geral. Numa determinada época está no ar do tempo, não foi
particularmente com o Taira.
Há uma com a qual estou pessoalmente
muito contente que é a única peça para uma orquestra, que se chama
“Embalos”.Por várias razões:
porque há uma vertente que de vez em quando eu pratico e de que gosto muito,
que são as chamadasobras
pedagógicas, obras portanto relativamente fáceis tecnicamente e em que o
desafio é fazer algo de interessante musicalmente, sobretudo não abdicando da sua
própria estética e personalidade. E com essa limitação é já em si um exercício
muito engraçado. Os “Embalos” é uma obra sobre melodias populares portuguesas.
Eu peguei em canções de embalar – daí o título da obra – e acho que peguei bem
nisso, ela tem um certo impacto e acho que conciliei bem (que é assim uma das
minhas utopias, enfim, a minha quadratura do círculo) a lógica do “processus”, a coisa que
é contínua e que tem uma certa envolvente muito redondinha, sem grandes bicos,
e um certo “éclatement”, uma certa dispersão do discurso;e acho que a coisa saiu bem, e depois
foi muito bem trabalhada, quer dizer, foi um prazer, foi uma encomenda da
Escola Oficialde Santo Tirso e
foi tocada por uma orquestra que reunia gente de duas escolas profissionais,
Santo Tirso e Viana do Castelo. E a qualidade do trabalho… eu fiquei
absolutamente espantado. E devo dizer já agora – pronto, eu felizmente, uma
coisa boa de uma pessoa passar os quarenta anos é que já não tem papas na
língua – o que eu vejo recentemente numa iniciativa muito interessante que são
aquelas obras de alunos que são tocadas pela Gulbenkian depois duma escolha em
comité, ou de jovens compositores, a atitude dos instrumentistas da orquestra
Gulbenkian… acho que nojenta… é estar a ser simpático, porque há assim uma
espécie de frustrações acumuladas ao longo dos anos que eles descarregam sobre
os pobres jovens, e geralmente os “maîtres” não têm autoridade,
não sei porquê, de os mandar calar, porque eu acho que um profissional numa
orquestra não tem que gostar ou não gostar da música, tem éde tocar o que lá está. E felizmente o
ensino da composição tem avançado o suficiente para que o que lá estáescrito seja perfeitamente possível em
99% dos casos. E uma notazita ou outra irrealizável numa partitura de milhares
de notas, acho menos grave do que a quantidade de notas que os músicos
desafinam em qualquer tipo de reportório por sistema, portanto eu queria deixar
esta nota porque acho que é realmentetriste.Esse tipo de
atitude não se encontra em estudantes, curiosamente muitas vezes mudam de
atitude quando entram no circuito profissional, e é um prazer trabalhar com
essa gente. Ainda nos faz acreditar na música e no lado sagrado – porque isso
também está ligado ao lado sagrado, de respeito; a música é para ser
respeitada. Uma pessoa pode não gostar, nunca mais tornar a pegar naquilo, tudo
bem, mas a primeira atitude é de respeito.
Depois há uma obra - pronto, agora vou fazer a minha
lisonja ao entrevistador – que foi estreada no Festival Música Viva 2000, foi o
“Circuitos”, no Instituto Franco-Português… que tem um aspecto em que pela
primeira vez tentei fazer uma forma aberta e já tive
oportunidade de experimentar a obranoutras combinações e a coisa funciona tãobem ou tão mal como a primeira, - e acho que aí estão
ligados vários aspectos. Creio que aí está conseguidaa ligação entre vários aspectos, o lado sagrado e simbólico,
a utilização da electrónica em tempo real, que é uma expressão de que gosto.
Acho imensa piada, porque não existe electrónica em tempo real como se sabe, há
sempre um período de latência e a
utilização de espaços, de temperamentos diferentes do temperamento igual – que
é uma coisa que também me fascina. Que é pena a Organologia Ocidental andar um
bocadinho afastada disso. Mas tu que és conhecedor da cultura Chinesa, eu agora
descobri o Gujin – que é um instrumento
que tem uns harmónicos absolutamente maravilhosos – ando absolutamente
entusiasmado, agora tenho discos de Gujin,
passo a vida a ouvir aquilo, mas realmente há uma, não porque eu acredite que
há uma afinação mais natural que outra, o que eu acredito é que a paleta
interválica devia – e já há obras muito interessantes que vão nesse sentido –
deveria ser alargada a várias possibilidades. Seria um bocadinho como as várias
tonalidades e a modulação na música tonal.
… Bem, eu nos “Circuitos” utilizei os intervalosda série dos harmónicos. Mas as flautas
estão a tocar em temperamento igual, enfim, ou na aproximação prática ao
temperamento igual, o que não é a mesma coisa. Depois, é um esquema de
transposições com intervalos tirados da série dos harmónicos. Mas pronto, a
série dos harmónicos se continuas podes tirar tudo, é entre proporções de
números maiores ou menores. Agora para mim o aspecto que me interessa, é a
questão de estabelecer vários campos harmónicos, vários temperamentos de uma
maneira que, para já, seja prática e que não implique sempre o recurso à
electrónica, e depois a passagem entre eles, portanto um esquema de modulação.
O que é que há de comum -aparentemente pelo menos há a oitava… e devo dizer que no fundo há
resistências no campo da música erudita da criação, mas é uma coisa que, por
exemplo, o ressuscitar da música antiga- que é uma expressão absurda porque apanha catorze séculos de música ou lá quantos são - nos alertou para esse fenómeno.
Os grupos, sei lá, que cantam música medieval em pitagórico, enfim aproximação
de pitagórico, uns Mesotónicos e tudo isso…
isso é uma coisa que já entrou nos nossos hábitos auditivos e até mesmo o
público não cultivado já reconhece as diferentes cores; portanto nós é que não
aceitamos no circuito; eu agora estou cada vez com mais vontade de compor para
os instrumentos ditos antigos ou instrumentos exóticos porque realmente onde há
mais resistência é no meio dos instrumentos ocidentais por razões puramente
sociológicas e institucionais. E às vezes consegue-se coisas extraordinárias
com uma flauta barroca ou um cravo – se fores dizer a um violino para ele tocar
quatro tons, ele protesta; se disseres a um cravista – “olha, vou afinar isso
de outra maneira”, ele até fica interessado. E até é capaz de te propor“Ah, mas há o
Werkmeister e tal!…”
Eu
só posso responder peça a peça, embora possivelmente – mas eu deixo isto para
os musicólogos do futuro – seja possível encontrar constantes.
Mas aquele aspecto um bocadinho… isto talvez seja
injustiça, mas um bocadinho “francês” de estar ali a gozar o som, a certa
altura cansa-me – mas cansa-me completamente. Como um bolo magnífico: à
terceira fatia já estás enjoado. E portanto aquele ar um bocado Ircam – essa é outra coisa
curiosa, há certos jornalistas que falam da estética Ircam: eles ainda não perceberam
que a estética Ircam virou 180º de há uns anos a esta parte como tu sabes –
tornou-se completamente GRM, tornou-se espectral, sensorial. Essa história do
som/nota, essas oposições para mim são um bocado falaciosas, como na história
da música. Eu acho que quando a pessoa está a trabalhar com uma série dodecafónica,
se estiver bem composto, está a criar um som obviamente, e pode-se criar um som
também com a série dos harmónicos.
Mas há um pensamento que tem a ver… eu
não gosto de dizer que tem a ver com o serialismo, porque eu acho que o
serialismo tem a ver com uma corrente do pensamento ocidental desde pelo menos o “Ma fin et mon
commencement” do Machaut.Uma corrente
abstracta, estruturante e sobretudo que é um pouco a ideia da planta original
do Goethe: dali sai tudo. Nesse sentido, o pensamento serial vai estar sempre
presente – hoje em dia chama-se serial a toda a música onde existe um intervalo
dissonante com mais de uma oitava. Isto é pelo menos o que os jornalistas
chamam de serial. E eu no outro dia encontrei uma peça que começa com o ré 2, e
a seguir ataca o dó 4…e não digo o que vem a seguir, e pensei logo… aliás é ao
contrario: está com o dó sustenido 4 e depois o ré 2; conclusão, é serial, pena
é ser o princípio dos “Amores de Poeta” do Schumann!
Mas pronto, entraria na classificação de serial no nosso eminente jornalista
musical com certeza.
Mas voltando “á vaca fria”, existe um lado espectral
nesta peça e também a utilização da modulação em anel. E depois há a minha
costela pós-moderna (tenho um aluno que me diz que é
a minha costela africana) que é de integração de músicas várias e tal – aspecto
que eu voluntariamente não insisto no meu discurso porque acho que hoje em dia
é uma maneira tão reles de vender qualquer coisa, que eu prefiro que se veja a
qualidade dos bombons em vez da qualidade do papel que os está a embrulhar. A
melhor que eu ouvi recentemente - não cito nomes - é que o Gershwin era um
compositor “crossover” quando na
verdade é um compositor de music-hall
que sempre viveu obcecado em ser um compositor erudito. Se dissessem isso ao
Gershwin ele tinha um ataque de coração que nunca mais se recompunha. Bom, há
que ir para lá do discurso do marketing, ver realmente o que é que a música é e
qual é o efeito. Mas na peça Epiclesis existe
esse lado até porque tem a ver com a evocação do Espírito Santo, existe assim
um lado ecuménico e um lado um pouco programático – tens canto gregoriano, tens
uma espécie de “tabla” electrónica que referencialmente remete para a música
clássica indiana – e tenso apelo
à oração muçulmana, aliás muito bem cantada por um tipo absolutamente genial do
Yemen du Sul, bem como o instrumento dos aborígenes: o Didgeridoo.
Obras para
instrumentos de sopro: a preferência pelo clarinete
À partida há uma preferência pelos sopros, acho que
são dos instrumentos mais humanos que existem. Não me venham cá com as cordas,
são lindíssimas, mas é possível tocar cordas sem respirar musicalmente falando,
o que é uma coisa um bocadinho assustadora. Nos sopros eu sei que também, com
técnicas de respiração contínua e não sei quê, mas de qualquer maneira são
efeitos especiais – como também é possível tocar piano sem respirar, temos
também muitos exemplos por aí. Há assim um gosto pelos sopros e sobretudo pelos
que têm palheta. Acho que têm uma sonoridade ao mesmo tempo muito humana, sincera,
com um poder mágico, mais do que a flauta que às vezes soa um pouco pura demais
acusticamente. Eu gosto muito de tudo o que tem palheta. E hás-de reparar que
há por aí uma onda de composições para clarinete. Em certa altura, em certas
circunstâncias… tem a ver com uma pessoa chamada Antonio Saiote, e que formou
uma escola de clarinetes competentes e em relação aos quais uma pessoa ao menos
tinha a certeza de ouvir uma versão bastante fiel do que tínhamos escrito.
Contrariamente a outros instrumentos que aliás depois se desenvolveram. E
pronto eu fiquei um bocado fiel ao clarinete, ao clarinete e à flauta, que é
óbvio que são instrumentos ágeis e flexíveis. O oboé e o fagote, são
fascinantes mas já não são tão ágeis. Depende da natureza acústica dos instrumentos.
Acho que não há assim nenhum mistério.
O lado pedagógico é fundamental, porque eu gosto
realmente muito de ensinar. Obviamente que não é um compartimento estanque
quanto ao lado do compositor – e muitas vezes já os alunos me deram ideias. Há
desafios, quando tu tens de explicar as coisas, que te obrigam a explicá-las
noutra perspectiva. Quer na música alheia, quer na tua própria.
Também tenho uns projectos analíticos (que estão a ser muito
bem recebidos) mas isso é a ponta do iceberg, daquele animal mítico que
atormenta a vida dos universitários portugueses chamado o doutoramento: “Não posso! Não posso ligar
à minha mulher por causa do doutoramento! Não posso ligar aos meus filhos por
causa do doutoramento. Não posso sair por causa do doutoramento…” Pronto,
também estou nessa aventura mas tem a ver com o desenvolvimento de métodos
analíticos que sejam aplicáveis a vários tipos de música, de várias épocas.
Há duas coisas que eu gostava de dizer…eu tenho um lado um
pouco apocalíptico, no sentido em que tenho fé em que isto vá dar uma grande
volta, mas que vamos passar por umas catástrofes antes – e na música acho que
estamos numa época um bocadinho… eu sei que a história não se repete, mas é um
bocado parecido com a época por volta da morte de Bach e o estilo galante… “Ah, é interessante o que
os professores e outros fizeram mas é muito complicado; vamos fazer umas
coisinhas mais simples…”. Ora, eu acho isto terrível e na história
da música há ali um época de passagem em vazio até aparecer o Mozart – existem
uns tipos interessantes mas um bocado marginais. Creio que isto é uma coisa que
realmente tem a ver com o lado espiritual porque eu acho que a audição... Se há
coisa que tem o condão de me enraivecer é o dizerem que a música erudita não é
interactiva – e aqui há uns anos, após o 25 de Abril, diziam que as pessoas não
participavam. Como se uma audição inteligente não fosse dos actos mais
participativos que existe! Eu nada tenho contra que se bata o pé, ou o rabo, ou
outra coisa mas aquela ideia que a audição é uma coisa passiva enfurece-me.
Algo que me toca muito por exemplo é o último Nono,
o modo como ele se voltou para os termos da percepção, para forçar as pessoas a
ouvir e que ele achava que era coisa de revolucionário – e eu sou partidário
das suas ideias políticas e também acho. É preciso pôr as pessoas a saber ouvir
e aí o sistema de ensino é muito responsável. E é muito responsável também por
todo um frenético… as pessoas abusam do café, para não falar de outros
excitantes (eu sou um adepto do café como sabes), e há aquela célebre história
do tempo de atenção que os Americanos inventaram para a publicidade e qualquer
dia vamos ter de estar a compor a forçar-nos para o tempo de atenção… Se fores
conhecido és um místico, se não fores conhecido és um chato.
Portanto acho que centrarmo-nos na qualidade da audição, até
como exercício quase de meditação é extremamente importante.