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ENTREVISTA
 
Alexandre Delgado
Entrevista a Alexandre Delgado / Interview with Alexandre Delgado
2004/Jul/15
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Personalidades importantes na primeira formação musical

A mais importante, que de facto decidiu essa mudança na minha vida e que fez com que eu fosse músico, foi uma professora do ciclo preparatório - a pianista Fátima Fraga. Foi ela que chamou o meu pai e disse que era um crime eu não estar a aprender música e fui então para a Fundação Musical dos Amigos das Crianças. Isso numa altura em que eu já devia ter os meus 11 anos. Sempre tinha adorado música e achava que era tarde demais para começar a aprender. Mas felizmente provou-se o contrário e fui parar a uma escola. Eu ia assim com umas ideias que queria aprender harpa. Não estava de todo com a ideia de aprender violino, mas foi naquilo que me puseram e depois, graças a Deus - porque ao fim de menos de um ano já estava a tocar na orquestra dos miúdos - isso foi também uma experiência decisiva. O facto de fazer um concerto em público com outros miúdos, ao fim de um ano a tocar violino, foi um prazer. Foi uma sensação de importância, de estar a fazer uma coisa tão importante e tão estimulante que foi de facto pedra de toque para eu querer ser músico.
Foi quase ao mesmo tempo que comecei a aprender música na Fundação e também a compor. Havia uma professora de Solfejo da escola - era a professora Deodata Henriques - que, desde o princípio, dizia que eu tinha ouvido absoluto. Ela tinha assim uma ligação muito grande comigo, e dizia-me que eu devia chegar a casa e escrever melodias, que escrevesse fosse o que fosse, para depois no dia seguinte ela usar como ditados na aula. Foi de facto ela que me incentivou a começar a compor. Depois comecei a escrever peças, tocadas pelos outros. Juntávamos assim um quarteto ou um quinteto, e tocávamos aquilo que eu tinha escrito nos dias anteriores e isto sem eu nunca ter aprendido nada de composição. Portanto tudo o que eu fazia era hiper-intuitivo. Depois, o professor de orquestra - o Leonardo de Barros, aceitou que uma das peças fosse feita na orquestra. Foi ele mesmo que sugeriu que se fizesse um concerto e assim se fez. Por acaso é uma peça que eu ainda hoje gosto, tem graça, é uma coisa muito tonal – sol menor – muito triste, tem um cheirinho de Sibelius, que tocámos na Gulbenkian e ao qual o Joly foi assistir, como crítico do Diário de Notícias. Fez então uma crítica no Diário de Notícias dizendo que era um trabalho de mérito, mas que denotava o ensino conservador que me era ministrado. E o que tem graça é que eu não tinha aprendido composição absolutamente nenhuma. Eu não sabia teoricamente o que era um acorde perfeito. E portanto tudo o que fazia era absolutamente intuitivo. Mas foi nessa altura que comecei a ter aulas particulares com ele. Foi o Leonardo quem falou com ele, e ele aceitou-me como aluno particular. Depois, a partir daí, de 1981 a 1985, tive aulas particulares com ele.
Entretanto, em 1986, fui estudar para França com a bolsa. Mas em termos de composição, as duas pessoas decisivas foram primeiro o Joly - pois o Joly é que me veio pôr ordem na casa, auxiliando-me a perceber o que era realmente começar a compor dado que tudo o que eu fazia era intuitivo. Ele deu-me assim umas bases extremamente tradicionais, começando pelo contraponto – que era uma coisa que em termos do ensino de composição não se fazia cá –, depois a harmonia e depois fazer todas as disciplinas do ensino tradicional, resultando numa escrita um pouco cautelosa. Quando eu estava na minha fase intuitiva era um pouco mais solto do que no fundo acabei por ficar. Depois daqueles anos com o Joly, eu fiz as primeiras peças – o Prelúdio, que foi tocado com orquestra. Foi em 1982, eu tinha 16 anos quando escrevi o Prelúdio para Orquestra, que foi estreado pela Orquestra da RDP. Depois escrevi uma peça para Grande Orquestra, estreada pela Orquestra de S. Carlos em 1983, mas fui queimando etapas muito depressa porque, por exemplo, enquanto que o Prelúdio era uma obra extremamente tonal, depois os Três Momentos era já uma obra a puxar para o dodecafónico.
Lembro-me que houve uma aula com o Joly em que ele me tinha pedido um exercício com acordes de 9ª e 11ª e 13ª, e eu fiz aquilo, e quando ele começou a analisar o exercício às tantas parou e disse: “Sabe, nós agora temos de pensar, você tem de ir ter mas é com o Jorge Peixinho”. Eu gostava muito de Peixinho, mas disse ao Joly “Ó Maestro, sinceramente eu quero aprender é consigo, sinceramente é com quem eu gosto de aprender é consigo.” Mas depois disso, o que aconteceu foi que fui para França estudar com o Jacques Charpentier (…) e ele abriu-me imenso os horizontes. Quer dizer, logo nas primeiras aulas com ele, ele, de uma maneira muito simples, analisando toda a música que eu tinha levado, fez-me perceber como tudo o que eu escrevia era extremamente harmónico e extremamente pensado verticalmente, portanto numa base harmónica. Disse-me que era uma coisa que se calhar fazia mesmo parte de mim e que portanto nunca deixaria de ser, mas que era preciso enriquecer isso com mais coisas. E sobretudo, explorar a música em todos os parâmetros o que para mim foi uma revelação. A partir daí, comecei a encontrar uma linguagem muito mais própria, mais rica ritmicamente, timbricamente, explorando todos os parâmetros em simultâneo.
 
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Importância de obras de teorização musical

Em termos de livros, os que tiveram mais influência em mim, como compositor, foi em primeiro lugar aquele Fundaments of Musical Composition do Schoenberg - que para mim foi assim um abrir de um mundo onde nunca pensei que as coisas pudessem ser construídas com aquele grau de coerência desde o mais elementar germe, até à construção de uma obra inteira. De facto, o Schoenberg explicou isso como ninguém e para mim foi uma revelação. O segundo foi The Classical Style do Charles Rosen, que também foi assim “a revelação”, quando eu percebi que todas aquelas obras maravilhosas que eu adorava, estavam a dizer coisas tão concretas por A mais B, e a construir de uma forma tão espantosa que se podia desmontar nota a nota e compasso a compasso. E a coroar isso tudo foi um livro que eu li no ano passado no Verão - precisamente antes de começar a Rainha Louca -, The Language of Music do Deryck Cooke, Dentro de uma estética bastante conservadora, (no fundo é limitar a música ao sistema tonal puro e duro e que já não passa além disso), dentro do sistema tonal ele encontra sentidos que eu sempre tinha percebido intuitivamente, mas que vi ali analisados de uma forma sistemática, exaustiva… cada encadeamento de acordes… porque é que a subdominante dá uma sensação de repouso? Todos os sentidos expressivos associáveis à música estão ali, desmontados num sistema fantasticamente explicado. Isso veio confirmar tudo o que eu sentia intuitivamente e que agora aplico, não no âmbito do sistema tonal, mas retomando alguns pontos de referência. Por exemplo, um deles que para mim é muito importante, são as alturas relativas. O plano – não digo exactamente o plano tonal porque não é uma obra tonal no sentido tradicional – tonal, quais são as notas pivot ao longo de cada acto e de cada cena, são fundamentais para dizer exactamente o conteúdo expressivo. Eu como tenho ouvido absoluto, eu associo por exemplo um Fá sustenido e um Dó natural - uma coisa espantosa que tem de ser explorada. Acho que uma das coisas que se perdeu muito no século XX, e que eu tenho mais pena que se tenha perdido é exactamente essa “côr” em torno de cada tonalidade. Aquele peso e aquela capacidade expressiva que havia na tonalidade perdeu-se muito, essa capacidade colorística da música que é mudar de campo completamente, estar numa tonalidade, para depois passar para outra. É um efeito de variedade que eu acho fundamental na música. Para mim, tem de haver essas notas pivot, esses momentos em que estamos a passar de um ponto de influência para outro para dar a sensação de modulação.
Quer dizer, não encaixa dentro das categorias tradicionais de modulação no sentido de dominantes – tónicas, obviamente que não encaixa. Mas há um outro sistema que eu ainda não seria capaz de teorizar assim como aquele que Esteván fez em relação ao Bartók. Só depois quando li o livro sobre a linguagem do Bartók, e percebi como aquilo - um sistema espantosamente bem conseguido que eu nunca havia visto concretizado - me marcou imenso mesmo sem eu saber. Por exemplo, uma das obras que mais me marcaram na adolescência foi a Música para Cordas, Percussão e Celesta, e depois, há um ano ou dois, vim a descobrir a que ponto aquilo é construído dentro de um sistema coerente e que pode ser desmontado por A mais B. O sistema dos eixos do Bartók é um sistema fascinante, que eu nunca tinha percebido teoricamente e que eu agora vejo que eu, intuitivamente, já usava muito aquilo. Aquele sistema dos eixos a mim diz-me imenso.
 
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Posições face à música contemporânea

Uma das coisas que eu tenho sempre em mente é guardar sempre determinadas notas. Há uma determinada área que eu não estou a usar que é para ela depois fazer todo o efeito imediatamente a seguir. A mim, a coisa que mais me afasta da música contemporânea é a ideia do cinzento, é a ideia de um magma indistinto onde não se pode variar, onde não se pode ter o efeito da modulação. Eu acho que o efeito da modulação é um dos efeitos mais fascinantes da música ocidental e é uma das razões porque se pôde ir tão longe. A modulação, que é um conceito que não existia pura e simplesmente na idade média, permite abarcar campos e mudar de atmosferas. É também o sentimento da perspectiva, é um pouco o equivalente à perspectiva na pintura, não é? E acho que se perdeu isso…
Os compositores contemporâneos que mais me marcaram, que mais me atraíram, foram o Ligeti, Lutoslawski, um pouco o Xenakis, mas confesso que depois me fartei… mas foram aqueles onde eu senti moldar a música de uma forma mais física e mais próxima da nossa maneira intuitiva de sentir… A música que me atrai é uma música que tem de ter um certo “balanço”. Eu tenho que senti-la minimamente com o corpo. Não sentir uma pulsação é uma coisa que me deixa sem pontos de referência. Em termos de ritmo, é o equivalente ao total abstraccionismo, uma coisa que não me diz nada. Eu preciso de coisas concretas que estejam a ser apresentadas. Eu preciso de ideias, preciso de motivos que fiquem na memória. Quando oiço uma obra quero conseguir reter aquelas ideias básicas para depois perceber o que lhes vai acontecer. É isso que me fascina na música. É por isso que eu tenho a tal adoração pelo estilo clássico. Para mim o Haydn tem sido uma imersão das mais maravilhosas da vida. É um privilégio poder estar a fazer estes programas na Antena 2, em que quinzenalmente tenho uma sinfonia nova do Haydn para analisar e que têm sido assim uma descoberta… Quando chegar ao fim das sinfonias vai ser uma angústia porque é um mundo inesgotável e é espantoso como se pode construir um universo inteiro dentro de um esquema que se pode julgar tão rígido e afinal é tão livre que permite infinitas, milhões de combinações. Mas a mim, o que me fascina nessa música é poder perceber que conta uma história. E quando aparece um tema, e depois outro tema. Sabe-se exactamente o que é que está a acontecer aos temas. É como nos filmes. Eu não suporto filmes onde não há uma história. Acho que é um contra-senso… No filme tem de haver uma história. A essência de um filme é ser uma história bem contada, na música a mesma coisa. A música deve ter sempre uma história bem contada. É isso que eu procuro na música – na música que eu gosto de ouvir e na música que eu faço - contar uma história.
 
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Importância da actividade de intérprete para a composição

Acho que condiciona imenso. Havia muitas músicas pelas quais eu, antes de tocar em orquestra, era fascinado, e que depois de as tocar perdi uma enorme parte do fascínio. Por exemplo, aquelas que mais me impressionaram por terem sido uma desilusão tão grande foram as obras de micropolifonia do Ligeti. As Atmosphères, quando se está a tocar na orquestra, percebe-se que é completamente execrável de tocar, porque é uma música totalmente desligada da realidade concreta do instrumentista. Ali estamos a fazer o papel de máquinas e a vocação do instrumentista é precisamente não ter nada a ver com a máquina. Aquilo que eu procuro fazer é uma música que dê para ser tocada e que tem algo de idiomático, que permite às pessoas exprimirem-se para lá da partitura. Sobretudo ser idiomática, ser técnica dos instrumentos, por muito fascinantes que possam ser as novas técnicas que se encontraram ao longo do século XX, nas quais, em certos casos, há efeitos fascinantes. Eu tenho empregue algumas, às vezes até de uma forma caricatural, um pouco a gozar com isso…- aquilo a que eu chamo o folclore da vanguarda. Há efeitos fascinantes, mas é preciso não confundir as coisas. Não são, nem nunca serão a essência de cada instrumento. Não é para isso que os instrumentos foram feitos e não é isso que eles fazem melhor. Isso é um condimento, é uma coisa com graça que se pode usar em certas ocasiões plenamente justificadas, pode-se usar, mas para os intérpretes é extremamente frustrante. Esse tipo de efeitos, é como aquelas flautas que têm de estar assim três minutos até conseguir fazer aqueles quatro sons ao mesmo tempo. Eu não tenho paciência para isso, acho que é um desperdício. Para isso há computadores fantásticos. Essa é que é a área em que a música electrónica e electroacústica permitem fazer coisas que os instrumentos em si, só de uma forma muito causticante, muito maçadora… Eu não faria a minha vida com isso, morreria de tédio. Acho que é um suplício. E é por isso que eu devo fazer música extremamente idiomática, pensada para cada instrumento. E depois outra coisa, que é a tal costela de teatro, eu acho que cada instrumento tem uma personalidade. Uma das razões porque eu gosto tanto da violeta é porque é um instrumento com muita personalidade. Dentro das cordas é inconfundível. Aliás, cada um dos instrumentos da família das cordas tem uma personalidade muito vincada, mas a violeta encarna uma personalidade com a qual eu me identifico imenso. Que é aquele que não vai na maré com os outros, e que tem lá o seu mundo e que é um misto de cómico e de trágico e que ao mesmo tempo é um solitário, mas com uma certa bonomia, com um certo encanto. É um instrumento que me fascina, um instrumento com muita personalidade.
É curioso que foi a partir do momento em que escrevi o Concerto para Violeta e Orquestra, que toquei a solo, que me vi obrigado a fazer “das tripas coração” e mostrar ou ”tocas ou não tocas”. Não é para estar aqui a fingir que sou instrumentista, ou “tocas ou não tocas”. Isso obrigou-me a dar assim um salto em termos técnicos e, a partir daí, ganhei vontade de também fazer recitais que agora faço regularmente. Todos os anos faço assim três ou quatro recitais com piano. Até porque arranjei um companheiro fantástico - o Bruno Belthoise - e agora, sistematicamente, estou a percorrer o repertório da viola. Apenas agora, portanto é uma coisa muito tardia. Eu não conhecia a maior parte do repertório da viola. É muito pouco conhecido e não é tão pequeno como geralmente se pensa. Há muitas coisas fantásticas que ninguém toca.
 
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Métodos de Composição

Eu costumo compor fora de Lisboa, geralmente na quinta da minha avó onde não há piano. E isso para mim é óptimo. Porque o piano é extremamente limitador. Eu, aliás, agora estou às voltas com uma cena da ópera que tem sido a mais difícil de espremer. Depois de ter estado na quinta da minha avó onde fiz quatro minutos de música, bastando-me só sentar e escrever, agora tive de espremer porque simplesmente tinha ali o piano e portanto queria experimentar tudo, e isso é algo que me bloqueia. Estando só na minha cabeça, eu consigo imaginar coisas muito mais livres. Foi uma coisa que me ensinou o Charpentier. “Nunca componho ao piano” era o que ele me dizia. E isso mudou muito a minha maneira de compor. Toda a minha aprendizagem com o Joly foi ao piano, compondo sempre ao piano, e, considerando sobretudo que eu não sou um pianista - tenho um nível fraco de piano -, não tenho um desenvolvimento para estar suficientemente livre. Portanto ainda mais limitado ficava por causa disso. A violeta é ideal para isso, porque permite tocar aqueles sons, permite ver o efeito certo dos acordes e depois de ir criando o som sonoro dentro da minha cabeça. É assim uma espécie de pinceladazinhas que o instrumento vai dando, mas que depois me deixa solto dentro da cabeça para fazer linhas independentes e texturas mais complexas. O piano em si não me deixa assim tão solto, deixa-me muito mais preso.
Para mim, o que é sempre mais difícil numa obra é encontrar aquele ponto inicial, aquele princípio. Tem de ser as primeiras notas, o princípio – que é tão importante. Se eu não me identificar de alma e coração… Aquela primeira frase da ópera foi uma coisa que eu andei anos à volta daquilo. Que é a rainha que está a frente da lareira, sozinha e diz: “Se eu fosse livre, não estaria aqui”. E eu não conseguia encontrar uma música para aquilo. Até que no verão passado, num dia qualquer que me sentei … pronto… e era absolutamente aquilo. E aquela primeira frase da rainha é a pedra de toque para a obra toda. Toda a ópera surge a partir daí. A organização de tudo o resto vem desse princípio.
Por acaso aqui não comecei pelo princípio pois vai ainda haver uma abertura, mas eu não gosto nada de ter assim um esquema completamente rígido onde depois tente encaixar as coisas. À medida que se vão fazendo as coisas, elas vão ficando sempre um pouco diferentes daquilo que se imagina inicialmente. Por exemplo, uma das coisas que me tem ultrapassado no processo, é o facto da ópera estar a ficar muito maior, de proporções muito mais vastas daquilo que eu pensava. Aquilo que eu pensava que iria ser uma abertura de um minuto e meio, ou de um minuto – o Doido e a Morte tem uma abertura de um minuto -, aqui vai precisar no mínimo de cinco minutos. Vai precisar de uma verdadeira abertura, porque o próprio primeiro acto já está em 25 minutos. Portanto, tem de ter uma verdadeira abertura. E a sensação do tamanho relativo das secções, e sobretudo do contraste que é preciso… A coisa que mais me chateia é a ideia de música sem contraste. Acho que, de facto, a essência da música é pelo contraste, prender a atenção de quem está a ouvir. E portanto, é muito importante estar a fazer à medida, acompanhando o evoluir da obra, que é para poder ter essa evolução psicológica. Para mim, esse caminho psicológico é a chave de ser “uma seca” ou de ser muito interessante para o ouvinte.
 
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O público como elemento condicionante da composição

Eu faço a música de que gosto. A música que a mim me der mais prazer… Essa é a essência da coisa. Agora é claro que eu acho que é saudável que uma pessoa também pense se as obras dirão alguma coisa a alguém. Estar a escrever uma música só para nós acho que seria uma coisa extremamente onanista e estúpida. Também temos que ter uma música que contribua para a sociedade e que possa trazer alguma coisa às pessoas, dizer-lhe alguma coisa. Portanto é um misto das duas coisas. Se eu não gostar, ninguém vai gostar. Por outro lado, se eu fizer uma música, com a qual eu não me identifique verdadeiramente, simplesmente para que depois digam bem, isso então é a morte do artista, acho que isso é o “fim da macacada”.
 
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Primeiras Obras

A minha primeira fase foi aquela de escrever coisas extremamente tonais, mas um tonal totalmente intuitivo, com quintas paralelas, e com todos os defeitos tradicionais. Depois vim a descobrir que estava mais liberto do que eu pensava, porque fazia essas coisas sem pensar. E portanto essa foi a primeira fase, é como a fase antes de aprender a ler e a escrever não é? Aquela primeira fase intuitiva e primordial. Depois foi aquela fase mais ajuízada com o Joly, com aqueles primeiros Poemas para Soprano e Piano - a primeira coisa que o Joly me pediu mesmo como obra. E depois o tal Prelúdio para Cordas, que era uma forma sonata para orquestra de cordas, depois os tais Três momentos para Orquestra e um Concerto para Metais, que foi a última obra que fiz, em 1985, antes de ir para Nice, estudar com o Charpentier.
Era minha preocupação ir ao encontro de arranjar um sistema equivalente ao sistema tonal, algo que pudesse ser também um sistema. E então arranjei um sistema que era todo à base de quartas e de quintas, depois com as devidas fugas às quartas e às quintas para criar tensão, mas que era todo um quadro baseado em quartas e quintas. Mas depois o Charpentier abriu- me os olhos e fez-me perceber até que ponto eu me estava a limitar de forma estúpida. Depois, houve assim uma série de obras de aprendizagem com o Charpentier, que foram para outras vias. Uma obra que foi muito importante para mim, foi assim daquelas descobertas, um ovo de Colombo em que fiquei fascinado comigo próprio, foi um Quarteto para percussão que escrevi, em que inventei assim uma espécie de um cânone. Era um cânone, em que não se percebia que era um cânone, em que as várias vozes surgiam um pouco como “música de formigas”. O Charpentier olhou para aquilo, ficou entusiasmadíssimo, e disse que parecia uma “música de formigas”. Era como se cada linha fosse crescendo como um organismo e as outras fossem imitando a uma distância muito pequenina, fazendo como que um efeito de um corpo que está parado e que vai começando a mexer até ter milhões de corpos a mexer ao mesmo tempo. E eu percebi como eu podia ritmicamente, sem ser naquela coisa de estar a pensar em acordes e na dimensão vertical, como me poder libertar e fazer uma coisa muito mais solta. Para mim, foi muito importante como experiência. Depois o Turbilhão... foram assim obras em que fui tentando explorar, encontrar uma linguagem. Essa fase que é o Turbilhão, sobre um poema de Mário de Sá-Carneiro, para baixo e quarteto de cordas; um concerto de sopros que é Os Nossos Dias, onde aplicava precisamente essa “música das formigas” e era inspirado num poema do Alexandre O’Neill, depois, ainda na fase de Nice, o terceiro ano foi com o Concerto de Flauta. O concerto de flauta foi onde pus todas essas coisas em prática ao mesmo tempo. E depois, a seguir, levei a tendência até talvez ao ponto limite. Onde fui mais longe foi com as Evoluções na Paisagem, uma obra que até ganhou cá um prémio, daquele concurso de fidelidade da Nova Filarmonia. Onde ele vai mais longe que nunca é na total multiplicação das vozes na orquestra, e eu nessa altura ainda não conhecia praticamente nada de Ligeti, e depois à posteriori vim a descobrir. Tem piada como ele já tinha visto isto 20 anos antes e eu estava a fazer uma coisa que afinal de contas era uma coisa comparável. Mas esse obra é assim um ponto extremo dessa concepção em termos de texturas. Muito baseada em texturas, em cores, em timbres, em manchas de sons. Depois a viragem foi, em 1990, com a Antagonia, com a peça de violoncelo solo. Passar subitamente de uma orquestra para um só instrumento…tive de começar a partir do zero.
 
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Obras para instrumento solo e reacções

Fiz três ou quatro obras para instrumento solo, que na altura em que as compus mudaram o rumo do que eu fiz. Tem piada, Antagonia surgiu em 1990 e depois, todas as obras que eu escrevi daí vieram na sequência da Antogonia, culminando no Doido e a Morte. O Doido e a Morte é a súmula desses anos todos, mas onde procurei fazer uma música muito mais centrada em cada linha, procurei dar sentido a cada linha, ao invés de uma multiplicidade de linhas que não se conseguem distinguir muito bem. Antagonia foi também ir ao fundo de mim mesmo, assim num tipo de crise existencial quando vim de Nice. Foi quando estreou o Concerto para Flauta e Orquestra cá na Gulbenkian e depois houve assim uma crítica qualquer que dizia que era um trabalho de mérito mas que mostrava um academismo surpreendente num compositor tão jovem. E aquilo para mim foi uma facada. Eu senti aquilo como um insulto ao âmago de mim próprio. Acho que quando eu escrevi o Concerto para Flauta, em 1988, em termos portugueses eu fui quase revolucionário, pois não havia ninguém, um único da nova geração, que não estivesse a fazer uma música completamente voltada para o meio da vanguarda atonal. Portanto o Concerto para Flauta reatava laços, com certos lados impressionistas, certos lados neo-clássicos, mas de uma forma pessoal, minha. Ainda hoje identifico Concerto de Flauta como uma obra completamente minha. E acho que é a antítese do academismo, sinceramente. E a ideia de fazer uma peça em três andamentos, na estrutura clássica, um Allegro, um Adágio e depois um Presto para acabar, tudo aquilo foi expressamente feito - no fundo usar mecanismos da tradição de uma forma que era ir contra um academismo que eu achava estar instalado.
 
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Obras dos primeiros anos da década de 1990

Depois houve as Evoluções da Paisagem – essa é uma peça com a qual eu hoje já não me identifico. Acho que dentro daquela linha, se calhar, para aqueles que apreciam o lado mais abstracto e mais atonal, é a obra mais interessante que eu fiz. E é um obra bastante complexa em termos orquestrais, com coisas, com efeitos, que acho interessantes, originais. Tem uma multiplicidade de linhas e de texturas que de facto é interessante. Hoje fico espantado como é que fiz aquilo. Há certas páginas das Evoluções da Paisagem que são um mar de notas, assim uma página enorme com milhões, parecem organismos ali a pulular, parece uma criação de micróbios, é uma coisa espantosa, mas com a qual já não me identifico nada. Hoje, seria incapaz de fazer uma coisa semelhante.
Foi com a Antagonia que eu comecei essa viagem para uma nova linguagem mais tonal, uma linguagem mais convictamente apoiada em notas pivot e em centros tonais. Eu já não tenho prurido em chamar-lhes centros tonais porque o que eu acho que nós temos que encontrar é o equivalente para o sistema tonal, que de facto está completamente esgotado. Mas há equivalentes, coisas básicas do sistema tonal que nós temos que encontrar. E é isso que eu tento fazer, e aí as notas pivot e os pólos de atracção são muito importantes. Começou com o Antagonia, depois houve o Langará para clarinete, o The Panic Flirt, primeiro para flauta. São peças que me obrigaram a conhecer melhor os instrumentos. Eu era muito viciado dentro do mundo das cordas. Toda a minha educação foi no âmbito dos instrumentos de cordas e despertei muito tarde para a questão dos outros timbres. Eu lembro-me quando fui para Nice, e ainda não conhecia muito bem os timbres. Eu era capaz de ficar na dúvida se era uma trompa ou era um trombone. Havia certas coisas para as quais não estava desperto. A minha área era completamente as cordas, o mundo do quarteto de cordas, do quinteto de cordas, dos concertos. Toquei muitos anos na orquestra da Fundação, portanto era aquilo que eu vivia, era aquilo que me dizia mais. Depois começar a descobrir os instrumentos, para mim foi o fascínio. E essas obras para instrumento solo, de facto, foram assim uma porta de entrada fantástica para cada um desses instrumentos. A flauta e o clarinete acho que tiveram muita influência no tipo de linguagem. Depois foi no Doido e a Morte, que conjuguei isso tudo. E é uma ópera que tem muito a ver com o clarinete, é curioso que o tema inicial de Langará, é exactamente o tema de fundo do Doido e a Morte, é exactamente o mesmo tema. E são cinco notas "tá-rá-rá-rá-rá", e daquelas cinco notas eu construo uma ópera inteira. Isso é o tipo de mecanismo que me fascina. Conseguir de uma coisa muito pequenina, descobrir-lhe a essência, transformá-la e faze-la crescer, fazer dela outra coisa um bocadinho diferente, e depois dessa, outra um bocadinho diferente, conseguir construir um cosmos a partir desse germe primordial. Isso tem tudo a ver com aquilo que eu entendo como música interessante, com substância. Não há nada que me afaste mais do que a ideia de música que funciona simplesmente como acrescentos, como coisas desligadas entre si. Eu abomino o pós-modernismo, acho-o o vómito de uma época completamente decadente, incapaz de criar uma música nova. A ideia de pegar bocados daqui e dali para colar e fazer uma obra, para mim, é uma coisa repugnante. Eu abomino o Andy Warhol, a pop-art acho uma coisa execrável. Acho que é a arte de uma época totalmente impotente. Depois dos séculos de civilização em que se fizeram coisas extraordinárias, aquilo depois ser considerado a coisa mais representativa de determinada época, mostra um vazio perfeitamente nuclear. Foi como se tivesse havido uma hecatombe e ficássemos reduzidos a nada e por outro lado é uma ideia de supermercado de estilos, é uma coisa que me horroriza. Eu acho que em qualquer obra pode haver citações – e eu gosto de usar citações, a minha ópera a Rainha Louca está cheia de citações – mas tudo isso tem sido introduzido de uma forma orgânica, não pode ser simplesmente pela citação. A coerência orgânica, poder ser tudo analisado, - que dê tanto para as pessoas que não percebem nada de música, conseguir perceber, mesmo sem saberem porque é que estão a perceber, seguir o fio à meada. Permitir a esses, e permitir também aos “coca-bichinhos”, dos que pegam na partitura e que desmontam e que vêem, é isto, é aquilo, e que conseguem fazer uma análise muito detalhada. Eu acho que a Rainha Louca, tal como o Doido e a Morte – o Doido e a Morte se calhar é mais complexo em termos contrapontísticos, de mais independência das vozes, mas a Rainha é muito mais elaborado -, sou eu agora. O Doido e a Morte sou eu há dez anos. Agora sou uma pessoa diferente.
 
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Obras posteriores a O Doido e a Morte

Depois do Doido e a Morte foi uma fase francamente difícil, porque foi como se eu tivesse gasto os cartuchos todos. De repente senti-me assim num vazio, o que é que eu faço agora? Sobretudo porque o Doido e a Morte teve tanto impacto, foi uma coisa que teve reacções tão fantásticas e críticas tão fantásticas. Foi o ponto de viragem na minha carreira. Ninguém me conhecia praticamente e a partir do Doido e da Morte tornei-me conhecido. Foi assim mesmo uma obra de viragem para mim. Depois disso entrei mesmo naquele auto-bloqueio típico, da pessoa que não quer desapontar. Quando já se criaram aquelas expectativas, eu fiquei totalmente bloqueado sem saber o que é que ia fazer para não defraudar as expectativas que se tinham criado. E por acaso, foi um erro querer fazer imediatamente outra ópera. Foi apostar logo tudo. Encontrei o libreto da Rainha Louca, e fiquei fascinado. A partir de 1995, 1996, a partir daí, estava a alimentar tudo para aí, sem perceber que primeiro eu tinha que encontrar outros caminhos para a minha linguagem, para depois poder adaptá-los. Exactamente como tinha acontecido antes. Se eu tivesse começado por fazer uma ópera quando fui aprender com o Charpentier, de certeza que tinha sido uma porcaria, porque primeiro eu tinha que encontrar uma linguagem minha. E foi depois de maturar essa linguagem que apliquei tudo isso na ópera. E com a Rainha Louca aconteceu exactamente a mesma coisa. Foram uma série de anos… talvez dos anos menos produtivos que eu tive. Foi em 1997, com o Bamboleio, inicialmente uma peça para cravo e marimba, encomendada pela Gulbenkian - que depois transformei numa peça para piano, e de cuja versão gosto mais, pois é uma das raras peças que eu compus ao piano, pensada mesmo para piano - que acho que encontrei qualquer coisa para um novo caminho pessoal. Foi outro ponto de viragem, que depois derivou para as Três Variações – uma peça para a orquestra Gulbenkian. Depois fiz umas peças para coro a capella – uma encomenda do S. Carlos – onde o facto de escrever para coro foi para mim também muito importante porque obrigou-me a uma concepção muito mais harmónica da música. Com um coro não se pode mesmo estar a pensar naquela coisa absolutamente desligada. Não pode ser uma música tão apoiada em meios tons e a coisas demasiado indistintas, demasiado cromáticas. O coro precisa daquela limpidez de quartas, quintas, de terceiras. Daqueles intervalos bem eufónicos e que fazem um coro multiplicar-se e fazer harmónicos. Acho que a boa escrita para coro, para mim, as coisas que funcionam têm que ter sempre assim intervalos muito lineares, muito límpidos. É isso que multiplica os harmónicos nas vozes e por isso que resulta tão bem na escrita para coro. Essas peças que eu escrevi para coro também foram boas para encontrar também ali uma via, assim de encontrar uma música de outras eras. A primeira são Cansonâncias, são peças baseadas em poemas baseados à base de repetições fonéticas. Comecei pelo poema do D. Dinis que diz: “Levantou-se a velida, levantou-se a alva, e vai lavar camisas, vai-las lavar alva”. Portanto, a primeira peça é quase um organum, é quase uma coisa medieval, assim toda escrita em quartas e quintas paralelas, se bem que numa rítmica minha assim bastante fluida, bastante variável. Depois a segunda, é a passagem da Idade Média para o decadentismo, com um poema do Eugénio de Castro – que é um poema incrível, cómico.
Na messe, que enlourece, estremece a quermesse…/ O Sol, o celestial girassol, esmorece…” e é tudo assim: esmorece, estremece… e para isso fiz assim um tempo de valsa decadente e com oscilações assim de quintas perfeitas à distância de quarta aumentada, com uma certa languidez decadentista. E depois a última, que é baseado num poema do Fernando Pessoa - o poema que eu mais adoro do Fernando Pessoa - que é “Em horas inda louras, lindas/Clorindas e Belindas, brandas/Brincam no tempo das berlindas/As vindas vendo das varandas”. Em que aí é toda uma música muito mais brincalhona, assim salpicada … numa descontinuidade típica do modernismo. São três peças em que cada uma delas procurei ir estilisticamente ao encontro da época da poesia e isso foi importante para encontrar depois o clima certo para a Rainha Louca, porque eu sabia exactamente aquilo que queria fazer, só não tinha encontrado ainda o veículo. E que é essa ideia de um século XVIII imaginário. Era uma música que tem a ver com o século XVIII, mas que só podia ter sido escrito hoje em dia.
 
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A Rainha Louca

A Rainha está a sair um pouco das proporções mas eu julgo que mesmo assim, acabará por ser abarcável. Acho que a Rainha somente com o Doido, já faz um espectáculo e quero que se faça a estreia da Rainha antes de vir o D. Sebastião - o D. Sebastião é que é a última. Essa trilogia foi pensada precisamente pela ordem inversa. Comecei no século XX com o Doido e a Morte, depois no século XVIII com a Rainha Louca e depois é o século XVI com o D. Sebastião. Finalmente, a ordem vai ter de ser, quase de certeza, precisamente a ordem oposta, porque a Rainha está a tomar proporções muito mais amplas e o Doido e a Morte é muito mais pequena, é uma ópera de um âmbito muito mais camerístico. A Rainha terá quase uma verdadeira orquestra, portanto faz-se o Doido e a Morte como um prelúdio, e a Rainha Louca como o prato forte.
Uma coisa que para mim é fundamental, e espero nunca mais ter que cair nisso, é não ir em opções cenográficas e encenações com as quais não me identifico. Quero ter uma palavra determinante a dizer quanto a exactamente o que se vai fazer, porque eu adoro teatro. Vou ao teatro desde sempre, desde miúdo, e estou extremamente ligado ao mundo do trabalho dos encenadores, ao mundo do teatro. Se há coisa que me horroriza é a que ponto se chegou longe das partituras, encenando-se a ópera desligadamente das partituras e, sobretudo, do próprio texto. Eu acho que quando as óperas são boas e os libretos são bons, a didascália, tudo o quanto está escrito exactamente que deve ser, é precioso e deve ser seguido metronomicamente, tem de se fazer exactamente o que lá está quando são bons. Claro que têm de ser emendadas umas coisas, há montanhas de libretos impossíveis no século XIX, que se tem de dar uma volta e fazer uma coisa completamente diferente, mas quando os libretos são bons… Por exemplo, as óperas de Pucinni são paradigmáticas. A música que ele escreveu só faz sentido com aquelas indicações cénicas exactamente como ele põe. Ou se arranjam uns equivalentes muito bem pensados, mas será difícil encontrar algo psicologicamente e quase cinematograficamente tão apropriado para a música que ele escreveu, é quase impossível encontrar o equivalente perfeito, portanto uma coisa que eu faço questão, até porque o texto do Miguel Rovisco é magistral nesse sentido, é seguir exactamente o que lá está. A didascália do Miguel Rovisco é fascinante. Ele faz uma encenação e eu agora estou a transpô-la em música. Depois é preciso obedecer exactamente tanto ao que o dramaturgo fez, como ao que eu fiz e depois, simplesmente, converter em cena. Hoje em dia extrapolou-se que os encenadores são um pouco criadores frustados. São pessoas que querem à viva força mostrar a sua criatividade e a sua personalidade, fazer algo diferente, sem perceber que estão a ir contra as próprias obras. É absurdo… há uma discrepância tão absurda que é: somos cada vez mais rigorosos em termos musicais, em termos de fazer exactamente em instrumentos de época, as indicações é fazer cada vez mais exactamente o Urtext do mais urtext que se possa imaginar. E depois, em termos de texto, é a rebaldaria total e absoluta. Um dramaturgo escolheu uma época e forçosamente tem de se fazer noutra época que não tem nada a ver? Estamos no século XVIII e temos de ver coisas horrendas com pichagens no palco? Isso foi muito interessante e muito importante como tendência e claro que renovou muito o mundo da ópera que era um mundo um pouco como um museu de cera, mas hoje atingi a náusea. Quer dizer, hoje eu continuo a ir à ópera, temos pouca oferta de ópera, mas mesmo em termos internacionais a média do que se vê de encenações de ópera é aberrante, segundo o meu gosto, é aberrante porque não é teatral e, sobretudo, não é musical. Não segue nem o texto, e para mim o fundamental é seguir o texto, se o texto é bom.
 
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Utilização de tecnologias multimédia

Quase de certeza que na Rainha Louca vai haver, porque há vários momentos que são totalmente oníricos, e que seriam impossíveis de realizar de uma forma que não fosse ridícula. Por exemplo, há um pequeno pormenor que eu posso adiantar – e esses é dos toques mais poéticos do texto, que é maravilhoso – que é a rainha, na sua cabeça, a grande obra da vida dela, a coisa que ela mais adorava era a Basílica da Estrela e isso é uma coisa histórica – aliás, todo o texto do Miguel Rovisco é extremamente histórico. A personagem da rainha é fascinante, a nossa D. Maria I tem sido tão denegrida, durante duzentos anos foi denegrida, e quando se vai ver mesmo o que se conhece das cartas dela e do que ela era como pessoa, era uma pessoa maravilhosa, era uma pessoa de uma poesia, de uma sensibilidade às artes e à poesia, simplesmente não nasceu para ser rainha, não queria ser rainha, depois era muito religiosa e ficou totalmente torturada e devastada pelo facto das perseguições à Igreja, feitas pelo Marquês de Pombal, e de a convencerem, à viva força, que o seu pai estava a arder no inferno. Isso foi uma ideia que ela não conseguiu tolerar e portanto foi completamente massacrada e esmagada pelos seus confessores. Foi a sua grande tragédia. Depois teve outras tragédias como o facto do seu filho, o primogénito, que era um príncipe perfeito, maravilhoso - descrito por Beckford no seu livro como um jovem extraordinário - ter morrido de varíola. Já se estava a experimentar a vacina na época mas os padres não autorizaram que se experimentasse nele a vacina, pois achavam que era ir contra a vontade divina. E ele morreu, e isso foi outro argumento de peso. Um outro factor que a fez enlouquecer foi a Revolução Francesa e o facto da Maria Antonieta ser guilhotinada. Pode imaginar-se, o que é que seria hoje, para uma rainha frágil, sensível, muito fechada no seu mundo, saber que a rainha de França, a dauphine de França, tinha sido guilhotinada. Isso foi a gota de água. Acho que foi, de certeza, nesse momento que ela enlouqueceu definitivamente.
Esse lado onírico é porque ela fala da Basílica da Estrela, ela naquele quarto, onde não há janelas, ela queria ter mil janelas que dessem todas elas para a Basílica da Estrela. E depois, outro episódio, outro momento muito poético, é quando ela conta a experiência do aeróstato, que foi uma experiência que se fez em Portugal, muito a la par, ao mesmo tempo que se fez no mundo inteiro. Pouquíssimo tempo depois fez-se cá, um balão com ar, que se elevou no Palácio da Ajuda, e ela teve a ideia, que não disse a ninguém, de pôr dentro do balão um macaquinho a quem ela, secretamente, chamou Estrela. Depois, enquanto o povo estava todo de cabeça no ar a ver o balão elevar-se com o macaquinho, ela continha-se e gritava para dentro um grito, esse sim verdadeiramente revolucionário , - porque toda a temática da revolução está muito presente nas suas discussões com a dama de companhia -, esse grito verdadeiramente revolucionário que é “Foge Estrela, foge para longe desta miséria, para um mundo melhor, longe dos cães e do lixo deste país”. Depois no fim da peça, há um embate com o confessor e quando ela lhe faz frente nós percebemos que o seu filho morreu por causa do confessor. Aquilo que provocou a sua morte foi todo aquele torniquete horrendo que a Igreja construiu à volta dela. Ela, depois de enfrentar o confessor, fica sozinha em palco, e ouve estremecer ao lado, onde há assim uma espécie de floresta, uma série de flores e de plantas que formam quase uma floresta no canto, e pergunta: “Está aí alguém? És tu?”. E, depois aparece o macaquinho que é a Estrela que a vem levar. E ela sai levada pelo macaquinho, o fim da ópera é esse. Este é o tipo de coisas que é impossível pôr em prática. Lembro-me que no Nacional foi feito por uma criança a fazer de macaco. Era grotesco. Com um macaco verdadeiro é absolutamente impensável, portanto é o tipo de sequências que têm de ser em vídeo projectado, projecções que tem de se conseguir criar esses momentos oníricos. Eu sou um bocadinho alérgico ao multimédia, acho que é um pouco um tique teatral da moda, é uma voragem que vai passar, mas quando é usada assim criteriosamente, assim para coisas que só o multimédia e o vídeo é que pode dar verdadeiramente o efeito que se pretende, daí sim, porque não usar?
 
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A questão da verticalidade em O Doido e a Morte e em A Rainha Louca

Talvez O Doido e a Morte, a ópera, tenha sido o ponto extremo onde eu cheguei a isso. É uma ópera em que eu, de todo, não compus ao piano, compus directamente para os instrumentos, e em que levei ao máximo a minha ideia de independência total das vozes. Portanto é intrinsecamente contrapontística no sentido em que cada instrumento é um actor com a sua linha, e portanto não estão ali a fazer acordes. Cada um tem a sua personalidade e uma voz independente. Eu associo sempre a cada instrumento e a cada linha uma personalidade. E nisso ligo muito a música com o teatro. É por isso que a ópera é para mim uma coisa muito congénita, onde eu encontro exactamente aquilo que eu queria fazer porque é onde se encontram os dois mundos que eu mais adoro. Se não tivesse ido para música, de certeza que tinha ido para o teatro, porque era também a minha maior paixão. E portanto essa teatralidade o que deu foi essa liberdade, a multiplicação. A mim o que me fascina na ópera, em relação ao teatro, é poder pôr várias pessoas a cantar ao mesmo tempo, que é uma coisa que não se pode fazer no teatro. E fazer isso também a nível instrumental. O Doido e a Morte, entretanto, já escrevi há dez anos, depois disso tenho uma obra que já tenho projectada há oito anos que é A Rainha Louca. Ia fazer uma segunda edição do Doido e a Morte e não era isso que eu queria fazer. Sobretudo porque eu já sabia qual era o libreto que eu queria usar que é uma peça de teatro do Miguel Rovisco que me fascinou desde a primeira vez que a vi, sobre a D. Maria I, a rainha louca. Queria encontrar a música certa para aquilo, que era uma espécie de século XVIII imaginário. Um século XVIII que não existiu, mas que podia ter existido. Não no sentido de um pastiche, não é de todo, mas é uma música muito diferente de O Doido e a Morte, é uma música mais harmónica, mas que mantém a mesma independência de vozes só que num sentido mais harmónico. Só ao fim de oito anos de projectar essa ópera é que encontrei a música. Foi no ano passado que comecei e agora estou em velocidade de cruzeiro, estou a chegar a meio da ópera e já é um caminho muito diferente do outro.
 
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Relações entre música e o texto

Aquilo que eu sinto intuitivamente desde sempre quando aprendi música é que a música, é de todas as artes, aquela que mais directamente exprime milhões de coisas. Podem não ser coisas concretas, mas são coisas que associando a coisas concretas podem exponenciar o seu potencial expressivo. E é isso que eu acho fantástico. Poder juntar um texto – não é o texto que dá sentido à música, mas é como que iluminada. Para mim, a música é despoletada pelo texto, o texto é uma coisa que me instiga ideias automaticamente. Este texto do Rovisco acho que nasceu para ser posto em música e só no dizer daquele texto encontro-lhe exactamente uma música que acho que exprime exactamente aquilo que o texto quer dizer. E aí, encontram-se os dois mundos.
 
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Teatro Musical e Ópera

Devo dizer que eu gosto mesmo de ópera. O que eu tento fazer é uma música de ópera que vive enquanto música, que mesmo que não se percebesse nada do que eles estão a dizer, só como obras autónomas, como peças independentes, que já fosse interessante. Acho que no dueto já consegui isso. Acho que mesmo que uma pessoa não perceba uma palavra do que está a acontecer, são musicalmente coerentes, fazem sentido e são variados e portanto, permite-se ouvir. Acho portanto que o que decide da perenidade de qualquer ópera é a música antes de tudo o mais. Há montes de obras fantásticas com maus libretos. Mas a música em si tem de ser suficientemente interessante. É claro que depois, a conjugação perfeita entre a música e o texto é a maravilha. Mas em relação ao teatro musical, a mim o que me falta é, quando se põe um texto em música, conseguir encontrar uma linha vocal, suficientemente interessante, para compensar, para justificar, o facto de não se estar a falar mas sim a cantar. A coisa que mais me chateia nas óperas de todas as épocas são os recitativos. Acho o recitativo um meio-termo execrável. Enfim há alguns recitativos interessantes, mas são raros. O recitativo em si é aquele meio-termo, não é carne nem peixe. Não é nem verdadeiramente música, nem verdadeiramente teatro, é aquele meio-termo. Uma espécie de código morse teatral. Eu acho que a essência da ópera, da verdadeira ópera, é encontrar uma música, aquilo que faz com que o texto só pudesse ser cantado e não falado. Porque para ser falado então mais vale pôr um excelente actor ou actriz a falar.
 
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Em defesa da Música Portuguesa

Em relação à música portuguesa, o facto de me interessar tanto é uma coisa que começou imediatamente desde que comecei a aprender música. Foi uma coisa pela qual, desde sempre, tive assim uma atracção natural. Foi na mesma altura em que apareceram os discos da Portugalsom. A minha mãe trabalhava no Ministério da Cultura – e trabalha – e então tinha esses discos todos em casa. Foi aí que eu ganhei uma adoração pela música do Luís de Freitas Branco, muito antes de conhecer o Nuno Barreiros que foi seu discípulo. Eu tinha já uma adoração enorme pelo Freitas Branco, pelo Bomtempo, eram músicas que eu já conhecia e ouvia tanto como Mozart e Beethoven. Eram coisas que eu ouvia tanto, e que faziam parte – e fazem parte – de mim. É uma música com a qual eu me identifico a cem por cento. Por exemplo, uma coisa que para mim foi muito marcante foi quando conheci a Serrana, do Alfredo Keil, uma ópera que só há dois anos vi no S. Carlos. Eu ouvi uma gravação na rádio, daquelas gravações inomináveis, dos anos 60, péssimas - quer dizer muito estimáveis artisticamente, mas muito mal gravadas - o oboé impossível e a orquestra muito má… mas quando ouvi a Serrana pela primeira vez, e percebi “O quê, mas nós temos uma obra destas!? Cantada em português com um texto fantástico, tão teatral, tão portuguesa, tão inconfundivelmente portuguesa, tão musical, tão interessante e tão emocionante. Eu fiquei desvairado com a Serrana, foi assim uma coisa…
Depois, desde muito cedo que comecei a analisar obras. Ainda me lembro que estava a estudar em Nice, logo no primeiro ano, e o Carlos Achman da rádio, perguntou-me se eu não queria fazer textos sobre música portuguesa para o programa dele. Cada vez que pegava num compositor e em todas as obras que eu encontrava e analisava era uma coisa que me dava assim… É uma coisa que eu acho que faz mesmo parte de mim, porque vejo nesses compositores todos os meus avós…
Já eu era compositor, quando soube que tinha um bisavô compositor. É claro, eu adoro o meu bisavô, mas por quem eu sinto verdadeiramente… por exemplo o Luís de Freitas Branco, é o meu avô, completamente.
Quando nós vemos, mesmo nos momentos de maior crise havia assim uma figura… por exemplo, foi o Bomtempo no início do século XIX, depois foi o Vianna da Motta. O que o Vianna da Motta e o Alfredo Keil fizeram é de nos pormos todos de joelhos, nunca poderemos agradecer o que aqueles homens fizeram. A Sinfonia à Pátria, num país qualquer normal, seria uma obra que toda a gente conheceria e toda a gente adoraria. E seria feita assim, pelo menos uma vez por ano. No mínimo. E o que vemos é que ninguém liga nenhuma. Ninguém conhece. Durante décadas não houve uma única gravação da obra. Durante décadas não esteve editada.
É uma indiferença amorfa! É uma ignorância crassa e mesmo nos meios dos entendidos. Nos meios dos musicólogos, quando eu percebo que há assim certos musicólogos com trabalho, com provas dadas, e tal, que não conhecem nada! Perguntavam-me no outro dia se os Madrigais Camonianos eram do Vianna da Motta, quer dizer, são assim coisas que eu fico estarrecido. O desinteresse assim atávico. Outra figura que eu adoro e vejo completamente como meu avô é o Frederico de Freitas. Adoro-o. Os Bailados de Frederico de Freitas é da música que eu mais adoro desde a adolescência. Por exemplo A Lenda dos Bailarins foi uma coisa eu ouvi, num concerto dirigido pelo Silva Pereira, nos tempos em que ainda se fazia essa música como uma coisa normal, e eu fiquei doido com aquilo, completamente doido. Ninguém liga nenhuma. Se não fosse agora o centenário do Frederico de Freitas, passaram para aí uns vinte anos em que não se tocou uma obra do Frederico de Freitas. É uma coisa inacreditável.
Neste momento corremos o risco da primeira metade do século XX ficar tão desconhecida como ficou o século XIX. É esse o risco que nós corremos neste momento.
 
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