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ENTREVISTA |
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Alexandre Delgado |
Entrevista a Alexandre Delgado / Interview with Alexandre Delgado |
2004/Jul/15 |
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Versão Áudio
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Versão Texto
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Registo Videográfico
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Título do Suporte Entrevista a Alexandre Delgado / Interview with Alexandre Delgado |
Realizador Perseu Mandillo |
Produtor Tortoise Movies |
Tipo de Documento Entrevista MMP |
Tipo de Suporte MiniDV |
Data 2004/Jul/15 |
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Edição
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Editora Centro de Informação da Música Portuguesa |
Referência da Edição CIMP_entr_VID_AD |
Data 2004/Jul/15 |
Localidade Parede |
País Portugal |
Email Editor mic@mic.pt |
Página Web Editor Página Web Editor |
Edição Online |
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Observações
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Entrevista conduzida por Miguel Azguime e realizada em casa do compositor (Lisboa)
Transcrição, redacção, revisão: Pedro Ferreira, João Carlos Callixto, Susana Paiva, Marta Catana |
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Acesso
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Centro de Informação da Música Portuguesa |
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Untitled Document
Personalidades importantes na
primeira formação musical
A mais importante, que de facto decidiu essa mudança na minha vida e
que fez com que eu fosse músico, foi uma professora do ciclo preparatório
- a pianista Fátima Fraga. Foi ela que chamou o meu pai e disse que era
um crime eu não estar a aprender música e fui então para
a Fundação Musical dos Amigos das Crianças. Isso numa altura
em que eu já devia ter os meus 11 anos. Sempre tinha adorado música
e achava que era tarde demais para começar a aprender. Mas felizmente
provou-se o contrário e fui parar a uma escola. Eu ia assim com umas
ideias que queria aprender harpa. Não estava de todo com a ideia de aprender
violino, mas foi naquilo que me puseram e depois, graças a Deus - porque
ao fim de menos de um ano já estava a tocar na orquestra dos miúdos
- isso foi também uma experiência decisiva. O facto de fazer um
concerto em público com outros miúdos, ao fim de um ano a tocar
violino, foi um prazer. Foi uma sensação de importância,
de estar a fazer uma coisa tão importante e tão estimulante que
foi de facto pedra de toque para eu querer ser músico.
Foi quase ao mesmo tempo que comecei a aprender música na Fundação
e também a compor. Havia uma professora de Solfejo da escola - era a
professora Deodata Henriques - que, desde o princípio, dizia que eu tinha
ouvido absoluto. Ela tinha assim uma ligação muito grande comigo,
e dizia-me que eu devia chegar a casa e escrever melodias, que escrevesse fosse
o que fosse, para depois no dia seguinte ela usar como ditados na aula. Foi
de facto ela que me incentivou a começar a compor. Depois comecei a escrever
peças, tocadas pelos outros. Juntávamos assim um quarteto ou um
quinteto, e tocávamos aquilo que eu tinha escrito nos dias anteriores
e isto sem eu nunca ter aprendido nada de composição. Portanto
tudo o que eu fazia era hiper-intuitivo. Depois, o professor de orquestra -
o Leonardo de Barros, aceitou que uma das peças fosse feita na orquestra.
Foi ele mesmo que sugeriu que se fizesse um concerto e assim se fez. Por acaso
é uma peça que eu ainda hoje gosto, tem graça, é
uma coisa muito tonal – sol menor – muito triste, tem um cheirinho
de Sibelius, que tocámos na Gulbenkian e ao qual o Joly foi assistir,
como crítico do Diário de Notícias. Fez então uma
crítica no Diário de Notícias dizendo que era um trabalho
de mérito, mas que denotava o ensino conservador que me era ministrado.
E o que tem graça é que eu não tinha aprendido composição
absolutamente nenhuma. Eu não sabia teoricamente o que era um acorde
perfeito. E portanto tudo o que fazia era absolutamente intuitivo. Mas foi nessa
altura que comecei a ter aulas particulares com ele. Foi o Leonardo quem falou
com ele, e ele aceitou-me como aluno particular. Depois, a partir daí,
de 1981 a 1985, tive aulas particulares com ele.
Entretanto, em 1986, fui estudar para França com a bolsa. Mas em termos
de composição, as duas pessoas decisivas foram primeiro o Joly
- pois o Joly é que me veio pôr ordem na casa, auxiliando-me a
perceber o que era realmente começar a compor dado que tudo o que eu
fazia era intuitivo. Ele deu-me assim umas bases extremamente tradicionais,
começando pelo contraponto – que era uma coisa que em termos do
ensino de composição não se fazia cá –, depois
a harmonia e depois fazer todas as disciplinas do ensino tradicional, resultando
numa escrita um pouco cautelosa. Quando eu estava na minha fase intuitiva era
um pouco mais solto do que no fundo acabei por ficar. Depois daqueles anos com
o Joly, eu fiz as primeiras peças – o Prelúdio,
que foi tocado com orquestra. Foi em 1982, eu tinha 16 anos quando escrevi o
Prelúdio para Orquestra, que foi estreado pela Orquestra da
RDP. Depois escrevi uma peça para Grande Orquestra, estreada pela Orquestra
de S. Carlos em 1983, mas fui queimando etapas muito depressa porque, por exemplo,
enquanto que o Prelúdio era uma obra extremamente tonal, depois
os Três Momentos era já uma obra a puxar para o dodecafónico.
Lembro-me que houve uma aula com o Joly em que ele me tinha pedido um exercício
com acordes de 9ª e 11ª e 13ª, e eu fiz aquilo, e quando ele começou
a analisar o exercício às tantas parou e disse: “Sabe, nós
agora temos de pensar, você tem de ir ter mas é com o Jorge Peixinho”.
Eu gostava muito de Peixinho, mas disse ao Joly “Ó Maestro, sinceramente
eu quero aprender é consigo, sinceramente é com quem eu gosto
de aprender é consigo.” Mas depois disso, o que aconteceu foi que
fui para França estudar com o Jacques Charpentier (…) e ele abriu-me
imenso os horizontes. Quer dizer, logo nas primeiras aulas com ele, ele, de
uma maneira muito simples, analisando toda a música que eu tinha levado,
fez-me perceber como tudo o que eu escrevia era extremamente harmónico
e extremamente pensado verticalmente, portanto numa base harmónica. Disse-me
que era uma coisa que se calhar fazia mesmo parte de mim e que portanto nunca
deixaria de ser, mas que era preciso enriquecer isso com mais coisas. E sobretudo,
explorar a música em todos os parâmetros o que para mim foi uma
revelação. A partir daí, comecei a encontrar uma linguagem
muito mais própria, mais rica ritmicamente, timbricamente, explorando
todos os parâmetros em simultâneo.
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Importância de obras de
teorização musical
Em termos de livros, os que tiveram mais influência em mim, como compositor,
foi em primeiro lugar aquele Fundaments of Musical Composition do Schoenberg
- que para mim foi assim um abrir de um mundo onde nunca pensei que as coisas
pudessem ser construídas com aquele grau de coerência desde o mais
elementar germe, até à construção de uma obra inteira.
De facto, o Schoenberg explicou isso como ninguém e para mim foi uma
revelação. O segundo foi The Classical Style do Charles
Rosen, que também foi assim “a revelação”,
quando eu percebi que todas aquelas obras maravilhosas que eu adorava, estavam
a dizer coisas tão concretas por A mais B, e a construir de uma forma
tão espantosa que se podia desmontar nota a nota e compasso a compasso.
E a coroar isso tudo foi um livro que eu li no ano passado no Verão -
precisamente antes de começar a Rainha Louca -, The Language
of Music do Deryck Cooke, Dentro de uma estética bastante conservadora,
(no fundo é limitar a música ao sistema tonal puro e duro e que
já não passa além disso), dentro do sistema tonal ele encontra
sentidos que eu sempre tinha percebido intuitivamente, mas que vi ali analisados
de uma forma sistemática, exaustiva… cada encadeamento de acordes…
porque é que a subdominante dá uma sensação de repouso?
Todos os sentidos expressivos associáveis à música estão
ali, desmontados num sistema fantasticamente explicado. Isso veio confirmar
tudo o que eu sentia intuitivamente e que agora aplico, não no âmbito
do sistema tonal, mas retomando alguns pontos de referência. Por exemplo,
um deles que para mim é muito importante, são as alturas relativas.
O plano – não digo exactamente o plano tonal porque não
é uma obra tonal no sentido tradicional – tonal, quais são
as notas pivot ao longo de cada acto e de cada cena, são fundamentais
para dizer exactamente o conteúdo expressivo. Eu como tenho ouvido absoluto,
eu associo por exemplo um Fá sustenido e um Dó natural - uma coisa
espantosa que tem de ser explorada. Acho que uma das coisas que se perdeu muito
no século XX, e que eu tenho mais pena que se tenha perdido é
exactamente essa “côr” em torno de cada tonalidade. Aquele
peso e aquela capacidade expressiva que havia na tonalidade perdeu-se muito,
essa capacidade colorística da música que é mudar de campo
completamente, estar numa tonalidade, para depois passar para outra. É
um efeito de variedade que eu acho fundamental na música. Para mim, tem
de haver essas notas pivot, esses momentos em que estamos a passar
de um ponto de influência para outro para dar a sensação
de modulação.
Quer dizer, não encaixa dentro das categorias tradicionais de modulação
no sentido de dominantes – tónicas, obviamente que não encaixa.
Mas há um outro sistema que eu ainda não seria capaz de teorizar
assim como aquele que Esteván fez em relação ao Bartók.
Só depois quando li o livro sobre a linguagem do Bartók, e percebi
como aquilo - um sistema espantosamente bem conseguido que eu nunca havia visto
concretizado - me marcou imenso mesmo sem eu saber. Por exemplo, uma das obras
que mais me marcaram na adolescência foi a Música para Cordas,
Percussão e Celesta, e depois, há um ano ou dois, vim a descobrir
a que ponto aquilo é construído dentro de um sistema coerente
e que pode ser desmontado por A mais B. O sistema dos eixos do Bartók
é um sistema fascinante, que eu nunca tinha percebido teoricamente e
que eu agora vejo que eu, intuitivamente, já usava muito aquilo. Aquele
sistema dos eixos a mim diz-me imenso.
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Posições face
à música contemporânea
Uma das coisas que eu tenho sempre em mente é guardar sempre determinadas
notas. Há uma determinada área que eu não estou a usar
que é para ela depois fazer todo o efeito imediatamente a seguir. A mim,
a coisa que mais me afasta da música contemporânea é a ideia
do cinzento, é a ideia de um magma indistinto onde não se pode
variar, onde não se pode ter o efeito da modulação. Eu
acho que o efeito da modulação é um dos efeitos mais fascinantes
da música ocidental e é uma das razões porque se pôde
ir tão longe. A modulação, que é um conceito que
não existia pura e simplesmente na idade média, permite abarcar
campos e mudar de atmosferas. É também o sentimento da perspectiva,
é um pouco o equivalente à perspectiva na pintura, não
é? E acho que se perdeu isso…
Os compositores contemporâneos que mais me marcaram, que mais me atraíram,
foram o Ligeti, Lutoslawski, um pouco o Xenakis, mas confesso que depois me
fartei… mas foram aqueles onde eu senti moldar a música de uma
forma mais física e mais próxima da nossa maneira intuitiva de
sentir… A música que me atrai é uma música que tem
de ter um certo “balanço”. Eu tenho que senti-la minimamente
com o corpo. Não sentir uma pulsação é uma coisa
que me deixa sem pontos de referência. Em termos de ritmo, é o
equivalente ao total abstraccionismo, uma coisa que não me diz nada.
Eu preciso de coisas concretas que estejam a ser apresentadas. Eu preciso de
ideias, preciso de motivos que fiquem na memória. Quando oiço
uma obra quero conseguir reter aquelas ideias básicas para depois perceber
o que lhes vai acontecer. É isso que me fascina na música. É
por isso que eu tenho a tal adoração pelo estilo clássico.
Para mim o Haydn tem sido uma imersão das mais maravilhosas da vida.
É um privilégio poder estar a fazer estes programas na Antena
2, em que quinzenalmente tenho uma sinfonia nova do Haydn para analisar e que
têm sido assim uma descoberta… Quando chegar ao fim das sinfonias
vai ser uma angústia porque é um mundo inesgotável e é
espantoso como se pode construir um universo inteiro dentro de um esquema que
se pode julgar tão rígido e afinal é tão livre que
permite infinitas, milhões de combinações. Mas a mim, o
que me fascina nessa música é poder perceber que conta uma história.
E quando aparece um tema, e depois outro tema. Sabe-se exactamente o que é
que está a acontecer aos temas. É como nos filmes. Eu não
suporto filmes onde não há uma história. Acho que é
um contra-senso… No filme tem de haver uma história. A essência
de um filme é ser uma história bem contada, na música a
mesma coisa. A música deve ter sempre uma história bem contada.
É isso que eu procuro na música – na música que eu
gosto de ouvir e na música que eu faço - contar uma história.
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Importância da actividade
de intérprete para a composição
Acho que condiciona imenso. Havia muitas músicas pelas quais eu, antes
de tocar em orquestra, era fascinado, e que depois de as tocar perdi uma enorme
parte do fascínio. Por exemplo, aquelas que mais me impressionaram por
terem sido uma desilusão tão grande foram as obras de micropolifonia
do Ligeti. As Atmosphères, quando se está a tocar na
orquestra, percebe-se que é completamente execrável de tocar,
porque é uma música totalmente desligada da realidade concreta
do instrumentista. Ali estamos a fazer o papel de máquinas e a vocação
do instrumentista é precisamente não ter nada a ver com a máquina.
Aquilo que eu procuro fazer é uma música que dê para ser
tocada e que tem algo de idiomático, que permite às pessoas exprimirem-se
para lá da partitura. Sobretudo ser idiomática, ser técnica
dos instrumentos, por muito fascinantes que possam ser as novas técnicas
que se encontraram ao longo do século XX, nas quais, em certos casos,
há efeitos fascinantes. Eu tenho empregue algumas, às vezes até
de uma forma caricatural, um pouco a gozar com isso…- aquilo a que eu
chamo o folclore da vanguarda. Há efeitos fascinantes, mas é preciso
não confundir as coisas. Não são, nem nunca serão
a essência de cada instrumento. Não é para isso que os instrumentos
foram feitos e não é isso que eles fazem melhor. Isso é
um condimento, é uma coisa com graça que se pode usar em certas
ocasiões plenamente justificadas, pode-se usar, mas para os intérpretes
é extremamente frustrante. Esse tipo de efeitos, é como aquelas
flautas que têm de estar assim três minutos até conseguir
fazer aqueles quatro sons ao mesmo tempo. Eu não tenho paciência
para isso, acho que é um desperdício. Para isso há computadores
fantásticos. Essa é que é a área em que a música
electrónica e electroacústica permitem fazer coisas que os instrumentos
em si, só de uma forma muito causticante, muito maçadora…
Eu não faria a minha vida com isso, morreria de tédio. Acho que
é um suplício. E é por isso que eu devo fazer música
extremamente idiomática, pensada para cada instrumento. E depois outra
coisa, que é a tal costela de teatro, eu acho que cada instrumento tem
uma personalidade. Uma das razões porque eu gosto tanto da violeta é
porque é um instrumento com muita personalidade. Dentro das cordas é
inconfundível. Aliás, cada um dos instrumentos da família
das cordas tem uma personalidade muito vincada, mas a violeta encarna uma personalidade
com a qual eu me identifico imenso. Que é aquele que não vai na
maré com os outros, e que tem lá o seu mundo e que é um
misto de cómico e de trágico e que ao mesmo tempo é um
solitário, mas com uma certa bonomia, com um certo encanto. É
um instrumento que me fascina, um instrumento com muita personalidade.
É curioso que foi a partir do momento em que escrevi o Concerto para
Violeta e Orquestra, que toquei a solo, que me vi obrigado a fazer “das
tripas coração” e mostrar ou ”tocas ou não
tocas”. Não é para estar aqui a fingir que sou instrumentista,
ou “tocas ou não tocas”. Isso obrigou-me a dar assim um salto
em termos técnicos e, a partir daí, ganhei vontade de também
fazer recitais que agora faço regularmente. Todos os anos faço
assim três ou quatro recitais com piano. Até porque arranjei um
companheiro fantástico - o Bruno Belthoise - e agora, sistematicamente,
estou a percorrer o repertório da viola. Apenas agora, portanto é
uma coisa muito tardia. Eu não conhecia a maior parte do repertório
da viola. É muito pouco conhecido e não é tão pequeno
como geralmente se pensa. Há muitas coisas fantásticas que ninguém
toca.
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Métodos de Composição
Eu costumo compor fora de Lisboa, geralmente na quinta da minha avó onde
não há piano. E isso para mim é óptimo. Porque o
piano é extremamente limitador. Eu, aliás, agora estou às
voltas com uma cena da ópera que tem sido a mais difícil de espremer.
Depois de ter estado na quinta da minha avó onde fiz quatro minutos de
música, bastando-me só sentar e escrever, agora tive de espremer
porque simplesmente tinha ali o piano e portanto queria experimentar tudo, e
isso é algo que me bloqueia. Estando só na minha cabeça,
eu consigo imaginar coisas muito mais livres. Foi uma coisa que me ensinou o
Charpentier. “Nunca componho ao piano” era o que ele me dizia. E
isso mudou muito a minha maneira de compor. Toda a minha aprendizagem com o
Joly foi ao piano, compondo sempre ao piano, e, considerando sobretudo que eu
não sou um pianista - tenho um nível fraco de piano -, não
tenho um desenvolvimento para estar suficientemente livre. Portanto ainda mais
limitado ficava por causa disso. A violeta é ideal para isso, porque
permite tocar aqueles sons, permite ver o efeito certo dos acordes e depois
de ir criando o som sonoro dentro da minha cabeça. É assim uma
espécie de pinceladazinhas que o instrumento vai dando, mas que depois
me deixa solto dentro da cabeça para fazer linhas independentes e texturas
mais complexas. O piano em si não me deixa assim tão solto, deixa-me
muito mais preso.
Para mim, o que é sempre mais difícil numa obra é encontrar
aquele ponto inicial, aquele princípio. Tem de ser as primeiras notas,
o princípio – que é tão importante. Se eu não
me identificar de alma e coração… Aquela primeira frase
da ópera foi uma coisa que eu andei anos à volta daquilo. Que
é a rainha que está a frente da lareira, sozinha e diz: “Se
eu fosse livre, não estaria aqui”. E eu não conseguia encontrar
uma música para aquilo. Até que no verão passado, num dia
qualquer que me sentei … pronto… e era absolutamente aquilo. E aquela
primeira frase da rainha é a pedra de toque para a obra toda. Toda a
ópera surge a partir daí. A organização de tudo
o resto vem desse princípio.
Por acaso aqui não comecei pelo princípio pois vai ainda haver
uma abertura, mas eu não gosto nada de ter assim um esquema completamente
rígido onde depois tente encaixar as coisas. À medida que se vão
fazendo as coisas, elas vão ficando sempre um pouco diferentes daquilo
que se imagina inicialmente. Por exemplo, uma das coisas que me tem ultrapassado
no processo, é o facto da ópera estar a ficar muito maior, de
proporções muito mais vastas daquilo que eu pensava. Aquilo que
eu pensava que iria ser uma abertura de um minuto e meio, ou de um minuto –
o Doido e a Morte tem uma abertura de um minuto -, aqui vai precisar
no mínimo de cinco minutos. Vai precisar de uma verdadeira abertura,
porque o próprio primeiro acto já está em 25 minutos. Portanto,
tem de ter uma verdadeira abertura. E a sensação do tamanho relativo
das secções, e sobretudo do contraste que é preciso…
A coisa que mais me chateia é a ideia de música sem contraste.
Acho que, de facto, a essência da música é pelo contraste,
prender a atenção de quem está a ouvir. E portanto, é
muito importante estar a fazer à medida, acompanhando o evoluir da obra,
que é para poder ter essa evolução psicológica.
Para mim, esse caminho psicológico é a chave de ser “uma
seca” ou de ser muito interessante para o ouvinte.
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O público como elemento condicionante
da composição
Eu faço a música de que gosto. A música que a mim me der
mais prazer… Essa é a essência da coisa. Agora é claro
que eu acho que é saudável que uma pessoa também pense
se as obras dirão alguma coisa a alguém. Estar a escrever uma
música só para nós acho que seria uma coisa extremamente
onanista e estúpida. Também temos que ter uma música que
contribua para a sociedade e que possa trazer alguma coisa às pessoas,
dizer-lhe alguma coisa. Portanto é um misto das duas coisas. Se eu não
gostar, ninguém vai gostar. Por outro lado, se eu fizer uma música,
com a qual eu não me identifique verdadeiramente, simplesmente para que
depois digam bem, isso então é a morte do artista, acho que isso
é o “fim da macacada”.
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Primeiras Obras
A minha primeira fase foi aquela de escrever coisas extremamente tonais, mas
um tonal totalmente intuitivo, com quintas paralelas, e com todos os defeitos
tradicionais. Depois vim a descobrir que estava mais liberto do que eu pensava,
porque fazia essas coisas sem pensar. E portanto essa foi a primeira fase, é
como a fase antes de aprender a ler e a escrever não é? Aquela
primeira fase intuitiva e primordial. Depois foi aquela fase mais ajuízada
com o Joly, com aqueles primeiros Poemas para Soprano e Piano - a primeira
coisa que o Joly me pediu mesmo como obra. E depois o tal Prelúdio
para Cordas, que era uma forma sonata para orquestra de cordas, depois
os tais Três momentos para Orquestra e um Concerto para Metais,
que foi a última obra que fiz, em 1985, antes de ir para Nice, estudar
com o Charpentier.
Era minha preocupação ir ao encontro de arranjar um sistema equivalente
ao sistema tonal, algo que pudesse ser também um sistema. E então
arranjei um sistema que era todo à base de quartas e de quintas, depois
com as devidas fugas às quartas e às quintas para criar tensão,
mas que era todo um quadro baseado em quartas e quintas. Mas depois o Charpentier
abriu- me os olhos e fez-me perceber até que ponto eu me estava a limitar
de forma estúpida. Depois, houve assim uma série de obras de aprendizagem
com o Charpentier, que foram para outras vias. Uma obra que foi muito importante
para mim, foi assim daquelas descobertas, um ovo de Colombo em que fiquei fascinado
comigo próprio, foi um Quarteto para percussão que escrevi,
em que inventei assim uma espécie de um cânone. Era um cânone,
em que não se percebia que era um cânone, em que as várias
vozes surgiam um pouco como “música de formigas”. O Charpentier
olhou para aquilo, ficou entusiasmadíssimo, e disse que parecia uma “música
de formigas”. Era como se cada linha fosse crescendo como um organismo
e as outras fossem imitando a uma distância muito pequenina, fazendo como
que um efeito de um corpo que está parado e que vai começando
a mexer até ter milhões de corpos a mexer ao mesmo tempo. E eu
percebi como eu podia ritmicamente, sem ser naquela coisa de estar a pensar
em acordes e na dimensão vertical, como me poder libertar e fazer uma
coisa muito mais solta. Para mim, foi muito importante como experiência.
Depois o Turbilhão... foram assim obras em que fui tentando
explorar, encontrar uma linguagem. Essa fase que é o Turbilhão,
sobre um poema de Mário de Sá-Carneiro, para baixo e quarteto
de cordas; um concerto de sopros que é Os Nossos Dias, onde
aplicava precisamente essa “música das formigas” e era inspirado
num poema do Alexandre O’Neill, depois, ainda na fase de Nice, o terceiro
ano foi com o Concerto de Flauta. O concerto de flauta foi onde pus
todas essas coisas em prática ao mesmo tempo. E depois, a seguir, levei
a tendência até talvez ao ponto limite. Onde fui mais longe foi
com as Evoluções na Paisagem, uma obra que até
ganhou cá um prémio, daquele concurso de fidelidade da Nova Filarmonia.
Onde ele vai mais longe que nunca é na total multiplicação
das vozes na orquestra, e eu nessa altura ainda não conhecia praticamente
nada de Ligeti, e depois à posteriori vim a descobrir. Tem piada como
ele já tinha visto isto 20 anos antes e eu estava a fazer uma coisa que
afinal de contas era uma coisa comparável. Mas esse obra é assim
um ponto extremo dessa concepção em termos de texturas. Muito
baseada em texturas, em cores, em timbres, em manchas de sons. Depois a viragem
foi, em 1990, com a Antagonia, com a peça de violoncelo solo.
Passar subitamente de uma orquestra para um só instrumento…tive
de começar a partir do zero.
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Obras para instrumento solo e
reacções
Fiz três ou quatro obras para instrumento solo, que na altura em que as
compus mudaram o rumo do que eu fiz. Tem piada, Antagonia surgiu em
1990 e depois, todas as obras que eu escrevi daí vieram na sequência
da Antogonia, culminando no Doido e a Morte. O Doido e
a Morte é a súmula desses anos todos, mas onde procurei fazer
uma música muito mais centrada em cada linha, procurei dar sentido a
cada linha, ao invés de uma multiplicidade de linhas que não se
conseguem distinguir muito bem. Antagonia foi também ir ao fundo
de mim mesmo, assim num tipo de crise existencial quando vim de Nice. Foi quando
estreou o Concerto para Flauta e Orquestra cá na Gulbenkian
e depois houve assim uma crítica qualquer que dizia que era um trabalho
de mérito mas que mostrava um academismo surpreendente num compositor
tão jovem. E aquilo para mim foi uma facada. Eu senti aquilo como um
insulto ao âmago de mim próprio. Acho que quando eu escrevi o Concerto
para Flauta, em 1988, em termos portugueses eu fui quase revolucionário,
pois não havia ninguém, um único da nova geração,
que não estivesse a fazer uma música completamente voltada para
o meio da vanguarda atonal. Portanto o Concerto para Flauta reatava
laços, com certos lados impressionistas, certos lados neo-clássicos,
mas de uma forma pessoal, minha. Ainda hoje identifico Concerto de Flauta
como uma obra completamente minha. E acho que é a antítese do
academismo, sinceramente. E a ideia de fazer uma peça em três andamentos,
na estrutura clássica, um Allegro, um Adágio
e depois um Presto para acabar, tudo aquilo foi expressamente feito
- no fundo usar mecanismos da tradição de uma forma que era ir
contra um academismo que eu achava estar instalado.
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Obras dos primeiros anos da
década de 1990
Depois houve as Evoluções da Paisagem – essa é
uma peça com a qual eu hoje já não me identifico. Acho
que dentro daquela linha, se calhar, para aqueles que apreciam o lado mais abstracto
e mais atonal, é a obra mais interessante que eu fiz. E é um obra
bastante complexa em termos orquestrais, com coisas, com efeitos, que acho interessantes,
originais. Tem uma multiplicidade de linhas e de texturas que de facto é
interessante. Hoje fico espantado como é que fiz aquilo. Há certas
páginas das Evoluções da Paisagem que são
um mar de notas, assim uma página enorme com milhões, parecem
organismos ali a pulular, parece uma criação de micróbios,
é uma coisa espantosa, mas com a qual já não me identifico
nada. Hoje, seria incapaz de fazer uma coisa semelhante.
Foi com a Antagonia que eu comecei essa viagem para uma nova linguagem
mais tonal, uma linguagem mais convictamente apoiada em notas pivot
e em centros tonais. Eu já não tenho prurido em chamar-lhes centros
tonais porque o que eu acho que nós temos que encontrar é o equivalente
para o sistema tonal, que de facto está completamente esgotado. Mas há
equivalentes, coisas básicas do sistema tonal que nós temos que
encontrar. E é isso que eu tento fazer, e aí as notas pivot e
os pólos de atracção são muito importantes. Começou
com o Antagonia, depois houve o Langará para clarinete,
o The Panic Flirt, primeiro para flauta. São peças que
me obrigaram a conhecer melhor os instrumentos. Eu era muito viciado dentro
do mundo das cordas. Toda a minha educação foi no âmbito
dos instrumentos de cordas e despertei muito tarde para a questão dos
outros timbres. Eu lembro-me quando fui para Nice, e ainda não conhecia
muito bem os timbres. Eu era capaz de ficar na dúvida se era uma trompa
ou era um trombone. Havia certas coisas para as quais não estava desperto.
A minha área era completamente as cordas, o mundo do quarteto de cordas,
do quinteto de cordas, dos concertos. Toquei muitos anos na orquestra da Fundação,
portanto era aquilo que eu vivia, era aquilo que me dizia mais. Depois começar
a descobrir os instrumentos, para mim foi o fascínio. E essas obras para
instrumento solo, de facto, foram assim uma porta de entrada fantástica
para cada um desses instrumentos. A flauta e o clarinete acho que tiveram muita
influência no tipo de linguagem. Depois foi no Doido e a Morte,
que conjuguei isso tudo. E é uma ópera que tem muito a ver com
o clarinete, é curioso que o tema inicial de Langará,
é exactamente o tema de fundo do Doido e a Morte, é exactamente
o mesmo tema. E são cinco notas "tá-rá-rá-rá-rá",
e daquelas cinco notas eu construo uma ópera inteira. Isso é o
tipo de mecanismo que me fascina. Conseguir de uma coisa muito pequenina, descobrir-lhe
a essência, transformá-la e faze-la crescer, fazer dela outra coisa
um bocadinho diferente, e depois dessa, outra um bocadinho diferente, conseguir
construir um cosmos a partir desse germe primordial. Isso tem tudo a ver com
aquilo que eu entendo como música interessante, com substância.
Não há nada que me afaste mais do que a ideia de música
que funciona simplesmente como acrescentos, como coisas desligadas entre si.
Eu abomino o pós-modernismo, acho-o o vómito de uma época
completamente decadente, incapaz de criar uma música nova. A ideia de
pegar bocados daqui e dali para colar e fazer uma obra, para mim, é uma
coisa repugnante. Eu abomino o Andy Warhol, a pop-art acho uma coisa
execrável. Acho que é a arte de uma época totalmente impotente.
Depois dos séculos de civilização em que se fizeram coisas
extraordinárias, aquilo depois ser considerado a coisa mais representativa
de determinada época, mostra um vazio perfeitamente nuclear. Foi como
se tivesse havido uma hecatombe e ficássemos reduzidos a nada e por outro
lado é uma ideia de supermercado de estilos, é uma coisa que me
horroriza. Eu acho que em qualquer obra pode haver citações –
e eu gosto de usar citações, a minha ópera a Rainha
Louca está cheia de citações – mas tudo isso
tem sido introduzido de uma forma orgânica, não pode ser simplesmente
pela citação. A coerência orgânica, poder ser tudo
analisado, - que dê tanto para as pessoas que não percebem nada
de música, conseguir perceber, mesmo sem saberem porque é que
estão a perceber, seguir o fio à meada. Permitir a esses, e permitir
também aos “coca-bichinhos”, dos que pegam na partitura e
que desmontam e que vêem, é isto, é aquilo, e que conseguem
fazer uma análise muito detalhada. Eu acho que a Rainha Louca,
tal como o Doido e a Morte – o Doido e a Morte se calhar
é mais complexo em termos contrapontísticos, de mais independência
das vozes, mas a Rainha é muito mais elaborado -, sou eu agora.
O Doido e a Morte sou eu há dez anos. Agora sou uma pessoa diferente.
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Obras posteriores a O Doido
e a Morte
Depois do Doido e a Morte foi uma fase francamente difícil,
porque foi como se eu tivesse gasto os cartuchos todos. De repente senti-me
assim num vazio, o que é que eu faço agora? Sobretudo porque o
Doido e a Morte teve tanto impacto, foi uma coisa que teve reacções
tão fantásticas e críticas tão fantásticas.
Foi o ponto de viragem na minha carreira. Ninguém me conhecia praticamente
e a partir do Doido e da Morte tornei-me conhecido. Foi assim mesmo
uma obra de viragem para mim. Depois disso entrei mesmo naquele auto-bloqueio
típico, da pessoa que não quer desapontar. Quando já se
criaram aquelas expectativas, eu fiquei totalmente bloqueado sem saber o que
é que ia fazer para não defraudar as expectativas que se tinham
criado. E por acaso, foi um erro querer fazer imediatamente outra ópera.
Foi apostar logo tudo. Encontrei o libreto da Rainha Louca, e fiquei
fascinado. A partir de 1995, 1996, a partir daí, estava a alimentar tudo
para aí, sem perceber que primeiro eu tinha que encontrar outros caminhos
para a minha linguagem, para depois poder adaptá-los. Exactamente como
tinha acontecido antes. Se eu tivesse começado por fazer uma ópera
quando fui aprender com o Charpentier, de certeza que tinha sido uma porcaria,
porque primeiro eu tinha que encontrar uma linguagem minha. E foi depois de
maturar essa linguagem que apliquei tudo isso na ópera. E com a Rainha
Louca aconteceu exactamente a mesma coisa. Foram uma série de anos…
talvez dos anos menos produtivos que eu tive. Foi em 1997, com o Bamboleio,
inicialmente uma peça para cravo e marimba, encomendada pela Gulbenkian
- que depois transformei numa peça para piano, e de cuja versão
gosto mais, pois é uma das raras peças que eu compus ao piano,
pensada mesmo para piano - que acho que encontrei qualquer coisa para um novo
caminho pessoal. Foi outro ponto de viragem, que depois derivou para as
Três Variações – uma peça para a orquestra
Gulbenkian. Depois fiz umas peças para coro a capella – uma encomenda
do S. Carlos – onde o facto de escrever para coro foi para mim também
muito importante porque obrigou-me a uma concepção muito mais
harmónica da música. Com um coro não se pode mesmo estar
a pensar naquela coisa absolutamente desligada. Não pode ser uma música
tão apoiada em meios tons e a coisas demasiado indistintas, demasiado
cromáticas. O coro precisa daquela limpidez de quartas, quintas, de terceiras.
Daqueles intervalos bem eufónicos e que fazem um coro multiplicar-se
e fazer harmónicos. Acho que a boa escrita para coro, para mim, as coisas
que funcionam têm que ter sempre assim intervalos muito lineares, muito
límpidos. É isso que multiplica os harmónicos nas vozes
e por isso que resulta tão bem na escrita para coro. Essas peças
que eu escrevi para coro também foram boas para encontrar também
ali uma via, assim de encontrar uma música de outras eras. A primeira
são Cansonâncias, são peças baseadas em
poemas baseados à base de repetições fonéticas.
Comecei pelo poema do D. Dinis que diz: “Levantou-se a velida, levantou-se
a alva, e vai lavar camisas, vai-las lavar alva”. Portanto, a primeira
peça é quase um organum, é quase uma coisa medieval,
assim toda escrita em quartas e quintas paralelas, se bem que numa rítmica
minha assim bastante fluida, bastante variável. Depois a segunda, é
a passagem da Idade Média para o decadentismo, com um poema do Eugénio
de Castro – que é um poema incrível, cómico.
“Na messe, que enlourece, estremece a quermesse…/ O Sol, o celestial
girassol, esmorece…” e é tudo assim: esmorece, estremece…
e para isso fiz assim um tempo de valsa decadente e com oscilações
assim de quintas perfeitas à distância de quarta aumentada, com
uma certa languidez decadentista. E depois a última, que é baseado
num poema do Fernando Pessoa - o poema que eu mais adoro do Fernando Pessoa
- que é “Em horas inda louras, lindas/Clorindas e Belindas,
brandas/Brincam no tempo das berlindas/As vindas vendo das varandas”.
Em que aí é toda uma música muito mais brincalhona, assim
salpicada … numa descontinuidade típica do modernismo. São
três peças em que cada uma delas procurei ir estilisticamente ao
encontro da época da poesia e isso foi importante para encontrar depois
o clima certo para a Rainha Louca, porque eu sabia exactamente aquilo
que queria fazer, só não tinha encontrado ainda o veículo.
E que é essa ideia de um século XVIII imaginário. Era uma
música que tem a ver com o século XVIII, mas que só podia
ter sido escrito hoje em dia.
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A Rainha Louca
A Rainha está a sair um pouco das proporções mas
eu julgo que mesmo assim, acabará por ser abarcável. Acho que
a Rainha somente com o Doido, já faz um espectáculo
e quero que se faça a estreia da Rainha antes de vir o D.
Sebastião - o D. Sebastião é que é
a última. Essa trilogia foi pensada precisamente pela ordem inversa.
Comecei no século XX com o Doido e a Morte, depois no século
XVIII com a Rainha Louca e depois é o século XVI com
o D. Sebastião. Finalmente, a ordem vai ter de ser, quase de
certeza, precisamente a ordem oposta, porque a Rainha está a
tomar proporções muito mais amplas e o Doido e a Morte
é muito mais pequena, é uma ópera de um âmbito muito
mais camerístico. A Rainha terá quase uma verdadeira
orquestra, portanto faz-se o Doido e a Morte como um prelúdio,
e a Rainha Louca como o prato forte.
Uma coisa que para mim é fundamental, e espero nunca mais ter que cair
nisso, é não ir em opções cenográficas e
encenações com as quais não me identifico. Quero ter uma
palavra determinante a dizer quanto a exactamente o que se vai fazer, porque
eu adoro teatro. Vou ao teatro desde sempre, desde miúdo, e estou extremamente
ligado ao mundo do trabalho dos encenadores, ao mundo do teatro. Se há
coisa que me horroriza é a que ponto se chegou longe das partituras,
encenando-se a ópera desligadamente das partituras e, sobretudo, do próprio
texto. Eu acho que quando as óperas são boas e os libretos são
bons, a didascália, tudo o quanto está escrito exactamente que
deve ser, é precioso e deve ser seguido metronomicamente, tem de se fazer
exactamente o que lá está quando são bons. Claro que têm
de ser emendadas umas coisas, há montanhas de libretos impossíveis
no século XIX, que se tem de dar uma volta e fazer uma coisa completamente
diferente, mas quando os libretos são bons… Por exemplo, as óperas
de Pucinni são paradigmáticas. A música que ele escreveu
só faz sentido com aquelas indicações cénicas exactamente
como ele põe. Ou se arranjam uns equivalentes muito bem pensados, mas
será difícil encontrar algo psicologicamente e quase cinematograficamente
tão apropriado para a música que ele escreveu, é quase
impossível encontrar o equivalente perfeito, portanto uma coisa que eu
faço questão, até porque o texto do Miguel Rovisco é
magistral nesse sentido, é seguir exactamente o que lá está.
A didascália do Miguel Rovisco é fascinante. Ele faz uma encenação
e eu agora estou a transpô-la em música. Depois é preciso
obedecer exactamente tanto ao que o dramaturgo fez, como ao que eu fiz e depois,
simplesmente, converter em cena. Hoje em dia extrapolou-se que os encenadores
são um pouco criadores frustados. São pessoas que querem à
viva força mostrar a sua criatividade e a sua personalidade, fazer algo
diferente, sem perceber que estão a ir contra as próprias obras.
É absurdo… há uma discrepância tão absurda
que é: somos cada vez mais rigorosos em termos musicais, em termos de
fazer exactamente em instrumentos de época, as indicações
é fazer cada vez mais exactamente o Urtext do mais urtext
que se possa imaginar. E depois, em termos de texto, é a rebaldaria total
e absoluta. Um dramaturgo escolheu uma época e forçosamente tem
de se fazer noutra época que não tem nada a ver? Estamos no século
XVIII e temos de ver coisas horrendas com pichagens no palco? Isso foi muito
interessante e muito importante como tendência e claro que renovou muito
o mundo da ópera que era um mundo um pouco como um museu de cera, mas
hoje atingi a náusea. Quer dizer, hoje eu continuo a ir à ópera,
temos pouca oferta de ópera, mas mesmo em termos internacionais a média
do que se vê de encenações de ópera é aberrante,
segundo o meu gosto, é aberrante porque não é teatral e,
sobretudo, não é musical. Não segue nem o texto, e para
mim o fundamental é seguir o texto, se o texto é bom.
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Utilização de
tecnologias multimédia
Quase de certeza que na Rainha Louca vai haver, porque há vários
momentos que são totalmente oníricos, e que seriam impossíveis
de realizar de uma forma que não fosse ridícula. Por exemplo,
há um pequeno pormenor que eu posso adiantar – e esses é
dos toques mais poéticos do texto, que é maravilhoso – que
é a rainha, na sua cabeça, a grande obra da vida dela, a coisa
que ela mais adorava era a Basílica da Estrela e isso é uma coisa
histórica – aliás, todo o texto do Miguel Rovisco é
extremamente histórico. A personagem da rainha é fascinante, a
nossa D. Maria I tem sido tão denegrida, durante duzentos anos foi denegrida,
e quando se vai ver mesmo o que se conhece das cartas dela e do que ela era
como pessoa, era uma pessoa maravilhosa, era uma pessoa de uma poesia, de uma
sensibilidade às artes e à poesia, simplesmente não nasceu
para ser rainha, não queria ser rainha, depois era muito religiosa e
ficou totalmente torturada e devastada pelo facto das perseguições
à Igreja, feitas pelo Marquês de Pombal, e de a convencerem, à
viva força, que o seu pai estava a arder no inferno. Isso foi uma ideia
que ela não conseguiu tolerar e portanto foi completamente massacrada
e esmagada pelos seus confessores. Foi a sua grande tragédia. Depois
teve outras tragédias como o facto do seu filho, o primogénito,
que era um príncipe perfeito, maravilhoso - descrito por Beckford no
seu livro como um jovem extraordinário - ter morrido de varíola.
Já se estava a experimentar a vacina na época mas os padres não
autorizaram que se experimentasse nele a vacina, pois achavam que era ir contra
a vontade divina. E ele morreu, e isso foi outro argumento de peso. Um outro
factor que a fez enlouquecer foi a Revolução Francesa e o facto
da Maria Antonieta ser guilhotinada. Pode imaginar-se, o que é que seria
hoje, para uma rainha frágil, sensível, muito fechada no seu mundo,
saber que a rainha de França, a dauphine de França, tinha sido
guilhotinada. Isso foi a gota de água. Acho que foi, de certeza, nesse
momento que ela enlouqueceu definitivamente.
Esse lado onírico é porque ela fala da Basílica da Estrela,
ela naquele quarto, onde não há janelas, ela queria ter mil janelas
que dessem todas elas para a Basílica da Estrela. E depois, outro episódio,
outro momento muito poético, é quando ela conta a experiência
do aeróstato, que foi uma experiência que se fez em Portugal, muito
a la par, ao mesmo tempo que se fez no mundo inteiro. Pouquíssimo
tempo depois fez-se cá, um balão com ar, que se elevou no Palácio
da Ajuda, e ela teve a ideia, que não disse a ninguém, de pôr
dentro do balão um macaquinho a quem ela, secretamente, chamou Estrela.
Depois, enquanto o povo estava todo de cabeça no ar a ver o balão
elevar-se com o macaquinho, ela continha-se e gritava para dentro um grito,
esse sim verdadeiramente revolucionário , - porque toda a temática
da revolução está muito presente nas suas discussões
com a dama de companhia -, esse grito verdadeiramente revolucionário
que é “Foge Estrela, foge para longe desta miséria, para
um mundo melhor, longe dos cães e do lixo deste país”. Depois
no fim da peça, há um embate com o confessor e quando ela lhe
faz frente nós percebemos que o seu filho morreu por causa do confessor.
Aquilo que provocou a sua morte foi todo aquele torniquete horrendo que a Igreja
construiu à volta dela. Ela, depois de enfrentar o confessor, fica sozinha
em palco, e ouve estremecer ao lado, onde há assim uma espécie
de floresta, uma série de flores e de plantas que formam quase uma floresta
no canto, e pergunta: “Está aí alguém? És
tu?”. E, depois aparece o macaquinho que é a Estrela que a vem
levar. E ela sai levada pelo macaquinho, o fim da ópera é esse.
Este é o tipo de coisas que é impossível pôr em prática.
Lembro-me que no Nacional foi feito por uma criança a fazer de macaco.
Era grotesco. Com um macaco verdadeiro é absolutamente impensável,
portanto é o tipo de sequências que têm de ser em vídeo
projectado, projecções que tem de se conseguir criar esses momentos
oníricos. Eu sou um bocadinho alérgico ao multimédia, acho
que é um pouco um tique teatral da moda, é uma voragem que vai
passar, mas quando é usada assim criteriosamente, assim para coisas que
só o multimédia e o vídeo é que pode dar verdadeiramente
o efeito que se pretende, daí sim, porque não usar?
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A questão da verticalidade
em O Doido e a Morte e em A Rainha Louca
Talvez O Doido e a Morte, a ópera, tenha sido o ponto extremo
onde eu cheguei a isso. É uma ópera em que eu, de todo, não
compus ao piano, compus directamente para os instrumentos, e em que levei ao
máximo a minha ideia de independência total das vozes. Portanto
é intrinsecamente contrapontística no sentido em que cada instrumento
é um actor com a sua linha, e portanto não estão ali a
fazer acordes. Cada um tem a sua personalidade e uma voz independente. Eu associo
sempre a cada instrumento e a cada linha uma personalidade. E nisso ligo muito
a música com o teatro. É por isso que a ópera é
para mim uma coisa muito congénita, onde eu encontro exactamente aquilo
que eu queria fazer porque é onde se encontram os dois mundos que eu
mais adoro. Se não tivesse ido para música, de certeza que tinha
ido para o teatro, porque era também a minha maior paixão. E portanto
essa teatralidade o que deu foi essa liberdade, a multiplicação.
A mim o que me fascina na ópera, em relação ao teatro,
é poder pôr várias pessoas a cantar ao mesmo tempo, que
é uma coisa que não se pode fazer no teatro. E fazer isso também
a nível instrumental. O Doido e a Morte, entretanto, já
escrevi há dez anos, depois disso tenho uma obra que já tenho
projectada há oito anos que é A Rainha Louca. Ia fazer
uma segunda edição do Doido e a Morte e não era
isso que eu queria fazer. Sobretudo porque eu já sabia qual era o libreto
que eu queria usar que é uma peça de teatro do Miguel Rovisco
que me fascinou desde a primeira vez que a vi, sobre a D. Maria I, a rainha
louca. Queria encontrar a música certa para aquilo, que era uma espécie
de século XVIII imaginário. Um século XVIII que não
existiu, mas que podia ter existido. Não no sentido de um pastiche,
não é de todo, mas é uma música muito diferente
de O Doido e a Morte, é uma música mais harmónica,
mas que mantém a mesma independência de vozes só que num
sentido mais harmónico. Só ao fim de oito anos de projectar essa
ópera é que encontrei a música. Foi no ano passado que
comecei e agora estou em velocidade de cruzeiro, estou a chegar a meio da ópera
e já é um caminho muito diferente do outro.
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Relações entre
música e o texto
Aquilo que eu sinto intuitivamente desde sempre quando aprendi música
é que a música, é de todas as artes, aquela que mais directamente
exprime milhões de coisas. Podem não ser coisas concretas, mas
são coisas que associando a coisas concretas podem exponenciar o seu
potencial expressivo. E é isso que eu acho fantástico. Poder juntar
um texto – não é o texto que dá sentido à
música, mas é como que iluminada. Para mim, a música é
despoletada pelo texto, o texto é uma coisa que me instiga ideias automaticamente.
Este texto do Rovisco acho que nasceu para ser posto em música e só
no dizer daquele texto encontro-lhe exactamente uma música que acho que
exprime exactamente aquilo que o texto quer dizer. E aí, encontram-se
os dois mundos.
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Teatro Musical e Ópera
Devo dizer que eu gosto mesmo de ópera. O que eu tento fazer é
uma música de ópera que vive enquanto música, que mesmo
que não se percebesse nada do que eles estão a dizer, só
como obras autónomas, como peças independentes, que já
fosse interessante. Acho que no dueto já consegui isso. Acho
que mesmo que uma pessoa não perceba uma palavra do que está a
acontecer, são musicalmente coerentes, fazem sentido e são variados
e portanto, permite-se ouvir. Acho portanto que o que decide da perenidade de
qualquer ópera é a música antes de tudo o mais. Há
montes de obras fantásticas com maus libretos. Mas a música em
si tem de ser suficientemente interessante. É claro que depois, a conjugação
perfeita entre a música e o texto é a maravilha. Mas em relação
ao teatro musical, a mim o que me falta é, quando se põe um texto
em música, conseguir encontrar uma linha vocal, suficientemente interessante,
para compensar, para justificar, o facto de não se estar a falar mas
sim a cantar. A coisa que mais me chateia nas óperas de todas as épocas
são os recitativos. Acho o recitativo um meio-termo execrável.
Enfim há alguns recitativos interessantes, mas são raros. O recitativo
em si é aquele meio-termo, não é carne nem peixe. Não
é nem verdadeiramente música, nem verdadeiramente teatro, é
aquele meio-termo. Uma espécie de código morse teatral. Eu acho
que a essência da ópera, da verdadeira ópera, é encontrar
uma música, aquilo que faz com que o texto só pudesse ser cantado
e não falado. Porque para ser falado então mais vale pôr
um excelente actor ou actriz a falar.
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Em defesa da Música Portuguesa
Em relação à música portuguesa, o facto de me interessar
tanto é uma coisa que começou imediatamente desde que comecei
a aprender música. Foi uma coisa pela qual, desde sempre, tive assim
uma atracção natural. Foi na mesma altura em que apareceram os
discos da Portugalsom. A minha mãe trabalhava no Ministério da
Cultura – e trabalha – e então tinha esses discos todos em
casa. Foi aí que eu ganhei uma adoração pela música
do Luís de Freitas Branco, muito antes de conhecer o Nuno Barreiros que
foi seu discípulo. Eu tinha já uma adoração enorme
pelo Freitas Branco, pelo Bomtempo, eram músicas que eu já conhecia
e ouvia tanto como Mozart e Beethoven. Eram coisas que eu ouvia tanto, e que
faziam parte – e fazem parte – de mim. É uma música
com a qual eu me identifico a cem por cento. Por exemplo, uma coisa que para
mim foi muito marcante foi quando conheci a Serrana, do Alfredo Keil,
uma ópera que só há dois anos vi no S. Carlos. Eu ouvi
uma gravação na rádio, daquelas gravações
inomináveis, dos anos 60, péssimas - quer dizer muito estimáveis
artisticamente, mas muito mal gravadas - o oboé impossível e a
orquestra muito má… mas quando ouvi a Serrana pela primeira
vez, e percebi “O quê, mas nós temos uma obra destas!? Cantada
em português com um texto fantástico, tão teatral, tão
portuguesa, tão inconfundivelmente portuguesa, tão musical, tão
interessante e tão emocionante. Eu fiquei desvairado com a Serrana,
foi assim uma coisa…
Depois, desde muito cedo que comecei a analisar obras. Ainda me lembro que estava
a estudar em Nice, logo no primeiro ano, e o Carlos Achman da rádio,
perguntou-me se eu não queria fazer textos sobre música portuguesa
para o programa dele. Cada vez que pegava num compositor e em todas as obras
que eu encontrava e analisava era uma coisa que me dava assim… É
uma coisa que eu acho que faz mesmo parte de mim, porque vejo nesses compositores
todos os meus avós…
Já eu era compositor, quando soube que tinha um bisavô compositor.
É claro, eu adoro o meu bisavô, mas por quem eu sinto verdadeiramente…
por exemplo o Luís de Freitas Branco, é o meu avô, completamente.
Quando nós vemos, mesmo nos momentos de maior crise havia assim uma figura…
por exemplo, foi o Bomtempo no início do século XIX, depois foi
o Vianna da Motta. O que o Vianna da Motta e o Alfredo Keil fizeram é
de nos pormos todos de joelhos, nunca poderemos agradecer o que aqueles homens
fizeram. A Sinfonia à Pátria, num país qualquer
normal, seria uma obra que toda a gente conheceria e toda a gente adoraria.
E seria feita assim, pelo menos uma vez por ano. No mínimo. E o que vemos
é que ninguém liga nenhuma. Ninguém conhece. Durante décadas
não houve uma única gravação da obra. Durante décadas
não esteve editada.
É uma indiferença amorfa! É uma ignorância crassa
e mesmo nos meios dos entendidos. Nos meios dos musicólogos, quando eu
percebo que há assim certos musicólogos com trabalho, com provas
dadas, e tal, que não conhecem nada! Perguntavam-me no outro dia se os
Madrigais Camonianos eram do Vianna da Motta, quer dizer, são
assim coisas que eu fico estarrecido. O desinteresse assim atávico. Outra
figura que eu adoro e vejo completamente como meu avô é o Frederico
de Freitas. Adoro-o. Os Bailados de Frederico de Freitas é da
música que eu mais adoro desde a adolescência. Por exemplo A
Lenda dos Bailarins foi uma coisa eu ouvi, num concerto dirigido pelo Silva
Pereira, nos tempos em que ainda se fazia essa música como uma coisa
normal, e eu fiquei doido com aquilo, completamente doido. Ninguém liga
nenhuma. Se não fosse agora o centenário do Frederico de Freitas,
passaram para aí uns vinte anos em que não se tocou uma obra do
Frederico de Freitas. É uma coisa inacreditável.
Neste momento corremos o risco da primeira metade do século XX ficar
tão desconhecida como ficou o século XIX. É esse o risco
que nós corremos neste momento.
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