Entrevista conduzida por Miguel Azguime e realizada na Miso Music Portugal (Parede)
Transcrição, redacção, revisão: Pedro Ferreira, Susana Paiva, Marta Catana
Bem, eu comecei a estudar música pequenina – isto já é um
cliché, dito por muitos músicos – mas fui quase forçada a estudar música porque
eu estava num colégio e tinha que lá estar o dia todo, pois os meus pais
trabalhavam. Inscreveram-me em aulas de música, em aulas de dança, para eu
estar ocupada durante o dia inteiro. Tinha formação musical, tinha música com
um grupo de percussão e depois tinha as aulas de dança ,que era o ballet
clássico. E foi assim que comecei a aproximar-me da música e das artes em
geral. Depois disso fui para o conservatório, em Coimbra, onde comecei a ter
aulas de piano e continuei com a formação, mas só aos 14 anos é que comecei
mesmo a gostar do piano. Antes era um bocado inconsciente, o meu estudo do
piano. Não pensava muito o que era a música ou o que é que estava a fazer.
Por volta dessa idade conheci um professor de piano – o
professor Jorge Lee – que tinha vindo de Lisboa, dar aulas em Coimbra, e ele
começou-me a incentivar muito para estudar piano - pois eu tinha uma certa
paciência -e a partir daícomecei a ter mesmo interesse nisso, a
estudar piano muitas horas por dia, como os pianistas fazem em geral. 8 horas
por dia ou coisa assim e não queria fazer mais nada. Mais tarde cheguei a
entrar na Escola Superior de Educação, em Coimbra.
Mas, passado pouco tempo – um ano ou coisa assim –, cheguei à conclusão que
não era bem aquela via que eu queria - ensinar miúdos, não era isso… Não era
isso que me incentivava e decidi procurar outro curso. E foi assim que conheci
o professor João Pedro Oliveira. Foi com ele que comecei a estudar composição e
que comecei a escrever as primeiras peças. E a primeira foi uma peça para
piano, quase uma "brincadeira", porque eu tinha que apresentar uma
peça no exame e fui ter com o professor João Pedro para ele me ajudar a
escrever essa peça. E foitambém
com ele que comecei a estudar mesmo composição, a parte teórica.
Tive um ano de estudo intensivo, da parte teórica de composição, para me
preparar para entrar e foi com o professor João Pedro que fiz isso. E durante
esse ano descobri tantas coisas sobre a composição, quer a parte teórica, quer
mesmo a parte auditiva - ouvir obras - e fiquei fascinada com aquilo. Não é
mentira nenhuma, foi isso mesmo que aconteceu. E estudava mesmo muito, muito.
Fiz o curso normal, na área da composição, e continuei com aulas com o
professor João Pedro Oliveira tanto na música electroacústica como composição
livre e outras disciplinas teóricas, mas estas 2 eram as principais disciplinas
que tinha com ele.
Quando acabei o curso em Aveiro tinha uma necessidade enorme de sair, de
encontrar novas coisas, culturas - saber o que se passava noutros sítios. Era
também uma preocupação académica, para um futuro trabalho cá em Portugal,
porque eu gostava de ensinar no ensino superior e para isso tentaria, lá fora,
conseguir as habilitações necessárias para fazer isso, quando voltasse. Mas por
outro lado não estava a pensar que seria muito fácil ir lá para fora e
conseguir logo estudar composição com quem eu quisesse, ou sentir que era ali
que eu estava. Fui um bocado aventureira, nesse aspecto, porque não sabia o que
iria encontrar. E foi em Inglaterra …- eu pensei noutros sítios, nos Estados
Unidos, em França, na Alemanha - mas, não sei porquê talvez por destino… fui
ter a Inglaterra. Primeiro à Escócia, depois é que vim para Londres e
finalmente para Southampton.
Quando fui para a City University pensava – pelo que eles tinham dito – que
tínhamos “performances” das obras, que tínhamos muitas possibilidades. Fui
muito influenciada para ir para lá, mas quando comecei a ter aulas deparei-me
com uma pessoa que realmente não era compatível comigo e com as minhas ideias.
Não conseguia desenvolver-me mentalmente, nem a nível de composição, com a
pessoa que estava à minha frente. Estive um ano, um ano e alguns meses, e
decidi definitivamente mudar de universidade. Mas aí foi um período um bocado
difícil porque eu própria tive que procurar a pessoa que me interessava e, num
mundo daqueles, tens muitas pessoas com quem podes trabalhar.
O que aconteceu foi que eu fui ter com vários compositores ingleses, e com
conversas e opiniões eles chegaram à conclusão que eu tinha que ir trabalhar
com o Michael Finnissy. Pelo trabalho que eu lhes mostrava, pelas minhas
ideias, pelo que ouviam de mim, era uma pessoa com quem eu tinha de trabalhar,
nem que tivesse que me transferir para outra universidade era isso que tinha
que fazer.
Apesar de ser uma pessoa muito difícil de aproximar à primeira, quando
entramos na mente dele, ou quando ele vê quem tu és, e se funcionarmos
mentalmente acho que é fantástico. Fantástico. E muitas
vezes ele fazia críticas muito duras, e muitas vezes saia das aulasde rastos, não era nada
fácil! Mas tudo o que ele me podia dar era o suficiente para esquecer essas
situações. Foi uma pessoa que me abriu para leituras importantíssimas de
Filosofia, que me abriram os olhos para a composição, para ideias, para
pensamentos, para tudo. Foi fantástico.
Houve um compositor belga – Luc
Brewaeys –
com quem eu cheguei a estudar– tinha-me esquecido há um bocado, mas não é para
esquecer. Durante o período que estive em Londres a tentar procurar um novo
sítio para estudar, eu tinha conhecido uns anos antes o Luc e, por isso,
pedi-lhe para me dar algumas aulas. Ia de Londres a Bruxelas ter aulas – porque
andava um bocado perdida e precisava de alguém que me guiasse durante esse
tempo - e fui várias vezes ter com ele, para falarmos sobre composição, para
ele ver os trabalhos que eu andava a fazer. Essa foi outra pessoa importante.
Eu geralmente quando escrevo uma peça há sempre ideias por trás, ideias
dramáticas, quer de iluminação, quer de cenografia, quer aspectos
extra-musicais. Não sei porquê, mas geralmente quando me vem uma ideia,
geralmente vêm outras atrás relacionadas com outros aspectos que não a música,
e eu, analisando, tentando pensar porquê, talvez vá de encontro a Kagelporque lembro-me de festivais, a que fui na Bélgica,
no Ars Música – era o ano dedicado ao Kagel – de ver algumas peças que me
impressionaram. Tinham pequenos pormenores teatrais que achava fantásticos e,
apesar de no meu caso não ter aquele carácter sarcástico ou cómico, ser mais
dramático e mais trágico, eu fiquei fascinada. Lembro-me uma vez que ainda
estava a estudar em Edimburgo e vim com as minhas malas todas atrás para
assistir a uma conferência do Kagel na Gulbenkian. Portanto eu lembro-me que
fazia todos os esforços para aproveitar as situações em que ele estava presente
ou em que havia concertos.
Geralmente as peças que escrevi começam com uma ideia
vinda de um quadro ou de uma ideia filosófica ou de uma escultura ou algo
talvez extra-musical e depois disso é muito difícil explicar.
Eu acho que há várias facetas, muitas vezes será essa
ideia visual transposta para um gesto musical, que implica os sons e os ritmos
e o próprio gesto. Muitas vezes, por exemplo, se eu utilizar o quadro como
base, elementos do quadro - quer elementos visuais, quer mesmo de performance -
são transpostos, filtrados pelo meu pensamento e transpostos para a peça. Por
exemplo, está agora na minha ideia a peça Mens Sana em que me baseei em
2 quadros de Bosch, The Stone Operation e The Ship of
Fools, e em que – principalmente neste último quadro – a figura do bobo me
transmitiu tanto uma ideia para a própria caracterização das 2 personagens que
eu utilizo na peça, como uma ideia mental, uma ideia
gestual – usada no início da peça.
Os dois personagens vão funcionar como actores e vão
funcionar ao mesmo tempo como transmissores de som. Neste caso têm 2
instrumentos de percussão e vão funcionar na peça, no início e no final.
Portanto vão intervir na performance total da peça.
Por exemplo em Transfiguratio, também me
baseei num quadro, que é chamado Three ages of men and death, de Hans Baldung-Grien, e que me impressionou bastante pelas personagens que
utiliza, no quadro, e que simbolizam as idades, os estádios da vida. Eu
utilizo na peça vários elementos que ele utiliza no quadro - um
véu, um relógio Hour
glass e a própria iluminação que utilizo tem
a ver com as cores que ele utiliza no quadro. Eu tinha necessidade de o fazer
porque a própria música tem a ver com isso, com o passar do tempo
pela vida.
Eu não sei bem se é Teatro-Musical!… Eu, a imagem que tenho, porque até
agora não tive hipótese de realizar a peça completa- isto é, a parte da música e a parte dramática - nas
partituras está tudo escrito, toda a parte envolvente de iluminação, cenários,
actores necessários, bailarinos, está tudo anotado - só que tenho tido certas
dificuldades em que as pessoas aceitem que é tão importante. Por outro lado,
nem eu tenho oportunidade de ver o que é que é…
Mas eu, dá-me a certeza que não é o teatro… music-theatre, não tem a ver com isso.
É como se fosse outro instrumento a tocar, é algo que está integrado. É tudo
que eu posso dizer sobre isso.
Como eu dizia, há muita dificuldade em que as pessoas compreendam que
aquilo que lá está escrito faz parte, faz parte da peça.
Está tudo de tal maneira integrado que o conjunto tem um resultado. Acho
que a peça ser difícil não é razão para que a parte da coreografia ou dos
actores não tenha resultado. Está de tal maneira integrado -os gestos com, por exemplo, um
movimento dos actores- que são
duas partes integrantes.
Por acaso na peça que estou a escrever agora já estou com muita pena dos
músicos mas eles vão, ao mesmo tempo, ser actores– não é bem actores – mas vão ter
que tocar e ao mesmo tempo criar sons vocais - intervir de outra maneira, vão
ter que fazer as 2 coisas simultaneamente. Mas geralmente eu integro outras
pessoas para conseguir fazer isso, eles já têm trabalho suficiente na
partitura.
Eu não sei se falaria em linguagem harmónica, porque
talvez comigo funcione mais com linhas, linhas independentes. Apesar de haver,
é claro que há, uma relação entre as notas, estas funcionam mais como linhas
independentes, como verticalmente. Geralmente, ou tem sido assim, eu crio
melodias através de ideias que provêm dos títulos das obras, relacionando com
letras do alfabeto e fazendo trocas e relacionamentos e, a partir daí, tenho
uma base melódica que também relaciono com ideias teatrais – como referi há um
bocado – os gestos e tudo isso. Neste caso é as melodias - ou se sobe ou desce,
ou se mantêm. Tem a ver com as próprias ideias que surgem, em relação à parte
teatral, dramática, e a partir daí eu começo a visualizar mas em linhas, e não
tanto verticalmente. Verticalmente talvez funcione, para mim, quando eu penso
em texturas ou gestos que têm como principal elemento uma textura.
A melodia é
uma coisa, o ritmo é outra mas, muitas vezes, há um elemento de ligação que tem
a ver com esses elementos teatrais e dramáticos que provém das tais pinturas ou
de outro elemento qualquer que me incentive.
É como se fossem imagens que eu tenho – mentais – e que
se transformam em notas, em ritmos, em situações. É isso.
Obras: “descatalogadas” e “catalogadas” e as obras recentes
Eu não sei se acontece, com todos os músicos compositores, se não, mas eu
considero a obra que escrevo uma experiência, e por isso, talvez as obras que
tu falaste atrás sejam experiências. Esse período foi o período que estive na
universidade de Aveiro, quando comecei a contactar com a composição, a
experimentar e mesmo que seja uma peça escrita do princípio ao fim- tenha duração, instrumentos, tenha
todos os elementos para ser uma peça - eu considero-as experiências. E mesmo
agora, muitas vezes, tenho dificuldade em considerar qualquer trabalho meu uma
obra, pois para mim é mais uma experiência e todo o fenómeno da performance da
peça e tudo, é uma experiência que a pessoa adquire. Talvez mais tarde eu tenha
mais consciência que é uma obra, mas acho que agora é isso que tenho a dizer
sobre essas peças que foram retiradas.
Eu acho que houve talvez duas fases, duas grandes fases, desde Inglaterra.
Uma primeira fase em que eu escrevi as peças, muito instável - ia para um país
totalmente estranho, totalmente diferente de Portugal e tive que me adaptar,
mentalmente, ao local onde estava, às próprias pessoas, à cultura inglesa… E
essa adaptação foi muito difícil, até porque eu não escrevi muito nessa altura.
Escrevi uma peça para violino – que eu considero experiência – fiz muita
orquestração, como falei há um bocado, e depois escrevi uma peça que acho que
foi um ponto de chegada, que foi Solitudo. Por estranho que pareça,
escrevi-a precisamente quando fui para Londres e talvez tenha sido uma peça que
me dava segurança, isto é, era como um ponto de chegada. Era algo que eu tinha
que fazer para me dar segurança naquela altura pois, como referi anteriormente,
tinha que mudar de universidade e procurar professor e precisava de uma
segurança qualquer, em termos mentais. E foi precisamente essa peça que foi
depois tocada na Holanda por um grupo russo.
A partir daí houve outra resposta a esta fase da vida que foi o Argumentum, uma peça que foi tocada
na Capital da Cultura do Porto, em 2001, e que foi uma reacção às pessoas que
estavam à minha volta. Uma reacção de luta e defesa. Por isso é que me surgiu a
ideia de um escorrega e a ideia de considerar aquilo uma rampa e um castelo lá
em cima, onde eu estava a tentar defender. Toda a peça se desenrola à volta
dessa ideia - defesa, ataque - porque era mesmo isso que eu estava a passar
nessa altura.
Foi precisamente nessa altura que o Michael Finnissy me começou a dar
aulas, – tinha começado esta peça – e estava precisamente ainda a ter ideias, a
trabalhar no material. Foi precisamente nessa altura que ele me começou a dar
aulas e começámos a falar mais aprofundadamente sobre os aspectos que eu queria
desenvolver nessa peça. E foi a partir daí que eu comecei então uma outra fase,
que foram todos estes anos a estudar com o Michael Finnissy, e em que tive essa
"injecção" de leituras, filosofia, mesmo a literatura inglesa que me
influenciou muito. Eu não esperava encontrar as histórias e fantasia que
encontrei lá. A literatura inglesa deu-me isso tudo, numa altura em que, se
calhar, precisava esquecer um bocado o afastamento do meu país e sentir-me mais
em casa, nem que fosse mentalmente.
Depois do Argumentum eu tenho 2 peças- Illuminatio eRecordatio - que são 2
peças muito interligadas, mesmo a nível do material e das ideias, e que talvez
estejam muito ligadas a essa nostalgia que eu tinha em relação ao país e às
pessoas. Só que essa fase tinha que passar de qualquer maneira, eu tinha que
sair dessa atitude, e talvez a reacção a isso tenha sido o que vem a seguir
- Transfiguratio, Ludus Aeternus, Mens Sana in Corpore Sano, Monstrum horrendum, fatum hominis, Silens Clamor.
Essas peças começaram a ter, por trás delas, pensamentos
filosóficos mais profundos, relacionados com filosofia de Michel Foucault, Carl
Jung, que havia começado a ler e a ficar fascinada com as leituras. Muitas das
ideias que eles desenvolviam nos seus livros eu retirei, tentei personalizá-las
e utilizá-las muitas vezes como base para as peças que escrevi. E não só isso,
comecei a retirar ideias de pintura também, principalmente de Hieronymus Bosch
- achava muito interessante a simbologia que ele tinha nos quadros. Aquilo
significar outra coisa para mim era muito importante, não espetar ali à frente
das pessoas o que era, realmente, mas por símbolos. Eu isso achei muito
interessante sempre, e continuo a achar.
Talvez (gostasse de falar) sobre uma peça chamada Monstrum
Horrendum, que foi diferente em relação às outras peças porque
baseei-me numa história, de Mary Shelley, que é a história de um monstro - Frankenstein.
Foi diferente nesse aspecto, porque peguei numa história, que na altura
andava a ler e que me impressionou - não só a nível filosófico, mas também a
própria história e o próprio enredo - e a partir daí também construi a peça. E
retirei também aspectos reais da vida, o nascimento do ser humano, todos esses
aspectos relacionados com o Homem e a sua criação, para trabalhar nas ideias da
peça.
O livro acaba dizendo que ele desaparece no infinito e a ideia que eu,
precisamente, dou na peça - que acaba com um piano, com um solo de piano - é
essa incerteza. Isto é, ficamos todos com os pés acima da terra, porque não
sabemos. Ficamos numa atmosfera meia estranha e indefinida, e portanto é essa a
ideia, não é uma destruição mas uma incerteza, um questionamento.