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ENTREVISTA
 
Patrícia Sucena Almeida
Entrevista a Patrícia Sucena de Almeida / Interview with Patrícia Sucena de Almeida
2004/Dec/22
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Entrevista: Patrícia Sucena Almeida

 

Formação e personalidades marcantes

 

Bem, eu comecei a estudar música pequenina – isto já é um cliché, dito por muitos músicos – mas fui quase forçada a estudar música porque eu estava num colégio e tinha que lá estar o dia todo, pois os meus pais trabalhavam. Inscreveram-me em aulas de música, em aulas de dança, para eu estar ocupada durante o dia inteiro. Tinha formação musical, tinha música com um grupo de percussão e depois tinha as aulas de dança ,que era o ballet clássico. E foi assim que comecei a aproximar-me da música e das artes em geral. Depois disso fui para o conservatório, em Coimbra, onde comecei a ter aulas de piano e continuei com a formação, mas só aos 14 anos é que comecei mesmo a gostar do piano. Antes era um bocado inconsciente, o meu estudo do piano. Não pensava muito o que era a música ou o que é que estava a fazer.

Por volta dessa idade conheci um professor de piano – o professor Jorge Lee – que tinha vindo de Lisboa, dar aulas em Coimbra, e ele começou-me a incentivar muito para estudar piano - pois eu tinha uma certa paciência -  e a partir daí  comecei a ter mesmo interesse nisso, a estudar piano muitas horas por dia, como os pianistas fazem em geral. 8 horas por dia ou coisa assim e não queria fazer mais nada. Mais tarde cheguei a entrar na Escola Superior de Educação, em Coimbra.

 

Mas, passado pouco tempo – um ano ou coisa assim –, cheguei à conclusão que não era bem aquela via que eu queria - ensinar miúdos, não era isso… Não era isso que me incentivava e decidi procurar outro curso. E foi assim que conheci o professor João Pedro Oliveira. Foi com ele que comecei a estudar composição e que comecei a escrever as primeiras peças. E a primeira foi uma peça para piano, quase uma "brincadeira", porque eu tinha que apresentar uma peça no exame e fui ter com o professor João Pedro para ele me ajudar a escrever essa peça. E foi  também com ele que comecei a estudar mesmo composição, a parte teórica.

 

Tive um ano de estudo intensivo, da parte teórica de composição, para me preparar para entrar e foi com o professor João Pedro que fiz isso. E durante esse ano descobri tantas coisas sobre a composição, quer a parte teórica, quer mesmo a parte auditiva - ouvir obras - e fiquei fascinada com aquilo. Não é mentira nenhuma, foi isso mesmo que aconteceu. E estudava mesmo muito, muito.  

 

Fiz o curso normal, na área da composição, e continuei com aulas com o professor João Pedro Oliveira tanto na música electroacústica como composição livre e outras disciplinas teóricas, mas estas 2 eram as principais disciplinas que tinha com ele.

Quando acabei o curso em Aveiro tinha uma necessidade enorme de sair, de encontrar novas coisas, culturas - saber o que se passava noutros sítios. Era também uma preocupação académica, para um futuro trabalho cá em Portugal, porque eu gostava de ensinar no ensino superior e para isso tentaria, lá fora, conseguir as habilitações necessárias para fazer isso, quando voltasse. Mas por outro lado não estava a pensar que seria muito fácil ir lá para fora e conseguir logo estudar composição com quem eu quisesse, ou sentir que era ali que eu estava. Fui um bocado aventureira, nesse aspecto, porque não sabia o que iria encontrar. E foi em Inglaterra …- eu pensei noutros sítios, nos Estados Unidos, em França, na Alemanha - mas, não sei porquê talvez por destino… fui ter a Inglaterra. Primeiro à Escócia, depois é que vim para Londres e finalmente para Southampton.

 

Quando fui para a City University pensava – pelo que eles tinham dito – que tínhamos “performances” das obras, que tínhamos muitas possibilidades. Fui muito influenciada para ir para lá, mas quando comecei a ter aulas deparei-me com uma pessoa que realmente não era compatível comigo e com as minhas ideias. Não conseguia desenvolver-me mentalmente, nem a nível de composição, com a pessoa que estava à minha frente. Estive um ano, um ano e alguns meses, e decidi definitivamente mudar de universidade. Mas aí foi um período um bocado difícil porque eu própria tive que procurar a pessoa que me interessava e, num mundo daqueles, tens muitas pessoas com quem podes trabalhar.

 

O que aconteceu foi que eu fui ter com vários compositores ingleses, e com conversas e opiniões eles chegaram à conclusão que eu tinha que ir trabalhar com o Michael Finnissy. Pelo trabalho que eu lhes mostrava, pelas minhas ideias, pelo que ouviam de mim, era uma pessoa com quem eu tinha de trabalhar, nem que tivesse que me transferir para outra universidade era isso que tinha que fazer.

Apesar de ser uma pessoa muito difícil de aproximar à primeira, quando entramos na mente dele, ou quando ele vê quem tu és, e se funcionarmos mentalmente acho que é fantástico. Fantástico. E muitas vezes ele fazia críticas muito duras, e muitas vezes saia das aulas de rastos, não era nada fácil! Mas tudo o que ele me podia dar era o suficiente para esquecer essas situações. Foi uma pessoa que me abriu para leituras importantíssimas de Filosofia, que me abriram os olhos para a composição, para ideias, para pensamentos, para tudo. Foi fantástico.

 

Houve um compositor belga – Luc Brewaeys – com quem eu cheguei a estudar– tinha-me esquecido há um bocado, mas não é para esquecer. Durante o período que estive em Londres a tentar procurar um novo sítio para estudar, eu tinha conhecido uns anos antes o Luc e, por isso, pedi-lhe para me dar algumas aulas. Ia de Londres a Bruxelas ter aulas – porque andava um bocado perdida e precisava de alguém que me guiasse durante esse tempo - e fui várias vezes ter com ele, para falarmos sobre composição, para ele ver os trabalhos que eu andava a fazer. Essa foi outra pessoa importante.

 
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Entrevista: Patrícia Sucena Almeida

Conceitos e processos criativos

 

Eu geralmente quando escrevo uma peça há sempre ideias por trás, ideias dramáticas, quer de iluminação, quer de cenografia, quer aspectos extra-musicais. Não sei porquê, mas geralmente quando me vem uma ideia, geralmente vêm outras atrás relacionadas com outros aspectos que não a música, e eu, analisando, tentando pensar porquê, talvez vá de encontro a Kagel porque lembro-me de festivais, a que fui na Bélgica, no Ars Música – era o ano dedicado ao Kagel – de ver algumas peças que me impressionaram. Tinham pequenos pormenores teatrais que achava fantásticos e, apesar de no meu caso não ter aquele carácter sarcástico ou cómico, ser mais dramático e mais trágico, eu fiquei fascinada. Lembro-me uma vez que ainda estava a estudar em Edimburgo e vim com as minhas malas todas atrás para assistir a uma conferência do Kagel na Gulbenkian. Portanto eu lembro-me que fazia todos os esforços para aproveitar as situações em que ele estava presente ou em que havia concertos.

 

Geralmente as peças que escrevi começam com uma ideia vinda de um quadro ou de uma ideia filosófica ou de uma escultura ou algo talvez extra-musical e depois disso é muito difícil explicar.

 

Eu acho que há várias facetas, muitas vezes será essa ideia visual transposta para um gesto musical, que implica os sons e os ritmos e o próprio gesto. Muitas vezes, por exemplo, se eu utilizar o quadro como base, elementos do quadro - quer elementos visuais, quer mesmo de performance - são transpostos, filtrados pelo meu pensamento e transpostos para a peça. Por exemplo, está agora na minha ideia a peça Mens Sana em que me baseei em 2 quadros de Bosch, The Stone Operation e The Ship of Fools, e em que – principalmente neste último quadro – a figura do bobo me transmitiu tanto uma ideia para a própria caracterização das 2 personagens que eu utilizo na peça, como uma ideia mental, uma ideia gestual – usada no início da peça.

 

Os dois personagens vão funcionar como actores e vão funcionar ao mesmo tempo como transmissores de som. Neste caso têm 2 instrumentos de percussão e vão funcionar na peça, no início e no final. Portanto vão intervir na performance total da peça.

 

Por exemplo em Transfiguratio, também me baseei num quadro, que é chamado Three ages of men and death, de Hans Baldung-Grien, e que me impressionou bastante pelas personagens que utiliza, no quadro, e que simbolizam as idades, os estádios da vida. Eu utilizo na peça vários elementos que ele utiliza no quadro - um véu, um relógio Hour glass e a própria iluminação que utilizo tem a ver com as cores que ele utiliza no quadro. Eu tinha necessidade de o fazer porque a própria música tem a ver com isso, com o passar do tempo pela vida.

 
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Entrevista: Patrícia Sucena Almeida

Teatro Musical?

 

Eu não sei bem se é Teatro-Musical!… Eu, a imagem que tenho, porque até agora não tive hipótese de realizar a peça completa  - isto é, a parte da música e a parte dramática - nas partituras está tudo escrito, toda a parte envolvente de iluminação, cenários, actores necessários, bailarinos, está tudo anotado - só que tenho tido certas dificuldades em que as pessoas aceitem que é tão importante. Por outro lado, nem eu tenho oportunidade de ver o que é que é…

Mas eu, dá-me a certeza que não é o teatro… music-theatre, não tem a ver com isso. É como se fosse outro instrumento a tocar, é algo que está integrado. É tudo que eu posso dizer sobre isso.

 

Como eu dizia, há muita dificuldade em que as pessoas compreendam que aquilo que lá está escrito faz parte, faz parte da peça.

 

Está tudo de tal maneira integrado que o conjunto tem um resultado. Acho que a peça ser difícil não é razão para que a parte da coreografia ou dos actores não tenha resultado. Está de tal maneira integrado -  os gestos com, por exemplo, um movimento dos actores  - que são duas partes integrantes.

 

Por acaso na peça que estou a escrever agora já estou com muita pena dos músicos mas eles vão, ao mesmo tempo, ser actores – não é bem actores – mas vão ter que tocar e ao mesmo tempo criar sons vocais - intervir de outra maneira, vão ter que fazer as 2 coisas simultaneamente. Mas geralmente eu integro outras pessoas para conseguir fazer isso, eles já têm trabalho suficiente na partitura.

 
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Entrevista: Patrícia Sucena Almeida

Linguagem harmónica, rítmica, melódica?

 

Eu não sei se falaria em linguagem harmónica, porque talvez comigo funcione mais com linhas, linhas independentes. Apesar de haver, é claro que há, uma relação entre as notas, estas funcionam mais como linhas independentes, como verticalmente. Geralmente, ou tem sido assim, eu crio melodias através de ideias que provêm dos títulos das obras, relacionando com letras do alfabeto e fazendo trocas e relacionamentos e, a partir daí, tenho uma base melódica que também relaciono com ideias teatrais – como referi há um bocado – os gestos e tudo isso. Neste caso é as melodias - ou se sobe ou desce, ou se mantêm. Tem a ver com as próprias ideias que surgem, em relação à parte teatral, dramática, e a partir daí eu começo a visualizar mas em linhas, e não tanto verticalmente. Verticalmente talvez funcione, para mim, quando eu penso em texturas ou gestos que têm como principal elemento uma textura.

 

 A melodia é uma coisa, o ritmo é outra mas, muitas vezes, há um elemento de ligação que tem a ver com esses elementos teatrais e dramáticos que provém das tais pinturas ou de outro elemento qualquer que me incentive.

É como se fossem imagens que eu tenho – mentais – e que se transformam em notas, em ritmos, em situações. É isso.

 
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Entrevista: Patrícia Sucena Almeida

Obras: “descatalogadas” e “catalogadas” e as obras recentes

 

Eu não sei se acontece, com todos os músicos compositores, se não, mas eu considero a obra que escrevo uma experiência, e por isso, talvez as obras que tu falaste atrás sejam experiências. Esse período foi o período que estive na universidade de Aveiro, quando comecei a contactar com a composição, a experimentar e mesmo que seja uma peça escrita do princípio ao fim  - tenha duração, instrumentos, tenha todos os elementos para ser uma peça - eu considero-as experiências. E mesmo agora, muitas vezes, tenho dificuldade em considerar qualquer trabalho meu uma obra, pois para mim é mais uma experiência e todo o fenómeno da performance da peça e tudo, é uma experiência que a pessoa adquire. Talvez mais tarde eu tenha mais consciência que é uma obra, mas acho que agora é isso que tenho a dizer sobre essas peças que foram retiradas.

 

Eu acho que houve talvez duas fases, duas grandes fases, desde Inglaterra. Uma primeira fase em que eu escrevi as peças, muito instável - ia para um país totalmente estranho, totalmente diferente de Portugal e tive que me adaptar, mentalmente, ao local onde estava, às próprias pessoas, à cultura inglesa… E essa adaptação foi muito difícil, até porque eu não escrevi muito nessa altura. Escrevi uma peça para violino – que eu considero experiência – fiz muita orquestração, como falei há um bocado, e depois escrevi uma peça que acho que foi um ponto de chegada, que foi Solitudo. Por estranho que pareça, escrevi-a precisamente quando fui para Londres e talvez tenha sido uma peça que me dava segurança, isto é, era como um ponto de chegada. Era algo que eu tinha que fazer para me dar segurança naquela altura pois, como referi anteriormente, tinha que mudar de universidade e procurar professor e precisava de uma segurança qualquer, em termos mentais. E foi precisamente essa peça que foi depois tocada na Holanda por um grupo russo.

 

A partir daí houve outra resposta a esta fase da vida que foi o Argumentum, uma peça que foi tocada na Capital da Cultura do Porto, em 2001, e que foi uma reacção às pessoas que estavam à minha volta. Uma reacção de luta e defesa. Por isso é que me surgiu a ideia de um escorrega e a ideia de considerar aquilo uma rampa e um castelo lá em cima, onde eu estava a tentar defender. Toda a peça se desenrola à volta dessa ideia - defesa, ataque - porque era mesmo isso que eu estava a passar nessa altura.

 

Foi precisamente nessa altura que o Michael Finnissy me começou a dar aulas, – tinha começado esta peça – e estava precisamente ainda a ter ideias, a trabalhar no material. Foi precisamente nessa altura que ele me começou a dar aulas e começámos a falar mais aprofundadamente sobre os aspectos que eu queria desenvolver nessa peça. E foi a partir daí que eu comecei então uma outra fase, que foram todos estes anos a estudar com o Michael Finnissy, e em que tive essa "injecção" de leituras, filosofia, mesmo a literatura inglesa que me influenciou muito. Eu não esperava encontrar as histórias e fantasia que encontrei lá. A literatura inglesa deu-me isso tudo, numa altura em que, se calhar, precisava esquecer um bocado o afastamento do meu país e sentir-me mais em casa, nem que fosse mentalmente.

 

Depois do Argumentum eu tenho 2 peças  - Illuminatio e Recordatio - que são 2 peças muito interligadas, mesmo a nível do material e das ideias, e que talvez estejam muito ligadas a essa nostalgia que eu tinha em relação ao país e às pessoas. Só que essa fase tinha que passar de qualquer maneira, eu tinha que sair dessa atitude, e talvez a reacção a isso tenha sido o que vem a seguir - Transfiguratio, Ludus Aeternus, Mens Sana in Corpore Sano, Monstrum horrendum, fatum hominis, Silens Clamor .

 

Essas peças começaram a ter, por trás delas, pensamentos filosóficos mais profundos, relacionados com filosofia de Michel Foucault, Carl Jung, que havia começado a ler e a ficar fascinada com as leituras. Muitas das ideias que eles desenvolviam nos seus livros eu retirei, tentei personalizá-las e utilizá-las muitas vezes como base para as peças que escrevi. E não só isso, comecei a retirar ideias de pintura também, principalmente de Hieronymus Bosch - achava muito interessante a simbologia que ele tinha nos quadros. Aquilo significar outra coisa para mim era muito importante, não espetar ali à frente das pessoas o que era, realmente, mas por símbolos. Eu isso achei muito interessante sempre, e continuo a achar.

 

Talvez (gostasse de falar) sobre uma peça chamada Monstrum Horrendum, que foi diferente em relação às outras peças porque baseei-me numa história, de Mary Shelley, que é a história de um monstro - Frankenstein.

 

Foi diferente nesse aspecto, porque peguei numa história, que na altura andava a ler e que me impressionou - não só a nível filosófico, mas também a própria história e o próprio enredo - e a partir daí também construi a peça. E retirei também aspectos reais da vida, o nascimento do ser humano, todos esses aspectos relacionados com o Homem e a sua criação, para trabalhar nas ideias da peça.

 

O livro acaba dizendo que ele desaparece no infinito e a ideia que eu, precisamente, dou na peça - que acaba com um piano, com um solo de piano - é essa incerteza. Isto é, ficamos todos com os pés acima da terra, porque não sabemos. Ficamos numa atmosfera meia estranha e indefinida, e portanto é essa a ideia, não é uma destruição mas uma incerteza, um questionamento.

 

 

 
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