Entrevista conduzida por Miguel Azguime e realizada na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (Porto)
Transcrição, redacção, revisão: Pedro Ferreira, Miguel Correia, Marta Catana
Há vários dados
aqui nesta história. O primeiro tem a ver com a minha família, não que fossem
músicos profissionais, mas a minha mãe cantava muito bem – e ainda canta. Já o
meu falecido pai não tinha jeito nenhum, embora gostasse de música alentejana.
Recordo-me que, quando era miúdo, cantávamos a várias vozes. Somos oito irmãos
e quando a minha mãe nos apanhava a cantar acabava por nos ensinar uma segunda
voz. Acho que às vezes chegava a inventar uma terceira voz, embora não tivesse
nenhuma formação musical. Ela tinha uma intuição para isso e assim, desde muito
cedo, começámos a gostar e a conviver com a música. No entanto, nada faria prever
que alguém da família seguisse esse caminho.
No Seminário de
Vila Real, entre os meus dez, onze anos, tive um professor que era uma pessoa
extraordinária – e que ainda é vivo, embora já muito velhinho – o Padre Ângelo
Minhava. Esse padre era um auto-didacta e tocava muitos instrumentos. Tinha um
amor imenso pela música e, sobretudo, tinha uma grande capacidade de fazer com
que as pessoas gostassem dela. Recordo-me perfeitamente – e ouvi contar esta
história muitas vezes – que no ciclo preparatório ele punha os alunos a ouvir
ópera e conseguia que eles fossem capazes de ouvir uma ária, sem indisciplinas
visíveis, apesar da estranheza dessa música para a maior parte daquelas
crianças. De facto, ele tinha uma grande capacidade a esse nível.
Na altura, creio
que já era usual na Educação Musical fazerem-se ditados musicais e outros
trabalhos, mas ele deve ter percebido que eu tinha algum jeito e pedia-me para
transcrever canções populares. Como numa turma de 20 ou 30 alunos não havia
hipóteses de fazer um trabalho mais individualizado, ele escrevia-me as
primeiras notas e pedia-me para preparar o resto da melodia em casa para a aula
seguinte. E foi assim que aprendi a lidar com os sustenidos, com os bemóis, os
meios-tons e esses pequenas diferenças. Isso fazia com que uma criança daquela
idade, como eu, sentisse que estava por dentro do processo e não por fora como
um mero consumidor. E assim, espontaneamente, fui-me tornando quase um
compositor. Nessa altura, habituei-me a escrever as músicas e a lidar com elas,
depois acabei por começar a escrever as minhas próprias coisas.
Mais tarde, ainda
no Seminário em Vila Real, tive um professor que tinha recebido formação em
Roma e que tinha um curso superior de órgão, direcção, etc. Com ele começámos a
ter aulas de piano e a fazer algum repertório. Foi aí que percebi que
provavelmente as coisas poderiam ir para esse lado, embora o trabalho não
obedecesse a um ritmo tão regular como o de um estudo num conservatório.
Mas, muito naturalmente, comecei a entusiasmar-me e a ser capaz de fazer mais
coisas.
Mais tarde saí do
seminário e acabei por voltar à estaca zero. Comecei então o curso do
conservatório desde o princípio. Claro que, como eu estive sempre em contacto
com a música, a parte do curso geral fi-lo em exames como aluno externo. Talvez
não de uma forma tão escolarizada como faria qualquer meu colega do
Conservatório.
Depois, do ponto
de vista da composição, tive a figura do Cândido Lima como meu professor já na
parte final do Curso Geral e posteriormente no Curso Superior.
Esse capital de
experiência, de conhecimento e de rigor do Cândido, até mesmo em relação à
música portuguesa – perceber-se-á que ele é uma pessoa que eu diria ter uma
orientação que não pertence muito às escolas vigentes, nem mesmo quando isso
possa parecer mais notório, porque a sua orientação nem tem assim tantos
“parceiros de luta” – mas, dizia, o Cândido manteve essa atitude de honestidade
intelectual em relação às suas opções estéticas, que eu admiro muito, apesar de
não ser a minha opção estética. Portanto, desse ponto de vista, o lidar com uma
personalidade deste tipo, foi muito importante para mim.
Conheci o Jorge
Peixinho já bastante tarde. Gostaria de o ter conhecido mais cedo, porque o
Jorge trouxe para o relacionamento com a música contemporânea alguns dados que
outras figuras com quem eu contactei não tinham ou não os tinham da mesma
maneira. O Jorge era uma pessoa muito latina, muito quente, muitoapaixonada pelas coisas, muito visceral… O seu
gosto pelo requinte, pela instrumentação… Às vezes ouvia-o a falar de Debussy,
ou de outro compositor qualquer, e a forma como ele ficava a falar de uma nota,
de um gesto musical, era uma coisa absolutamente fascinante. Esse tipo de
riqueza, digamos, tímbrica, harmónica e do gosto da cor que estava muito na
música dele tem muito a ver com a forma como eu me situo na música… Eu teria
gostado de o conhecer melhor, enfim… se calhar noutro tempo, mas não tive essa
sorte.
Depois, há um
filão muito grande de influências que tem a ver um pouco com os meus estudos e
com as minhas curiosidades. Eu próprio, a determinada altura, pensei seguir o
curso de Belas Artes, porque gosto muito de pintar, gosto muito de pintura.
Mesmo em relação à minha formação geral, que não foi nada especializada no
sentido contemporâneo da palavra, eu diria que sou – e pode parecer pretensioso
dizer isso – mas diria que sou e que tenho em relação à cultura uma posição
muito renascentista, talvez muito eclética, fruto das minhas muitas
curiosidades e gostos, que não se restringem só à música. Portanto eu próprio
acabo por fazer cruzamentos na música entre muitas coisas diferentes. Acho por
exemplo – por gosto, não sei se por capacidade – que poderia ter feito um
caminho virado para a poesia ou para as artes plásticas.
Portanto as minhas
influências e curiosidades, ou as coisas que me marcaram ao longo deste
percurso são muito variadas e vêm de muitos sítios, e não propriamente só de
uma figura, uma pessoa, uma escola, corrente ou de uma só estética. Nesse
aspecto, talvez seja um pouco “desarrumado” e complicado. Mas gosto de ser
assim.
Como professor de
Análise já há muito tempo, passo muitas horas a tentar explicar a música aos
outros mas quando chega a altura de falar da nossa, dizemos assim: “Ó que
diabo, isto está complicado!” Uma ou outra vez, temos de falar do que fazemos
de uma forma sustentada. Porque uma coisa é dizer duas ou três coisas genéricas
sobre uma obra, ou uma peça. Isso sabemos sempre o que dizer, não é preciso
reflectir muito. Agora analisar uma peça que tenhamos escrito, como se faz por
exemplo em relação a um Bach, um Webern, ou outro compositor… isso já é um
bocadinho mais… Normalmente são outros que o fazem, não é?
Mas há,
naturalmente, algumas balizas onde nos situamos. Julgo que tenho a sorte de
viver num momento em que, do ponto de vista estético, uma pessoa como eu pode
sentir-se num dado lugar. No entanto, vivemos num momento de confrontação de
muitas estéticas, da coexistência pacífica entre elas… e daquiloque até há pouco tempo podia ser considerado
um academismo de vanguarda, ou retaguarda… Hoje há compositores que se sentem
bastantes mais livres em relação àquilo que fazem e, sobretudo, em relação ao
papel que desempenham ou podem desempenhar na sociedade. E isso já é um pouco
diferente.
Há aqui algumas
reflexões sociológicas que têm também a ver com o papel do compositor. Estou
convencido que há 20 ou 30 anos atrás as respostas seriam diferentes das que se
têm hoje. Em primeiro lugar, tudo tem a ver com o relacionamento do compositor
com os intérpretes, com o mundo musical, mas também com o público em geral.
Algumas opções que
fui fazendo, face a essa orientação geral, têm mais a ver com a minha forma de
ser e estar, do que propriamente com a linha dominante. Como digo, vivo num
tempo – e sou mais feliz por isso – em que não me sinto constrangido em
escrever de uma certa maneira só porque recai mais para A, B, C ou D. Do ponto
de vista das estéticas, tenho muito mais a ver com a música francesa, do que
com a anglo-saxónica ou alemã. Uma das razões, é porque quando fui estudante,
nos meus estudos gerais e liceais estudei francês como língua principal,
portanto sou de uma escola, ou de um tempo, em que o veículo cultural era muito
mais francês do que inglês ou americano. Isso não significa que tenhamos de
estabelecer compartimentos estanques e dizer que Debussy ou Messiaen me dizem
mais do que outros compositores imediatamente ao lado.
Quando começamos a
ter um bocadinho de história começamos por perceber que a essência das coisas
se joga quando começamos a eliminar as “banhas”, as gorduras, os excessos. Ou
seja, quando conseguimos exprimir as coisas de uma forma essencial. Isso pode
ser feito de uma forma simples, mas não pobre! A música de Mozart é também
simples, às vezes escandalosamente simples, mas quando os intérpretes pegam
numa partitura dessas e acham que vão tocá-la num instante, só porque tem
semibreves e mínimas, acabam depois por verificar que aquilo, se calhar, é um
pouco mais difícil do que pensavam… Claro que o ouvido quando ouve o produto
final é capaz de perceber essa simplicidade. Mas Mozart, entre outros,
tinha o dom de dizer tudo com pouca coisa. Como, por exemplo, a Sophia de Mello
Breyner, que morreu há uns dias, que tinha esse dom de escrever duas palavras e
dizer tudo.
Eu julgo que o
mais difícil é conseguirmos dizer tudo sem palavras a mais. E essa é a minha
busca, cada vez mais a minha busca…
Eu dou um exemplo
simples: Aqui há um ano ou dois, escrevi uma peça para o Grupo de Música
Contemporânea de Lisboa, peça essa encomendada pelo grupo para a Ana Ester
Neves e para a formação normal do grupo. Resolvi então musicar um poeta aqui do
Porto que eu conhecia há pouco tempo que é o valter hugo mãe. Eu gostei muito
dos poemas dele porque, de facto, eram poemas quase microscópicos. Pareceu-me
logo que poderia fazer qualquer coisa sobre isso. Quando acabei a peça fiquei a
pensar que faltava algo; não que ela fosse fácil, porque até há coisas difíceis
nela, mas também não era propriamente um conjunto de lieder para canto e piano. Tinha uma instrumentação
que não era muito grande, mas também não era tão pequena quanto isso. Tinha
harpa, um trio de cordas, sopros, etc. Mas lembro-me de ter pensado: “Será que
isto não são notas a menos?”. Só depois de ter ouvido a peça é que tive a
certeza que escrevi só as notas que precisava, e nem sempre se consegue isso!
Aquela partitura só tem - e digo-o com convicção – as notas que precisa. Nem a
mais nem a menos. Trata-se então de uma busca, mas é também uma técnica, uma
depuração, até se chegar aos elementos essenciais.
Às vezes
rotulam-nos… - a mim também já me disseram isso – que eu era dageração
da harmonia. Outravez a
harmonia… Eu gosto desse rótulo, porque sempre fui apaixonado pela
orquestração, pelo conjunto. Sempre gostei disso, mas acho que as situações
harmónicas impressas nas minhas peças são muitíssimo mais complexas. Acho que
há gente, que de um ponto de vista técnico, a partir de um certo momento,
consegue fazer bastantes coisas com pouco material. São técnicas que se vão
explorando e desenvolvendo. São experiências que se fazem. Mas eu não sou nada
redutor. Acho que teria uma grande dificuldade em fazer uma peça como as do
Arvo Pärt, ou outro compositor assim. Acho que teria muita dificuldade porque
são demasiadopoucas
coisas. Facilmente – aliás, até por uma questão técnica – tendo a derivar para
questões de combinações sonoras no espaço e no tempo, onde as coisas começam a
evoluir. Há, no entanto, uma preocupação que tem a ver com a minha formação: uma preocupação de ordem, eu diria,
polifónica, na gestão dos vários elementos em presença, fazendo com queos movimentos individuais facilmente se
complexifiquem, trazendo consigo conjuntos de sons, harmonias e sonoridades que
não se esperavam à partida, que não são definíveis pela harmonia de base.
Sob o ponto de
vista da escrita horizontal, mesmo quando escrevo coisas mais complexas – tenho
uma preocupação muito grande em me colocar na pele de quem vai ler horizontalmente
uma linha, ou um movimento. Desse ponto de vista, há algum “modalismo” – não
sei se é a palavra certa – mas há essa preocupação no sentido de a complexidade
resultar mais do conjunto do que das partes individuais. Há então uma gestão
polifónica que torna as coisas muito mais… Eu dou-me conta de estar muitas
vezes a escrever simultaneamente quase os doze sons. No fundo trata-se de uma
complexificação das estruturas polifónicas, sem que se trate propriamente de
clustersque são até
definidas pelo alargamento do espaço, gerando texturas mais ricas. Agora, linha
a linha aquilo funciona de outra maneira.
Eu procuro sempre
fazer sínteses, porque acho que não há propriamente elementos antagónicos.
Enfim, há sobretudo elementos de ordem técnica e até estética que podemos fazer
coexistir. Desde que alguém se lembrou de sobrepor duas tonalidades acho que
então podemos sobrepor muitas outras coisas. Desse ponto de vista, há um
conjunto de realidades que podem coexistir pacificamente, e desse conjunto podem
nascer outras. Isso não me incomoda muito. Aceito que num momento, ou noutro,
isso possa causar alguma dispersão por usarmos materiais de raízes diferentes,
em vários momentos, mas eu gosto disso.
Eu gosto muito de
cinema e das artes do movimento, por exemplo o teatro, e há técnicas narrativas
de montagem. Muitas vezes gosto de utilizar em peças a técnica da montagem
paralela, que consiste em termos duas histórias a ser contadas ao mesmo tempo,
recorrendo ao movimento alterando de uma e outra. Isso são coisas que já usei
muitas vezes e que se baseiam na feroz oposição de dois mundos, ou três, ou
quatro… Inicialmente temos a ideia de um puzzle – e tenho muitas peças que têm a ver com a soma no
espaço e no tempo de coisas muito diferenciadas – e cujo “objectivo” é que
desse conjunto de elementos, que são aparentemente peças de um puzzle, resulte uma percepção mais global. Estou a
lembrar-me, por exemplo, de Schumann e daquelas colectâneasdo século XIX constituídas por pequenas
peças. Tem-se uma imagem de conjunto absolutamente fantástica, feita com coisas
que são quase microscópicas. Esse tipo de construção é um pouco mais visual do
que estrutural e depois tem a ver com outras experiências que fiz também quer
no teatro, quer no cinema e até nas artes plásticas, que me sugerem outras
coisas.
Bem, primeiro a
questão da forma é uma questão essencial para mim, sobretudo quando se lida com
pequenas e grandes arquitecturas. Já escrevi várias obras de 15, 20, 30 minutos
e nesse tipo de formatos a questão da orientação do gesto musical – ou da
não-orientação, evidentemente – é fundamental. Essa é uma busca, e nesse
aspecto devo ser um pouco perfeccionista, porque procuro dar uma resposta mais
simples a um dado problema que, por vezes, pode ser complexo. Mas isto é tudo
uma questão puramente técnica.
Já fiz de tudo. A
mim não me assusta, nem nunca me assustou, o papel em branco. Não preciso de
ter a obra toda definida de uma ponta à outra, de ter uma noção do que vai
acontecer para depois daí deduzir coisas e pormenores. No entanto, já tive
também essa experiência. Em algumas obras, já havia uma imagem completa, com um
título, com um meio expressivo, um projecto com uma estrutura. Mas também me
acontece com alguma frequência o contrário:não ter propriamente um móbil. Muitas vezes
digo aos meus alunos que um compositor pode encontrar mais do que uma maneira
de fazer a mesma coisa. Existe a técnica da variação, da paráfrase, e essas
coisas… E portanto a partir de um determinado momento, começamos a fazer
escolhas e o trabalho do compositor começa por ser cada vez mais o das escolhas
que faz em relação às várias hipóteses que é capaz de colocar no terreno. Por
isso, desse ponto de vista, não me assusto com a folha em branco, porque daí
começam, de facto, a aparecer coisas. Elas começam por auto-orientar-se. Daí
surgem ideias e depois acontece algo engraçado… Não sei se isso acontece com
outros compositores, nunca falei muito sobre isso, mas quando eu termino uma
peça qualquer, sobretudo as de maior dimensão, restam sempre muitas notas de
coisas que nós não utilizámos. Eu costumo guardar aquilo a pensar que poderão
ter ficado ali coisas interessantes que podem ser utilizadas, eventualmente,
noutro momento. Mas o mais engraçado é que fora daquele contexto e desse
momento, aquilo é absolutamente inútil.
Eu diria que os
dados técnicos da música de hoje, são comuns a muita gente, não têm espaço nem
nação. As técnicas de escrita de composição são muito racionais. Um alemão
escreverá como um francês e um irlandês como um sul-africano. Desse ponto de
vista, há uma circulação muito grande de materiais, de ideias, de processos, se
calhar um pouco internacionalista. De qualquer forma, há alguns elementos que
são assim mais generalistas e que não são tão identificadores do espaço. Assim,
todos os compositores portugueses são europeus de pleno direito, não só porque
pertencemos à União Europeia, mas porque esse é o nosso espaço cultural, é
comum, e não haverá assim tantas diferenças de ponto de vista entre a escrita
de A, B, C ou D.
Agora há uma outra
coisa que para mim é importante: A primeira vez que estive no Alentejo, percebi
que os alentejanos são diferentes. Exprimem-se de uma forma diferente, porque
nasceram num sítio diferente, e a geografia faz as pessoas. Há, de facto,
algumas marcas do nascer num dado lugar e num dado tempo que são as marcas do
nosso ambiente, da nossa cultura, do ambiente sonoro, etc. Mal vistas, estas
coisas podem dar origem a nacionalismos complicados e isso não tem nada a ver
comigo. Mas vistospelo
lado positivo, são os elementos que diferenciam, ou que podem diferenciar os
produtos gerados em espaços muito diferentes, tornando-se assim em elementos
identificadores. Essa diferença é boa e positiva, creio. Assim, há um fundo
comum da cultura portuguesa que eu, tanto quanto posso, assumo. Alguns vêm isso
nos títulos das peças que eu escrevo, ou porque ouviram duas, três, quatro ou
cinco vezes nos títulos e o assumem como ideia de ciclo, ou programa. Não estou
tão certo de ser um programa, mas revela de facto alguma preocupação.
Talvez porque
estou simplesmente atento, não só ao espaço musical, como disse à pouco, mas
também porque leio bastantes coisas e vou estando atento. Sou uma pessoa que me
identifico com este espaço e com outras pessoas que sendo de outra arte e outra
área, se situam de uma forma parecida à minha. Não sei se isso é por ser
português – também não sei o que isso quer dizer – mas que terá a ver com este
ambiente que nós respiramos e que gostamos de assumir. Portanto, há uma certa
contradição entre este regional e este global.
Considero que uma
parte relevante do meu trabalho é também, pelos meios que tenho ao meu alcance,
fazer perceber aos outros que este espaço pode ser também deles, independentemente
da sua cultura e do peso social. Eu não me esqueço que vivo em Portugal, e
nesse sentido há também alguma atitude programática nas coisas que faço no
sentido de procurar que a música sirva, não como uma forma de união balofa, mas
de uma forma positiva, fazendo com que as pessoas se possam entusiasmar por uma
coisa… que muitas vezes nunca experimentaram.
Há pessoas que
nunca foram a um concerto de “música clássica” e portanto não sabem como é que
aquilo pode ser bom. Eu lido muitas vezes com amadores quer no trabalho com
coros, quer no trabalho com alunos, etc, e acho que conheço bem essa realidade. Sei que
muitas vezes há certas falsas barreiras que as pessoas se colocam a si próprias
porque nunca fizeram a experiência de dar esse passo. E então eu reconheço que parte da música que
faço, não digo toda, mas sobretudo na música que faço em que estou mais em
contacto com essa realidade, tenho a obrigação de abrir a porta também para
esse mundo. E eu abro. É desse ponto de vista que eu tenho trabalhado, também.
Eu fiz uma ópera
com o Carlos Azevedo e com o Carlos Guedes para a Casa da Música – que ainda
não se chamava assim – em que participavam os moradores de Aldoar. Também trabalho com um coro amador há muitos anos e
tenho muito gosto em fazer música com eles. Componho algumas coisas para eles,
e essa é também uma dimensão do meu trabalho: Mostrar que, de facto, a música
não é uma coutada reservada ou de uma elite, nem um espaço fechado, muita gente
pode entrar aqui… Portanto, a minha música traz também presente alguma marca desta atitude.
Primeiro, eu nunca
quis estar sozinho. A ideia do orgulhosamente só, de ter a minha estética e a
do meu grupo de amigos, essa história não é comigo. Não que tenha propriamente
medo da solidão, porque os compositores até estão habituados a trabalhar
sozinhos. De facto, este é um trabalho solitário. Mas deste ponto de vista,
acho que tem que haver algo mais na nossa música que nos ultrapasse, senão se
calhar nem valia a pena pormos as notas no papel. Acho que a música tem de
chegar mais longe, terá de haver algum princípio de comunicação. Não estou a
dizer que é agora o destinatário que coloca, enquadra ou estabelece quais são
as regras do jogo, não é isso! Eu prezo-me de poder ser eu a estabelecer, pelo
menos, as regras do jogo daquilo que eu faço. No entanto, é evidente que quanto
mais público houver e quanto mais alargado for o espectro das pessoas que vão
receber algo, acho que – até por uma questão de respeito por elas – tenho de
encontrar alguma forma, do ponto de vista da minha própria técnica, da minha
escrita, de lhes dizer alguma coisa.
Ou seja, não é uma
coisa que eu diga assim: “Faço uma peça independentemente de quem quer que
seja, e depois vamos ouvir…” Não! Até por outra razão também… é que eu sempre
trabalhei com isto: Gosto de escrever, não propriamente para o público, mas
para um instrumentista, ou para quem vai cantar… Fiz já cerca de 30 peças (ou
perto disso), para música de câmara e muitas delas foram feitas para um colega,
para uma formação, etc. Muitas nem sequer foram encomendas especiais, embora
haja aqui muitas outras que o foram. Mas como dizia, na música de câmara, mais
de metade certamente, não resultou de encomendas mas do propósito de escrever
para alguém em particular.
Ter em conta de
facto quem é o músico que toca e aquilo que ele faz naturalmente bem, isso é
para mim um dado que tem alguma importância. Mas também gosto sempre que haja
na obra uma ou outra parte que façacaminhar o próprio intérprete. Se estou a escrever
para uma pessoa, um pianista por exemplo, que tocou pouco repertório deste tipo
– e normalmente a esse nível eu conheço o que se vai fazendo – gosto que haja
alguma parte onde ele tenha que fazer algum caminho, mas gosto também de lhe
deixar uma base, onde ele possa sentir que não vai ter de aprender a música
toda desde o princípio. E este feedback eu gosto de manter com o
instrumentista, e depois, naturalmente com o público.