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ENTREVISTA
 
António Pinho Vargas
Entrevista a António Pinho Vargas / Interview with António Pinho Vargas
2003/Apr/12
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ENTREVISTA A ANTÓNIO PINHO VARGAS (Versão Integral)

Como vê a sua primeira experiência profissional, como músico, tão diferente da da música erudita, agora, em 2003?

Se "profissional" quer dizer trabalho pago, comecei por aí em 1969 a tocar em grupos de música pop - não era rock, era pop - e foi a primeira vez que fui pago para tocar. Mas, de facto, só a partir de 1975 ou de 1976 é que passei a encarar o trabalho no jazz - já nessa altura não era música pop - de uma forma séria. Acontece que eu estava a estudar música clássica numa escola, e havia uma espécie de curiosidade dirigida nos dois sentidos. Eu aprendi a viver as divisões nos dois campos. Aquilo que era num sítio tido como interessante e rico, noutro sítio, pelo contrário, era visto como uma fragilidade. Ou seja, foram cerca de dez anos em que eu passava dos meus colegas do conservatório, os meus colegas de piano ou de composição, para os músicos de jazz com quem tocava. E eu apercebi-me que não só havia visões de música diferentes mas visões do mundo associadas a essa visão da música, e isso enriqueceu a minha perspectiva sobre as fragilidades de cada um dos campos e também as riquezas.

Devo dizer que, agora, numa perspectiva individual, acho que o facto de ter subido aos palcos muitas vezes para tocar música improvisada de acordo com regras que entretanto eu ia conhecendo - e elas próprias também iam sendo diferentes ao longo dos anos - me permitiu ter uma visao da música como coisa que se faz, que é feita naquele momento em que se está no palco, e essa é uma perspectiva que às vezes não existe nas pessoas que têm apenas uma relação com a partitura como sendo um objecto que é necessário realizar. Passei a encarar o acto de tocar como sendo ele próprio criativo em si. E, por isso, o que existe hoje na minha vida como resultado directo desses longos anos de experiência disso é uma espécie de pouca confiança na partitura.

A partitura é um suporte fundamental. É necessário estar bem escrita e não ter ambiguidades, mas acho que vivemos numa fase em que é necessário voltar a falar com os músicos para recuperar essa dimensão oral, esse contacto oral que às vezes é muito rico. Eu tenho essa experiência com partituras escritas. A pessoa começa a tocar, e vejo também que cada intérprete tem uma história, a sua história como estudante da música. Olha para a partitura, olha por exemplo para um sinal de "com pedal", "legato", e aquilo, para ele, conforme estudou mais ou menos Debussy - por exemplo - quer dizer mais isto ou menos aquilo. E, mesmo nesses casos, é necessário dizer: "Não, este sinal aqui de legato quer dizer isto, não é exactamente o que estás a pensar".

Portanto, eu acho que o encontro entre um compositor e músicos é uma coisa que é mediada por uma partitura, mas essa partitura, e a sua leitura, pode ser influenciada pelas histórias de vida de cada um. E o facto de eu ter tocado e ter estado em contacto com universos muito diferentes durante muitos anos, permite-me, talvez, tornar menos dramático o momento em que a partitura tem de ser explicada ou, para assim dizer, traduzida em linguagem gestual - porque às vezes um gesto é suficiente, a pessoa percebe imediatamente. E pôr isto numa partitura nem sempre é óbvio...

Estava a falar da experiência das fraquezas e dos pontos fortes de duas práticas musicais muito diferentes... Imagino que a sua formação, em termos musicais, foi bastante tradicional. Essa experiência do Conservatório, do ensino tradicional, ficou no António Pinho Vargas de hoje?

Ficou, ficou. Eu posso falar de duas coisas diferentes, porque fiz o curso superior de piano do Conservatório e há um lado de experiência que tinha a ver com a maneira de tocar... Às vezes pediam-me coisas e eu dizia "Mas porque é que me dizem que tem que ser assim?". Percebi que também aí há história, no sentido de que, se o professor de piano estiver ligado à corrente que vem do Fischer, diz umas coisas, e se estiver ligado à corrente que vem do Vianna da Motta e do Liszt diz outras. É interessante ver que também a maneira de tocar piano tem em si uma história, e como eu também tenho o curso de história, às vezes pensava: "É engraçado, estes estão numa corrente e, portanto, dizem que se toca assim, que só se pode tocar Beethoven desta maneira, ou Debussy não se toca assim, etc". Foi muito interessante poder manter uma espécie de distância, como se eu fosse simultaneamente actor a estudar e, por outro lado, observador da historicidade do saber que me estava a ser transmitido, a princípio de uma forma muito intuitiva.

Enquanto compositor, é evidente que tenho que colocar a coisa na sua cronologia. Comecei a estudar música seriamente já no princípio da década de 1970, com mais de vinte anos. Portanto, o que apanhava era naturalmente o ensino na altura dominante em Portugal, e que era em si próprio contraditório. Os programas dos conservatórios eram os velhos programas tradicionais do Conservatório de Paris de vinte anos antes, com contraponto, harmonia, fuga, sonata e essas coisas. Ao mesmo tempo, os professores tinham aderido, todos em massa, ao modernismo serial e pós-serial. Procuravam adequar e subverter aquela estrutura tradicional fazendo com que, por assim dizer, penetrasse nesta estrutura de ensino tradicional, já um pouco obsoleta, o ensino da música moderna. E aí começaram alguns problemas, porque, por um lado, eu queria saber muito, de facto... Lembro-me perfeitamente de uma viagem a Paris em 1974, em que vim carregado com discos das peças para piano do Stockhausen, da obra completa do Schoenberg, de uma das sonatas do Boulez, das sonatas do Bartók, do Stravinsky e do Webern, naturalmente, as Variações, Op.27. Nós - estou a falar de uma geração - queríamos saber como aquela música era feita. Por outro lado, eu, ao mesmo tempo, tinha uma prática de improvisação, ligada aos pianistas do free jazz - Cecil Taylor, Chick Corea, etc - e reconheci que eles estudaram e tocaram seguramente Webern ou ouviram Stockhausen. Era uma espécie de pegar naquilo a que chamávamos na altura a música de vanguarda, e, pela via auditiva, retirar alguns vocábulos, alguns gestos pianísticos, e usar aquilo na improvisação.

Portanto, por um lado, nesse aspecto avancei muito depressa, mas, no conhecimento das regras internas da composição, estava perante um ensino que era lento e pesado na transmissão desse saber. Todo este período foi um período de assimilação de coisas muito diferentes, e ao mesmo tempo sempre plural. A mão esquerda aprendia coisas mais depressa do que a mão direita e ficava um pouco perplexa. Sobretudo, e acho que devo dizer isto com total clareza, esse ensino do modernismo na década de 1970 - que internacionalmente era um período já de fase descendente dos dogmas - surge um pouco deslocado. Repare que a Sinfonia de Berio, que é uma sinfonia com citações de música e sobreposições de níveis muito diversos, é de 1968. Pouco tempo depois, as pessoas admiravam essa peça, mas não conseguiam transmitir uma visão estética e técnica que relacionasse aquilo correctamente com a noção de estricto que estava associado à maneira de trabalhar com uma série dodecafónica, à maneira de Webern. Os professores não conseguiam transmitir as coisas e diziam: "Aqui temos uma série. Webern faz assim. Componha uma peça." A maior parte das pessoas ficava numa perplexidade e numa impotência. Eu, aliás, disse no meu livro que esta situação começou a mudar com a vinda para Portugal do professor Christopher Bochmann, que teve grandes consequências em Lisboa, e com o início dos seminários do Emmanuel Nunes, dos quais tomei conhecimento a partir de 1982. Antes, havia uma figura individual muito rica, que era o Jorge Peixinho. Compunha peças muito boas, mas tinha um carácter individual muito indisciplinado, ao qual eu achava imensa piada - era um homem, por assim dizer, louco e genial, o que corresponde muito a esse paradigma do génio distraído. Enquanto professor, tive muito pouco contacto com ele, e portanto não sei avaliar o trabalho dele.

A ida à Holanda serviu, até certo ponto, para encontrar essa união entre a receita e o desenvolvimento da receita?

Sim, serviu para várias coisas. Por um lado, para perceber que o ensino que me estava a ser transmitido era um ensino muito marcado do ponto de vista ideológico, ou seja, fundamentalmente representava, sem dúvida, a visão mais dogmática do segundo modernismo - aquele que começa nas décadas de 1950 e 1960. Quando chego à Holanda e apresento ao meu professor um projecto de peça cheio de números e de tabelas de acordes, ele olha para aquilo e diz: "Mas isto não é uma ideia duma peça. Isto é material técnico e eu não estou interessado nisso para já. Eu quero que me fales da ideia da peça". Percebi então que em Portugal se procurava transmitir muitos conhecimentos associados a manipulações que eu agora sei que eram derivadas do tipo de manipulações que Boulez e Stockhausen, cada um à sua maneira, tinham lançado. Portanto, era uma linguagem musical muito particular, e aquilo era transmitido como sendo "é assim que se compõe hoje". Foi aí que percebi que as minhas perplexidades anteriores - muitas delas derivadas do facto de eu ter a prática de músico de jazz e, portanto, ter um contacto físico e, naturalmente, intelectual, com outra maneira de pensar a música - eram partilhadas por muitas outras razões por muita gente pela Europa fora. Não só o meu professor me coloca essa questão - que à partida destabiliza o edifício todo com a sua dicotomia mais ou menos esquizofrénica - como pouco depois eu percebo que muito colegas na Holanda e outros jovens compositores - uns da minha idade, outros mais novos - na Holanda, Alemanha, em Inglaterra, e mesmo alguns em França, por causa da poderosa influência de Boulez, questionavam, cada um deles à sua maneira mas de uma forma crítica, o ensino anteriormente recebido. Eu gosto de contar esta história porque, do ponto de vista simbólico, para mim foi importante.

Quando oiço o Wolfgang Rihm dizer "Quando começo uma peça, não sei quanto tempo vai demorar, em quantas partes se vai dividir, se a meio vai aparecer uma música que à partida não estava prevista, etc..." Ele, por assim dizer, proclama como ponto de partida uma espontaneidade associada ao acto criativo, o que estava nos antípodas do ensino que eu tinha recebido anteriormente - em que, pelo contrário, se dizia que antes de começar a peça já estava tudo fortemente estruturado. Portanto, o papel da Holanda foi fundamentalmente o papel de um ensino e de uma vivência... Isto porque quando fui para lá, já tinha 36 anos - não tinha tempo a perder e tinha consciência disso. Ou seja, eu ia a tudo o que podia. Fazia viagens, ia a Bruxelas, ia à Alemanha, e na Holanda ia a todos os sítios. Passava a vida entre Haia, Roterdão e Amesterdão - lá é muito fácil viajar, são três quartos de hora de Amesterdão para Haia, um quarto de hora para Roterdão. Portanto, passava a vida a ir de um lado para outro permanentemente e a ouvir o máximo número de concertos que podia ouvir. Lembro-me de ter tomado, por exemplo, conhecimento de peças de Messiaen em concerto... Lembro-me da extraordinária impressão que me fez quando ouvi pela primeira vez ao vivo Et Exspecto Resurrectionem Mortuorum, uma peça de que nunca tinha ouvido falar! Porquê? Porque de Messiaen, falava-se só do Modo de Valores e Intensidades. Tive a oportunidade, pouco depois, de ouvir o próprio Messiaen a dizer: "Porque é que só falam dessa minha peça? Há outras". Percebi que, evidentemente, a sobrevalorização dessa obra de Messiaen se dava na perspectiva da obra que deu origem a Structures, para dois pianos, de Boulez, e era uma parte importante da legitimação de uma determinada visão da música.

O que é que o seu professor queria dizer com essa observação? Qual foi o resultado desse desafio?

O resultado foi relativamente catastrófico... Estive seis meses sem conseguir fazer nada... Eu guardo os apontamentos de quase todos os seminários e conferências - tenho um papel ao lado onde de vez em quando escrevo coisas. Descobri, depois, num dos papéis de um dos seminários do Emmanuel Nunes, escondido discretamente no meio de folhas com imensas coisas técnicas - como os exercícios dos pares rítmicos e outras coisas que ele na altura considerava importantes, e eram importantes - que havia umas linhas que diziam que é importante ter uma ideia estética do que se vai fazer. Pode não saber-se ainda que notas é que se vai usar, mas é importante ter uma ideia estética. Ou seja, este problema estava lá, já colocado pelo Emmanuel. Mas, no fundo, digamos que o ensino era predominantemente técnico. Não digo que a questão estivesse completamente ausente, estava apenas em segundo plano. O professor holandês, Klaas de Vries, colocou isso em primeiro plano, e de uma forma radical - disse que nem queria ver os papéis que eu tinha... Não, primeiro eu ia dizer que tipo de peça iria compôr, que música, que som queria ouvir. Portanto, era claramente colocada a ideia estética da peça. E isto poderia ser, por exemplo, colocar uma coisa que eu, mais tarde, vinha a perceber que era útil - que é ter uma ideia metafórica do que se vai fazer. Ninguém começa a escrever um romance sem ter uma ideia do que vai fazer, da história que vai contar. E, duma certa maneira, tratava-se de saber isso mesmo, de poder dizer "esta peça é sobre isto" ou "é sobre aquilo". Demorei imenso tempo a descobrir isso.

Se calhar, essa exigência faz com que o compositor se disponha muito mais. O compositor não se esconde atrás do material, que é uma coisa histórica muito importante - antes pelo contrario, está a pedir a exposição do próprio...

Sim, é uma outra coisa, uma coisa em princípio muito mais profunda e essencial à partida. E eu agora, enquanto professor, muitas vezes peço aos alunos que me falem da ideia. Porque eles chegam e dizem "Professor, agora quero fazer um quarteto de cordas." Mas isto não é a ideia de uma peça, é uma ideia de um grupo de instrumentos. Percebo que essa questão é muito difícil para alunos, e, portanto, vou gerindo essas dificuldades da forma que me parece, intuitivamente, mais correcta. Em alguns casos, a resposta é logo muito positiva. Noutros, pelo contrário, só dois ou três anos depois é que alguém consegue perceber que trabalhar sobre uma série de Fibonacci e uma rede de intervalos a partir daí, pode servir para esta ideia mas já não serve para outra ideia - isto porque a estética e a técnica são uma e a mesma coisa. Ou seja, não há nenhuma técnica separada de uma ideia estética, mas às vezes há que tentar separar colagens artificais entre uma coisa e outra. Certas ideias sobre a técnica fazem automaticamente com que seja desnecessário prescindir de qualquer reflexão de carácter estético. Isto é um bocado complicado... No meu caso, todo esse período foi um período de fortíssima interrogação, em que frequentemente se recolocava a pergunta "Mas afinal, o que é a música?"

E o que é um compositor, não é?

Sim, e se calhar, quem sou eu?... No meu caso, o facto de eu não ter resposta para as outras perguntas queria dizer que eu não sabia responder à pergunta fundamental - "Quem sou eu? O que é que quero fazer?". Portanto, sinto que as minhas peças - e gosto até bastante de algumas das que fiz nesse período - são peças de combate, por assim dizer.

Poderia dar um exemplo de uma?


"Poetica dell'Estinzione, por exemplo, é uma peça em que escolho o material pré-existente, que tento trabalhar à procura de um determinado grau de predominância de terceiras maiores. Tudo isto numa espécie de linguagem esbatida, difusa... Chama-se assim porque estou a trabalhar com duas consciências - estou a tentar dominar o material com a consciência de que ele já acabou. Neste caso, percebi que os títulos e as metáforas que eu próprio associo aos títulos eram muito importantes para me orientar nesse combate. Por um lado, eu estava a usar técnicas que precisava de dominar... Aqui havia uma questão interessante - eu precisava de tentar dominar coisas, tecnicamente, enquanto que, por um lado, suspeitava da sua ineficácia... Ou seja, eu precisava de tentar dominá-las enquanto duvidava da necessidade de tentar dominar. Sei que pareço um daqueles filósofos herméticos de quem ninguém percebe nada, mas a coisa não é muito fácil de explicar. Eu tinha dúvidas sobre muitas coisas, e ao mesmo tempo achava que, tecnicamente, estava relativamente atrasado. Achava que a minha preparação musical estava em planos diversos - nalgumas coisas muito adiantada, noutras menos adiantada, noutras ainda até quase atrasada - e tratava-se de pôr tudo no mesmo nível. Ora, não era fácil para mim saber onde traçar a fronteira entre a posição estética e o domínio técnico.

Falou de uma fase de combate - refere-se ao combate contra esses materiais que supostamente vinham impostos, com um discurso muito prestigioso, e que então eram materiais que não serviam para exprimir o que queria exprimir?

De alguma maneira, sim. Eu disse há bocado que gosto das peças dessa fase de combate - a Poetica dell'Estinzione, da qual já falei, Mirrors, para piano... De uma certa maneira, o facto de eu próprio ser pianista deu à peça um carácter físico que não estava em muitas das outras. E, sem eu dar conta, na primeira peça em que disse que iria escrever para piano, de repente apareceu ali um lado que é o lado da minha relação com o instrumento. É evidente que eu tenho os meus apontamentos sobre o que quero fazer com as notas, e depois o gesto instrumental é inventado por mim no próprio acto de tocar. Ou seja, parece que foi à maneira de Stravinsky - como é sabido, ele compunha ao piano, ao contrário de Schoenberg, que compunha à secretária. Naquele momento, o acto de poder regressar ao piano permitiu que uma parte do gesto que me era próprio enquanto músico - quer como músico de jazz, quer como estudante de música clássica e contemporânea - aparecesse aí aliado à autenticidade que eu estava a tentar encontrar.

No seu livro, identifica em meados da década de 1990 um ponto de viragem. Queria que reflectisse um pouco sobre isso e, eventualmente, que indicasse uma peça que ilustre essa viragem.

Desse ponto de vista, a peça mais importante para mim, e que marca a viragem na minha maneira de trabalhar, é o quarteto de cordas Monodia - Quasi un Requiem. Estas coisas não se decidem por decreto, acontecem. Quis escrever um quarteto de cordas, e quis que fosse sobre a morte. É quase como se tivesse dito que ia fazer um requiem, e, portanto, precisava de uma orquestra, de um coro, do texto litúrgico em latim... Não, mas é quase um requiem. Neste caso, a tradição dá-nos alguns elementos - há coisas, há ideias que já estão formadas tradicionalmente. Um requiem, toda a gente sabe o que é. Há o de Mozart, e há milhares de outros: há o de Brahms, o de Verdi, etc. Mas eu não queria fazer um requiem desses. Portanto, estava com um quarteto de cordas e queria fazer uma peça sobre a morte. Antes de começar a compor, escrevi imensas coisas sobre o som e a sua extinção, uma espécie de expressividade máxima com o mínimo de elementos possível. Fui fazendo uma espécie de romance por palavras sobre o que queria fazer na peça - isto do ponto de vista da ideia. Portanto, antes de começar, escrevi várias páginas de coisas para minha própria orientação. Foi em termos do próprio material musical que se deu a tal junção. Eu comecei e decidi logo algumas coisas. Ia escrever uma melodia muito simples, quase como se escrevesse a peça a uma voz, mas depois percebi que não era a uma voz e sim a duas. A partir deste pequeno núcleo inicial - que era uma melodia muito lenta de três ou quatro notas, com um grande espaço entre cada nota - o acto de o tentar continuar foi um momento de imensa felicidade paradoxal. Isto porque estava a escrever uma peça sobre a morte e, ao mesmo tempo, a fazer uma obra que, a posteriori, era um nascimento meu, e em que era capaz de trabalhar espontaneamente a partir de um material muito simples. A peça foi-se compondo a si própria, e eu acho que, no acto de compor, me ia surgindo o passo seguinte. Neste caso, não precisei, de facto, de grande trabalho pré-composicional. Na verdade, não houve nenhum trabalho pré-composicional, nem em termos de ritmos, nem de notas ou das suas associações. Em cada momento, e uma vez escrita uma página, uma pequena análise do que lá estava permitia-me escrever a segunda e a terceira, e depois uma análise do que estava para trás instalava uma narrativa que para mim foi relativamente fácil de continuar. Eu percebi que a minha maneira de trabalhar era de facto espontânea, e pela primeira vez consegui ser espontâneo nessa dupla vertente, que era manter-me agarrado à ideia da peça e escrever música que se reproduzisse a si própria. Era uma espécie de continuação nada constrangida, com um controlo relativamente distante sobre a forma da peça...

É uma peça que se reproduz a si própria mas que, ao mesmo tempo, não recupera aquela ideia de desenvolvimento orgânico. Há um movimento, um impulso inicial, mas não tem nada a ver com esse tipo de descrições narrativas, não é?


Sim. Eu tenho as maiores dúvidas sobre essa ideologia, que posso chamar de ideologia da organicidade. Acho que há peças maravilhosas que foram feitas, e que servem de modelo, como a Arte da Fuga ou a Oferenda Musical, mas prefiro a Paixão de São Mateus - que já não é uma peça da qual seja possível fazer uma teoria organicista, porque não tem um núcleo único como as outras. No entanto, é uma peça tão genial como as outras duas, diria.

Portanto, aqui, a narrativa é minha, privada. Não há nenhum desenvolvimento no sentido tradicional do termo do material, e, aliás, a peça é bastante estática. Digamos que a sua continuação é a reaparição do mesmo - mas já não é o mesmo, porque apareceu outra coisa - e é nesse sentido do ir indo mas não desenvolver da maneira que ainda é tradicional, por exemplo, num Schoenberg. Foi uma peça muito importante.

A resposta das pessoas é importante. Em relação a esta peça, tem tido respostas ou ecos?

A peça foi estreada por um grupo alemão, o Musikfabrik, no Teatro Rivoli. Eles estavam a fazer esse festival, as Jornadas da Arte Contemporânea, e eu fui assistir ao ensaio. Os músicos tinham estudado muito bem a peça, e isso pôs-me logo de bem com ela - praticamente, tive de dizer só duas ou três coisas muito pequenas. No concerto, aconteceu uma coisa extraordinária. O programa estava mal feito e tinha chegado em cima da hora - o que fez com que metade das pessoas da sala não soubesse qual era a peça que se estava a tocar, porque no programa que circulava estava escrito o nome dum compositor japonês. Algumas pessoas minhas amigas, que estavam na sala, viram no programa a estreia de um japonês, e acharam estranho. Uma pessoa que conhecia muito bem o meu trabalho, enquanto músico de jazz, disse-me depois que mal a peça começou sabia que aquilo era meu. Outras pessoas não sabiam, não conheciam tão bem a minha música. Mas, às vezes, há coisas minúsculas como esta, ou seja, alguém descobrir imediatamente a minha assinatura numa música que à partida não tinha nenhuma razão para reconhecer como tal... E, a partir daí, a peça foi tocada por vários quartetos de cordas, e foi até gravada. O quarteto de cordas de Viena, o Artis, quando fez a peça, estudou-a em Viena em 1998 - já, portanto, cinco anos depois da estreia. Eu vou ouvi-los tocar no concerto às sete horas da noite, e só tenho de dizer que está absolutamente bem - não tenho nada mais a dizer. O primeiro violino diz-me "It´s a fantastic piece". Depois, numa conversa com o segundo violino sobre a atitude que eles tinham, oiço "Nós tínhamos feito muita música do século XX - we tried to play it like normal music!". Ou seja, eles tocam Beethoven, Schubert, etc - é um grupo mesmo vienense - e dizem "nós tocamos muita música clássica, desse período, e tocamos também música vienense do início do século - Schoenberg, Berg, naturalmente, Webern". Mas de repente saltam para as décadas de 1980 e 1990 e dizem que, seja qual for a peça que lhes apareça, "tentam tocá-la como música normal". Portanto, não são especialistas na música contemporânea, que é um conceito um bocado perigoso. Digamos que, tecnicamente, um especialista na música contemporânea é uma pessoa que, às vezes, já não sabe fazer um crescendo ou um legato, porque se especializou em gestos excessivos, que estão adequadamente feitos noutro tipo de música. De repente, vêm aqueles músicos ligados à tradição vienense, tocam a minha peça - que não conheciam de lado nenhum - e dizem-me "it´s a great piece". Eu fico muito contente, evidentemente, e isto tem acontecido várias vezes.

Se calhar poderia falar das obras de grande formato, que são importantes para um compositor... as óperas, por exemplo.

Bem, pouco depois de Monodia, que foi composta em 1993 e estreada em 1994, sei que vou ter uma ópera para fazer, que vai ser o Édipo, e tenho uma encomenda que eu próprio proponho que seja um ciclo de canções para canto e piano, as canções de António Ramos Rosa. Eu próprio escolhi a poesia do livro A Intacta Ferida, e foi o meu primeiro contacto com texto, porque sabia que a seguir ia ter de trabalhar numa ópera - com texto, naturalmente, que seria o libreto. Portanto, decidi fazer essa peça para me confrontar com um texto pré-existente, pois ia ter o grande desafio das operas a seguir. E, por outro lado, como era canto e piano, podia de alguma maneira estar aberto um caminho para regressar à tal gestualidade minha, que me é própria. Logo há a seguir a Monodia, acho que essa peça - o ciclo de canções - é também muito importante. Acaba por demorar vinte e cinco minutos - são nove canções, portanto cada uma terá à volta de três minutos.

A peça que para mim é fundamental é Os Dias Levantados. Tem um libreto excepcional do ponto de vista literário, feito pelo Manuel Gusmão. É um libreto que, por outro lado, põe alguns problemas em termos operáticos, porque, por ser literariamente excepcional, se calhar não é tão manuseável do ponto de vista operático naquela perspectiva do século XIX - da história, da grande morte em cena, etc. E, ao mesmo tempo, era um libreto que levou o encenador alemão Lukas Hemleb a fazer o seguinte comentário: "Bom, vais ter de compor o Parsifal!". Era de tal maneira grande! E então, eu tinha relativamente pouco tempo para compor a peça, e, de facto, foi durante dois anos um trabalho de manhã, tarde e noite sem parar, porque havia o prazo que era restrito - tinha de ser naquele dia, o 25 de Abril de 1998 - e a peça tinha que estar pronta. É uma situação que muitos compositores conhecem no quotidano, mas eu nunca tinha tido uma situação tão extrema de necessidade de trabalhar com tantas dificuldades ao mesmo tempo. O facto de estar o texto à frente... é diverso, é plural, e tem vários registos literários. Por exemplo, num dado momento, para representar a alegria do povo depois do 25 Abril, é o texto de Fernão Lopes, do século XIV. Noutros momentos, há bocadinhos de textos de Sá de Miranda. Pouco depois, há outros registos de linguagem chã, quotidiana, tipo "Tens aí o teu relógio? Empresta-me, porque eu perdi o meu". Surgem até mesmo partes de metáforas do ponto de vista literário extrememente sofisticadas - ou seja, o registo absolutamente oposto. Há simbologia do género "a boneca veneziana com o vestido turco jaz desarticulada" É uma coisa que nem mesmo lida as pessoas percebem exactamente o que quer dizer. Portanto, estava com um libreto que era um desafio enorme, conhecia bem a experiência vivida que era necessário transpor, e, agora, cinco anos depois da estreia, estou a trabalhar neste momento na mistura do disco - portanto, tenho estado muito em contacto com aquela peça. Na altura achava "Ah, com esta peça ninguem vai saber nada sobre o que foi o 25 de Abril"... Isso também porque os jornalistas às vezes me vinham perguntar "Mas não vai aparecer o cantor de Abril, que é tão importante?", e eu dizia "Não, não, não vai lá estar o cantor de Abril". Isto é importante, porque estávamos numa perspectiva realista. Por outro lado, as pessoas das artes e da música de vanguarda iam achar que alguma da minha música naquela peça era completamente impura, porque parecia música popular. Digamos que é a mesma questão vista de duas perspectivas completamente opostas.

O que tem piada é que eu agora, cinco anos depois, acho que aquela história conta o 25 de Abril, se calhar com mais profundidade do que tudo o que foi feito até agora desse ponto de vista. Quer dizer, há vários romances do António Lobo Antunes que nos aproximam muito daquilo, mas acho que é curioso como o tempo exerce o seu poder, e, neste caso, parece-me que o tempo deu àquela peça uma relação com os acontecimentos que eu não pretendi contar. Não era essa a ideia, era mais o captar forças essenciais daquele momento. Esta é a minha opinião - pode ser que, daqui a dois anos, eu tenha outra.

O facto do texto ser ele próprio já diverso e plural fez com que a minha peça fosse mais ecléctica. E também a pressão do tempo... Eu não podia recusar nada, todas as ideias que me vinham à cabeça eram boas. E portanto aceitei tudo excepto duas ou três coisas, de que depois disse "não, isto não pode ser". Em relação às partes que não me satisfizeram na estreia, fiz uma revisão e mudei duas secções. Portanto, eu estou neste momento fundamentalmente satisfeito, confesso. E posso dizer que percebi, com a minha experiência individual, aquela questão que se contava nas nossas aulas de História da Música - que no período da perda da tonalidade e antes de se ter inventado o dodecafonismo, Schoenberg utilizava o texto para lhe organizar a forma. Eu percebi isso no meu trabalho com música sobre um texto pré-existente - ou seja, quer nas canções, quer nas óperas, o texto organiza-me a forma, mas não me organiza a música. A música sou eu que a tenho de fazer. Mas o facto de ter de dizer "de aqui até ali é Cena I", isso organiza-me a forma, quer eu queira, quer não. Nessa medida, como estamos simetricamente numa posição - eu, pelo menos sinto as coisas dessa forma - já não temos a tonalidade, tal como Schoenberg, mas também já não temos aquela visão fechada do que é a música contemporânea - onde, em princípio, uma série de respostas estava dada à partida, e também uma série de exclusões estava incluída nessas respostas. Não se podia usar um acorde perfeito porque historicamente estava datado, não se podia usar um ritmo pulsado porque era Stravinsky, não se podia usar uma série de coisas. Portanto, era uma espécie de música que se afirmava mais pela negativa - ou seja, pela quantidade de exclusões que impunha - do que propriamente pela afirmação de uma linguagem. Aliás, acho que, se há coisa que define o século XX, é a tentativa de dar resposta ao fim da tonalidade. Por examplo, o Britten dá uma resposta, que é usar uma tonalidade mais ou menos indisciplinada, o Shostakovich faz o mesmo, e depois há outros que recusam, e inventam sistemas alternativos - e esses sistemas alternativos mostram as suas limitações ao fim de dez ou quinze anos...

Isso leva, também, a pelo menos duas questões que resultam, por um lado, do conceito da forma, a tonalidade sendo, no fundo princípio organizador da própria forma, e a outra questão, que acho que então em Os Dias Levantados colocou de forma claríssima, que é a relação dos compositores do século XXI com o que o António Pinho Vargas, e não só, chama objectos sonoros - e até que ponto essa relação não é uma tentativa de resolver determinados problemas.

Gostaria de pegar nestas questões da seguinte forma: para mim, compor é estar lançado num processo, isto para me exprimir em termos heideggerianos. Estou lançado num processo do qual não conheço o fim. E aí devo dizer que oiço muito pouco as pessoas falarem da sorte, a propósito da sua actividade artística. Eu acho que a sorte é um elemento fulcral da actividade artística... É preciso ter sorte, partindo do princípio que existe talento ou qualidade nos compositores. No entanto, há algumas peças que são melhores que outras. Isto em todos os compositores, mesmo no Bach - é preciso ter sorte...

Sorte e, se calhar, usá-la sem vergonha.

Sim, sim. Mas nesta altura, digamos, de 1993 em diante, percebi que teria de ter os meus próprios critérios. O ponto onde estabeleço fronteiras entre "isto posso fazer, isto não posso fazer". Sou eu que tenho que decidir, de acordo com critérios que são os meus. Não posso tomá-los como universais e dizer: "a minha fronteira está aqui, e esta deve ser a fronteira para todos os outros". Desse ponto de vista, eu acho que deve existir uma articulação entre as relações dos diferentes objectos que eu, num dado momento, aceito como existentes. Portanto, estamos num processo, no qual estou lançado. Durante o processo, eu faço determinadas associações que, num dado momento, podem passar por dizer " aqui entra este acorde perfeito" ou "aqui entra esta música" - e eu posso relacionar isso com uma certa música do passado. Estar neste processo é muito diferente de ter à partida outra vez uma decisão prévia, como "a minha música vai ser poliestilística". É que não tem nada a ver, porque estou no processo, e pode aparecer uma mudança súbita e quase inexplicável de registo - e eu reconheço "Ah, isto parece um recitativo do século XVIII. Porque eu estou no processo, e apareceu-me essa ideia, e eu aceitei-a como possível. Mas ter uma atitude poliestilística, como Alfred Schnittke, que teorizou isso, ou Sofia Gubaidulina - de quem gosto muito como compositora - não quer dizer que todas as obras sejam igualmente assim.

Portanto, chegado a este ponto na descrição que eu estava a fazer, posso dizer que a diferença com o que se passava antes é que eu não poderia, de acordo com essa ideologia, aceitar certos objectos. Tinha de os afastar absolutamente, porque tinham conotações estilísticas negativas com a música do passado, e portanto enfraqueceriam a obra pela sua simples presença. No entanto, eu recuso essa interdição, e aceito o objecto - mas aceito-o com as conotações estilísticas negativas. Faço-o de acordo com os meus critérios, ou seja, quando, num dado momento, as tais associações do processo em que estou lançado me aparecem à frente e me aparece uma determinada ideia musical com as ditas conotações, é, em cada momento e em cada peça, que eu tenho de tomar a decisão de sim ou não, se vai para aqui ou se vai para ali, se tenho que procurar outro caminho.

Eu de facto sublinho que, ao estar num processo, não estou numa posição em que aceito tudo - aceito aquilo que quero aceitar. Essa decisão é que passou para mim, enquanto que, no passado, essa decisão não era minha. Eu tinha que estar ajustado a um determinado lugar ou a uma determinada análise sobre a questão de qual é o estado actual da linguagem musical.

Para passar a uma coisa que tem a ver com isso e que ao mesmo tempo não tem a ver, no início falou sobre a importância da experiência do jazz na relevância que tem o gesto do intérprete. Queria que falasse um pouco sobre isso - já não a importância do gesto, mas a importância que tem o corpo do intérprete. É uma coisa da qual raramente se fala, mas que imagino que tendo a experiência de palco que tem, deve ser algo a que dá importância. Os músicos têm muito medo de falar do corpo. Estava a pensar nas suas peças instrumentais, como a que escreveu para o Miguel Henriques.

Ia justamente falar dessa peça. O Miguel Henriques foi meu colega na Escola de Música, e somos amigos há quase trinta anos. Umas vezes ele tocou para mim, outras vezes toquei eu para ele - ajudámo-nos mutuamente ao longo dos anos. Mesmo na altura em que ele esteve em Moscovo e nos Estados Unidos, quando vinha de férias encontrávamo-nos e às vezes passávamos uma tarde inteira a tocar. Acho que o momento mais maravilhoso, na minha perspectiva, da actividade de compositor, e uma vez terminada a peça e saber que ela vai ser tocada, é o momento do contacto com os músicos que a vão fazer. Eu adoro os ensaios das peças, especialmente quando não há pressa, quando não há aquela atitude institucional - "já são oito horas, acabou o ensaio" - coisa que acontece às vezes antes do momento em que deveria considerar-se o ensaio terminado. Portanto, eu gosto de trabalhar com os músicos, e as peças são escritas para serem tocadas por músicos. Quando eu, no início da conversa, falei do tal excesso de confiança na partitura e da necessidade de voltar a falar, é porque gradualmente reconheci o prazer de voltar a falar com músicos. Tomo quase como paradigma aquela história que conta uma grande cantora húngara, que faz muitas peças do Kurtág, e que diz que estava uma vez já vestida para subir para o palco e cantar, e ele aparece atrás dela a dizer "olhe, naquele sítio, se pudesse fazer piano em vez de mezzo-piano...". Já sei que isto não se pode fazer, mas o que eu gosto é de considerar que, no momento em que vou tocar e que vou entregar a peça ao músico, a peça ainda não está acabada - ou seja, está aberta às sugestões que ele pode fazer. É um quadro geral, fundamentalmente feito do que é mais importante, mas que está apto a receber sugestões. Falo de sugestões de tempo e de sugestões de "olha, experimentamos este solo" - como no caso dos instrumentos de percussão, que são os músicos com quem eu gosto mais de falar, e eles também gostam mais de falar com os compositores. Isto porque dizem "ah, se eu tocar aqui tem um som, se tocar ali tem outro" - e aí parece que estamos todos envolvidos numa coisa que afinal é a criação da obra, e que passa a ser minha e deles. Quando eles assumem que a obra é assim, que precisa do seu contributo, e naturalmente do contributo do seu corpo... Porque é com o corpo que se faz música, é uma actividade física, que consiste em tocar o instrumento que se tem. Nessas alturas, sinto-me em casa, no sentido que sinto que estou outra vez a poder falar com os músicos sobre a música que vai existir - e, portanto, deixou de haver aquela relação quase hierática em que o compositor é um personagem relativamente sinistro, que está lá ao fundo com um papel à frente e com um ar ameaçador, e os músicos estão a tremer porque não conseguem tocar aquela dose incrível de quialteras, cuja necessidade não compreendem. Eu não quero este paradigma na minha vida.

Há compositores que dizem: "Quando ponho a barra dupla, acabou..."

Está feito, é para fazer exactamente como está escrito. Pois... Isto é interessante, porque muitas vezes também aqui há uma fronteira que sou eu que traço. E, sobretudo as questões do tempo, por exemplo - que à partida é a coisa mais flexível do mundo - porque senão, não havia versões de Sinfonias de Beethoven que demorassem mais um minuto ou dois ou quatro do que outras versões. Portanto, o tempo, à partida, é onde a música tem lugar, e, por natureza, não é rígido, não é cronológico, não é mecânico no sentido do relógio. Por vezes, no entanto, pequenas diferenças de tempo podem destruir uma passagem e a sua eficácia. Quando tenho discussões com os músicos, normalmente é sobre questões de tempo. Eu digo "não, aqui não percebeste bem, porque se for um bocadinho mais rápido, já deixa de ser o que é, tens de voltar atrás". Quando é um ou dois ou três músicos, essa conversa é rica. Quando é com cem pessoas, tem de ser com o maestro, e torna-se uma espécie de bola gigantesca, às vezes quase imparável, e depois no concerto um tipo está a ouvir aquilo demasiado lento e não pode fazer nada. É esse o momento em que tenho nostalgia de estar no palco enquanto músico - porque aí, eu sei que bastava tocar uma nota ou duas um bocadinho antes, e esse pequeno gesto meu poderia eventualmente colocar o tempo no lugar. O facto de eu saber isto, enquanto músico executante, de certa forma atribui aos músicos aquela que eu sei que é a sua importância. A grande vantagem, por exemplo, daquele ciclo de concertos da Culturgest para mim foi ter-me dado a oportunidade de ouvir as peças duas vezes. Porque às vezes as pessoas, e em Portugal isso era corrente durante muitos anos, viam a peça e a estreia como uma e a mesma coisa. A peça e a primeira interpretação colavam-se como uma entidade única. Isto é falso. Quando há duas interpretações percebe-se imediatamente que a peça e a primeira interpretação não são uma e a mesma coisa, e por isso a crítica feita a uma primeira audição deve ser sempre relativa, porque não se sabe ainda o que é que aquela peça poderá vir a ser numa segunda e numa terceira interpretações.
 
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