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ENTREVISTA
 
Isabel Pires
Entrevista a Isabel Pires / Interview with Isabel Pires
2006
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Primeiros passos na composição

A minha chegada à composição foi por acaso, um bocado empurrada por pessoas com quem me cruzei pelo caminho. Comecei a estudar música com 13 anos – quer dizer, não propriamente a estudar, mas a aprender assim umas coisas. Entretanto o meu grande sonho era ser bióloga, que é uma área que ainda me fascina. A meio do caminho, cortaram-me o sonho e convenceram-me a seguir Contabilidade. Entre Contabilidade, Biologia e Música não há nada a ver e como detestei Contabilidade resolvi que tinha de ter uma tábua de salvação ali ao lado, para não ter que voltar atrás e voltar a fazer o secundário todo. Segui então música, o que me trouxe uns problemas familiares mais ou menos graves. Houve umas pessoas que ficaram doentes porque eu tinha decidido seguir música…

Foi uma decisão complicada quer a nível familiar, quer para mim porque não é propriamente muito fácil ir contra toda a família e todas as pessoas lá de casa. Com 17 anos decidi vir para Lisboa, para o Instituto Gregoriano começar a aprender música. Nessa altura conheci pessoas como o Christopher Bochmann e o Nuno Mendes, que me inculcaram o gosto não só pela música em si – ouvida, tocada e estudada – mas pelo fazer a música, no sentido da composição. Comecei a apaixonar-me pela composição quando fiz Análise e Técnicas de Composição. Tinha uma imensa vontade de saber não só como se fazia na teoria, mas também como poderia passar à prática, e isso mantém-se ainda hoje. Até que um belo dia, ainda muito antes de terminar o Instituto Gregoriano – eram oito anos na altura e eu só lá estive quatro – o professor Bochmann disse-me: “Olha, não te queres, por acaso, candidatar à Escola Superior de Música? Há um curso de composição e tu até tens jeito...” Eu estava a terminar o 12º ano na altura e pensei: “Bem, porque não?”. Candidatei-me e entrei. Portanto, deixei o Instituto, que ficou inacabado até hoje. A partir daí fiz os dois primeiros anos, depois interrompi por razões pessoais e reingressei em 1998. Quando reingressei, comecei a estudar Electroacústica com o António de Sousa Dias. Eu nunca tinha mexido num computador, estava completamente ao lado dessa realidade, e comecei a achar muito interessante o acto de se poder trabalhar com outros sons reais. Não com só com os símbolos dos sons ou as notas, mas com os sons em si. A partir daí, o caminho derivou rapidamente para o lado da música electroacústica, sem no entanto ter deixado a música instrumental. Isso concretiza-se no facto de eu gostar muito de fazer música mista, onde junto os instrumentos e a electrónica em tempo real.

Os compositores que me marcaram ao longo da vida - uns por razões mais positivas que outros - foram sobretudo compositores como Ligeti, de cuja música eu gosto muito, sobretudo pelas suas ideias em relação à música electrónica – não que ele tenha feito muita, mas porque todos os conceitos de micropolifonia me interessam muito. Interessam-me pessoas como Grisey ou como Xenakis. Interesso-me pelas técnicas seriais, no sentido lato – portanto nem o serialismo estrito, nem o dodecafonismo nem o serialismo integral me interessam. Interessa-me mais o que está por trás, a ideia de combinação de várias coisas, com várias ordens e vários métodos – portanto, mais o método serial do que a técnica “pura e dura”. Entretanto fui parar a Paris, também um pouco porque alguém me disse: “Olha! Manda umas coisas para Paris!” O António de Sousa Dias tanto me “chateou” que eu um dia enfiei as coisas dentro de um caixote e disse: “Pronto, Paris, força!” Um mês depois, tinha uma equivalência ao Maitrise, que é a nossa licenciatura, e fui para Paris! Lá conheci imensa gente que me marcou muito e que me continua a marcar, como, obviamente, o Horacio Vaggione, como o François Bayle ou como o Francis Bayer – que já faleceu, mas que ainda tive a sorte de o ter como professor no último ano em que ele deu aulas. Embora já não tivesse condições físicas para desenvolver as coisas como ele próprio gostaria, a nível analítico aprende-se muita coisa com uma pessoa que esteve com os compositores, que esteve nos sítios, mais do que com alguém que simplesmente estudou as obras. As experiências com a Annette Vande Gorne, foram, sobretudo a nível de difusão, fantásticas para mim. Mas houve também outras pessoas que estão por ali à volta, embora enumerá-las fosse uma tarefa infindável.

 
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Música Instrumental / Música Electroacústica – dois mundos em permanente contacto

 

É um bocadinho complicado, para mim própria, explicar as coisas, embora eu já as tenha explicado ultimamente para algumas pessoas que se interessam pela minha maneira bizarra de pensar. De certa forma, a música instrumental e a música electroacústica ou electrónica em tempo real – portanto o som e a nota, enquanto símbolo escrito – estão a começar a fundir-se, para mim. Ou seja, quando escrevo uma nota – uma nota, representação sonora de um instrumento – estou a imaginar o som que quero que esse instrumento produza, mais do que a relação entre um Dó e um Sol. Portanto, uma nota é, efectivamente, uma representação do som instrumental, e não tanto uma representação da sua relação harmónica, melódica e rítmica com as outras notas que estão à volta. Em primeiro lugar, para mim, está o som. Claro que depois há as relações entre as notas, isso faz parte das técnicas de composição. Mas essa relação que uso entre as notas escritas para um instrumento – ou uma relação do mesmo tipo – uso-a também entre os sons compostos para a música electrónica. Ou seja, eu componho quase da mesma forma – relativizando, obviamente, as matérias – e uso a mesma linha de pensamento tanto para instrumentos como para a música electrónica. Acho que foi um pouco isso que eu aprendi com o Ligeti, a forma de adaptar as técnicas da música instrumental à electrónica e as técnicas da electrónica à música instrumental. Digamos que as matérias são diferentes, porque, de um lado, temos instrumentos para os quais escrevemos símbolos, e do outro lado temos a matéria sonora “pura e dura”, se quisermos chamar-lhe assim, mas a maneira de trabalhar é muito semelhante. Eu transfiro, com uma certa facilidade, as coisas de um lado para o outro e cada vez mais ponho os instrumentos a fazer “sons” menos convencionais. Obviamente que já não estamos na época em que se tentava que os instrumentos fizessem as coisas mais loucas do mundo e que depois só serviam para um concerto, portanto eu não vou no sentido da “destruição” do instrumento enquanto produtor de som – vou andando antes no sentido de descobrir que novos sons úteis posso tirar dos instrumentos. Ao mesmo tempo, procuro não fazer sons concretos na música electrónica, mas tento humanizar os sons electrónicos e tento dar-lhes uma relação mais humana, mais física e menos abstracta. Por outro lado, em relação à música electrónica, eu sinto os sons como objectos, não como objecto sonoro à Schaeffer, mas como um objecto físico, como uma espécie de massa que eu posso quase ver e sentir no espaço. Isso dá-lhe, de uma certa forma, uma semelhança com o instrumento real. Há uma espécie de jogo entre uma coisa e outra e daí eu não ter nenhum problema em estar de um lado ou do outro ou ao meio ou mesmo a misturar tudo.

 

As coisas vão seguindo caminhos e eu penso que neste momento estou a começar a encontrar o meu. É óbvio que espero evoluir por aí fora. A primeira peça que eu fiz foi para violoncelo e banda magnética – e aí eu compus toda a banda, até porque ainda não tinha começado a trabalhar com música em tempo real, embora tenha ido logo desde início buscar os sons ao violoncelo. Ou seja, a composição da própria banda magnética já partiu do instrumento, logo na minha primeira peça. Mas a relação entre uma banda e um instrumento, ou entre um computador e um instrumento, ou entre qualquer coisa que funcione mais ou menos em tempo real e um ou vários instrumentos. Para mim, é como se fossem mais instrumentos, ou seja, eu tenho um, dois, três instrumentos e o computador, que é mais um. E trato-os todos por igual. Os instrumentistas que me perdoem mas o computador vai ter tanto peso quanto eles. Eu esforço-me para que não tenha mais, porque acho que em todas as coisas deve haver um equilíbrio, mas o computador vai seguramente ter tanto peso como um instrumentista. Portanto, aí eu procuro encontrar uma relação de equilíbrio. Depois, em relação à composição em si, é exactamente a mesma coisa. Se eu tenho dois instrumentos e electrónica – como na peça para percussão, clarinete e electrónica em tempo real, em que eu tinha dois instrumentistas em palco e mais o computador – as três partes são compostas com igual peso. Ou seja, não há só a preocupação de ter um computador que vai buscar os sons dos instrumentos e que os vai transformar em tempo real como um utilitário, como uma câmara de eco ou como uma outra coisa qualquer, mas efectivamente há uma composição por trás. Todas as transformações e modulações que foram produzidas em tempo real tiveram em consideração, por exemplo, as notas que estavam a ser tocadas, ou os ritmos, ou o timbre do instrumento que estava a tocar. Ou seja, todas as coisas foram compostas quase como uma orquestração, para que tudo funcione em conjunto da forma mais equilibrada possível. Neste momento, sinto uma necessidade de misturar os dois lados da coisa, a parte pré-composta e a parte em tempo real, para encontrar um equilíbrio – que para mim é necessário. Quando trabalhamos totalmente em tempo real – como eu fiz em algumas peças – temos inevitavelmente a relação som instrumental/resposta electrónica e falta, de certa forma, o contrário, ou seja, o som electrónico/resposta instrumental. Isso em tempo real é impossível. Portanto, a ideia agora nas próximas peças que farei de música mista será de juntar as duas coisas, ter materiais pré-gravados e usá-los como pergunta, se quisermos, em relação ao instrumento. Como ter os dois tipos de relações não é possível quando se trabalha a cem por cento em tempo real e também não é possível quando se trabalha a cem por cento em tempo diferido – como é óbvio – a ideia será juntar as duas coisas de forma equilibrada.

 

Eu tenho alguma necessidade em usar o tempo real, que é uma coisa que algumas pessoas estão a abandonar cada vez mais. Embora os softwares de trabalho em tempo real sejam cada vez mais perfeitos e os computadores estejam cada vez mais potentes o que resulta é uma performance mais eficaz. De facto, o que acontece é que eu continuo a ter a necessidade de sentir que o ambiente sonoro à volta do instrumentista ou dos instrumentistas reage. Para o fazer reagir efectivamente para mim é necessário o tempo real. É necessário ter altifalantes que não me reproduzam pura e simplesmente os instrumentos – porque aí é um pouco contra-natura, digamos. Se temos um instrumentista em palco e temos o som do instrumentista que está em palco a sair nas nossas costas, para nós, como seres humanos, é um pouco estranho. Para mim é mais natural, se quiser que o ambiente sonoro reaja, ter sons que podem até ser derivados do som do instrumentista, mas que são sons que são transformados, que têm vida própria e que não dependem totalmente do instrumentista – embora se calhar na prática até dependem, porque se trabalhamos em tempo real e precisamos do som do instrumentista, se não houver som do instrumentista então não há reacção da sala. Portanto, acaba por haver uma dependência real e total do instrumentista, mas é uma dependência técnica, não é uma dependência estética.

O facto de ter a necessidade de ter outras imagens de som - para além daquela do instrumentista – é um bocado como diz o Bayle, preciso de presenças na sala, de outro tipo de presenças, para além do instrumentista. Isso faz-me falta! Faz-me efectivamente falta sentir outras coisas por ali a viajar.

 
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Intercâmbios e Interacções – Micro-elementos e Macro-elementos

 

Ultimamente tenho lido os livros de Brian Greene – um físico americano que explica as teorias das cordas, a teoria “M” e todas aquelas teorias astronómicas – e toda a relação que ele descreve do espaço microscópico para o espaço macroscópico, para o espaço astronómico, a mim interessam-me a mil por cento! E interessam-me a mil por cento porquê? Porque procuro, mesmo na tese que estou a preparar – e digamos que é um dos meus cavalos de batalha na tese – fazer uma ligação coerente entre o micro-espaço e o macro-espaço. O que é que é para mim um micro-espaço, ou um espaço microscópico? É todo aquele espaço que nós compomos, ao milisegundo, ao sample, à forma de onda. Portanto isso, para mim, é um espaço válido e é essa a minha problemática e a razão da minha tese. Quero fazer uma ligação coerente entre este espaço tão microscópico, perceber quais são as influências que uma modificação ao nível do sample, ou ao nível da onda, e de que forma isso depois se reflecte ao nível do som e ao nível da obra. Ou ao contrário: quando nós imaginamos uma obra – e eu normalmente no meu imaginário de obra começo da forma, da obra total, da ideia, até chegar ao microscópico – eu penso em como é que transformo aquela imagem total da obra. Aos poucos, vou reduzindo essa imagem até decidir qual é a forma de onda que eu quero para começar, ou a amplitude ou o micro-som com o qual vou começar aquela coisa grande que é a obra. Portanto, há uma ligação – metafórica seguramente, mas coerente – entre tudo isto, entre a teoria das cordas ou a teoria “M” e todas aquelas teorias que procuram fazer uma ligação coerente entre os cálculos e as relações todas do micro-espaço e a música das estrelas, música cósmica, dos planetas.

 

É mais um vai-e-vem. Voltamos então à questão da interacção, ou da inter–influência ou inter-qualquer coisa, em que, de facto, o micro e o macro estão permanente presentes. Por muito que eu idealize uma forma no início, ou uma imagem daquilo que eu quero e que vá o mais coerentemente possível até ao micro, quando eu lá chego obviamente que vão surgir coisas que influenciam o macro e a imagem real da peça. Portanto, a peça no final vai, seguramente, ser muito diferente daquilo que eu tinha idealizado, mesmo que existam traços, gestos ou linhas que estavam previstas. Há sempre uma inter-influência entre o micro, o mezzo, e o macro. As coisas estão permanentemente a ser influenciadas – é como se num quadro juntássemos um bocadinho mais de pigmento amarelo! Portanto, obviamente que por muito pouco que fosse, a coisa ia ser mais iluminada. Há sempre uma interacção. 

 

A relação espacial da obra em todos os sentidos – a forma, a profundidade, os planos, a interacção com o espaço sonoro, a relação entre o micro e o macro, o facto de eu sentir que tenho um espaço de uma sala e como é que eu vou compor para essa sala – ou seja, a relação entre os sons e o espaço, isso são tudo coisas que me esforço por perceber quando componho.

 
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Música Electroacústica: Interpretação, Espacialização ou Projecção Sonora?

 

Essa é uma questão que está muito na ordem do dia, sobretudo em França. Há teses a serem feitas sobre o assunto – que eu não sei a que conclusões vão chegar porque não vejo saída para a coisa. Eu não gosto muito de falar de interpretação, porque ainda não percebi muito bem se funciona ou não! Também não gosto muito de falar em espacialização. Porque também é um conceito um pouco dúbio: espacializamos o quê? Difusão está completamente fora de questão, porque difusão já é uma palavra muito difusa, e portanto tudo o que é difuso, não obrigada! Eu gosto de falar de projecção sonora, e a projecção sonora não sei se pode ser considerada uma interpretação. Não sei, se calhar até pode! Eu gosto de sentir que os sons são projectados no espaço e neste momento não existem muitos altifalantes que tenham o tipo de ressonâncias que tem um instrumento. Há um redireccionamento, portanto o som é efectivamente projectado, por muito que queiramos dizer outra coisa. Não digo que seja a palavra mais correcta, mas é a “menos má”. Da minha experiência na projecção sonora de peças electroacústicas fixas sobre suporte – sobretudo as estereofónicas – quando se tem sessenta altifalantes e dois canais, ou seja uma peça que tem esquerdo e direito, eu assumo sempre uma postura muito séria. Quem reparou nisso foi o próprio Vaggione, que leva as coisas muito mais pelo instinto, enquanto que eu encaro as coisas muito a sério. Eu trabalho efectivamente uma banda estereofónica como trabalharia se tocasse piano ou se tocasse outro instrumento qualquer. Mas uma vez que não posso tocar como tocaria no piano, ouço a banda as vezes suficientes até a ter quase de cor – porque normalmente nós não temos de decorar a peça na sala, porque não temos a sala ali à disposição. Quando chego ao local tento estudar o mais possível o sistema que está instalado de modo a perceber a relação entre a mesa de mistura que tenho à disposição – no caso da Bélgica tínhamos 48 faders para controlar manualmente em tempo real – e os altifalantes e a resposta que obtenho da sala. Acho que aí é preciso ter um bocadinho de feeling, sentir um bocadinho a coisa, e se calhar eu tenho a vantagem de ter um pouco desse instinto, de ter uma certa facilidade em perceber: “Ah, o 37 corresponde ao par não-sei-das-quantas!” Depois, a questão mais crucial para mim é adaptar aquilo que eu conheço da obra àquela resposta de sala, porque no fundo é disso que se trata: perceber não só o sistema, mas como é que aquela sala responde àquele sistema e como é que eu posso rapidamente adaptar esta música em dois canais a esta sala. E nem sempre é fácil, porque fazer sobressair uma peça num sistema e depois pegar na mesma peça e fazê-la sobressair noutro sistema vai produzir uma peça “diferente”. Quer dizer, é óbvio que a peça é a mesma, mas o resultado sonoro é diferente. Acho que a isso não podemos chamar interpretação. Interpretação é aquilo que fazia o Glenn Gould com as peças de Bach, ou seja, cada um toca um bocado como quer: mais lento, mais rápido, mais forte ou mais piano! Se nós fizermos isso com uma peça electroacústica, em 99,9% das vezes vamos simplesmente destruir a peça. Ou seja, se nós decidirmos que a parte forte da peça está muito forte e portanto baixamos e aquela parte pianinho até nem se ouve e então vamos subir, já estragámos a dinâmica toda da peça. É por isso que não sei se se pode chamar interpretação. No entanto, tenho quase a certeza absoluta que podemos chamar projecção. Ou seja, vamos lançar aqueles objectos sonoros no espaço, de forma não a modificar as relações dinâmicas ou as relações de velocidades, como se faz na música instrumental, mas de modo a fazer que todos os planos da peça, que tudo aquilo que nós interpretámos a partir da nossa audição informada daquela peça, vão ser percebidos pelo público para quem estamos a trabalhar. Portanto, digamos que eu ficaria pelo termo projecção.

 

Há sempre um factor interpretativo no sentido que falei há pouco, mas o que me parece importante é que há muito mais do que isso. Há efectivamente um espaço que é muito mais vasto a nível físico do que o espaço do instrumentista. É óbvio que podemos dizer que existem peças em que os instrumentos estão espalhados pela sala, mas é extremamente complicado fazer um instrumentista voar do canto inferior esquerdo ao canto superior direito em 3 segundos! Ou seja, o que me incomoda mais na interpretação é, se calhar, a carga histórica da palavra. Quando se diz interpretação de música esquecemos tudo o resto que vem a seguir. Mas efectivamente a música electroacústica tem uma dimensão muito superior, a esse nível, exactamente porque nós temos a possibilidade – que não há com os instrumentos – de dominar um espaço, de movimentar um espaço. Acho que a matéria é mais maleável do que um instrumento, muito mais maleável! E se calhar eu ousaria diria que a palavra interpretação é pobre, neste caso, apesar da sua carga histórica.

 
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Análise de algumas obras

 

Uma das peças que me interessa referir é a peça Viagens na Minha Terra (Homenagem a Garrett), que é se calhar aquela em que eu me empenhei mais, embora não tenha sido estreada – neste país, é muito difícil conseguir rapidamente um ensemble que faça a nossa música instrumental com mais que quatro ou cinco músicos. E como eu tenho 32 e mais um actor, a coisa complica-se! No entanto, essa é uma peça de referência para mim, a nível de percurso composicional. Passei muitos meses a trabalhar nela – tem um guião e portanto há uma parte cénica que a mim me interessou trabalhar na altura – apesar de ter sido a peça com a qual eu terminei a licenciatura, portanto é uma peça de escola. Ou seja, não posso dizer que é uma grande peça! A nível de composição, se eu a fizesse agora mudaria imensas coisas, metade das coisas que estão lá seriam modificadas, porque tecnicamente é uma peça muito pura. Ou seja, olha-se para a peça e ao fim de cinco minutos percebe-se a técnica que lá está, e neste momento não é isso que me interessa, interessa-me muito mais a parte estética. No entanto, esta peça é importante porquê? Porque eu desenvolvi uma série de técnicas de trabalho melódico, de trabalho de texturas sonoras, de trabalho rítmico, nessa peça, que ainda hoje uso – embora tenham evoluído, obviamente – e também porque valorizei a ideia cénica da peça. Ou seja, eu cada vez mais imagino as coisas quase como se fossem um teatro, quase como se houvesse uma cena ali a funcionar, mesmo se se tratar de um único instrumento. Procuro sempre aquela dimensão humana, quer na música para instrumento solo quer na música electrónica. Acho que foi essa obra que efectivamente me fez começar a ver as coisas desta maneira. Depois, há as peças que fiz em Paris, que foram marcantes porque tive a oportunidade de trabalhar com bons músicos.

A peça Réfléxions, para clarinete, percussão e electrónica em tempo real – embora a estreia não tenha sido maravilhosa, porque tínhamos uma igreja com uma reverberação brutal e nada do que eu tinha na peça tinha reverberação, portanto aquilo “enrolou” imenso – marcou-me pela qualidade dos músicos e por ter podido trabalhar directamente com eles. Eu perguntava, nomeadamente ao clarinetista, que foi o Iván Solano, “Olha, este multifónico, faz-se? Não se faz? É possível? Como é que resulta? Faz lá. Quero ouvir!” E isso dá-nos uma dimensão que em Portugal é muito raro conseguirmos. Portanto, essa peça, a nível de conhecimento aprofundado de instrumentos, foi muito importante para mim. A partir daí, as peças electrónicas que fiz foram peças onde fui estudando especificamente alguns aspectos. A peça que fiz para o Festival Música Viva de 2003, de quatro canais, é uma peça na qual eu quis estudar a síntese granular, que não tinha estudado ainda.

A peça que levei em 2004 ao Festival é uma peça que só tem montagem, não tem transformação nenhuma. Eu sei que parece que tem, mas é uma peça que só tem montagem, efectivamente. Tinha recolhido, no ano anterior, uma série de sons, que gravei numa série de situações e que montei, pura e simplesmente. Portanto, o resultado da peça é efectivamente uma montagem – mais ou menos hábil e feita com muito rigor – em que eu pensei: “Quero conhecer a montagem, a micro-montagem, ao pormenor.” Neste momento, interessa-me começar a juntar todos estes estudos que fui fazendo ao longo dos últimos anos, tanto a nível electrónico como a nível instrumental. Refiro-me também ao trabalho em tempo real da tentativa de aplicação na resposta do computador, tanto das técnicas composicionais, para instrumento, como de algumas técnicas de síntese “pura e dura”, e penso que à medida que os softwares vão avançando, que o meu conhecimento vai avançando e que a prática se vai desenvolvendo, eles vão estar cada vez mais presentes. Vão estar cada vez mais ideias e mais técnicas presentes – de forma mais perfeita, espero eu – nas obras. Isto apesar de serem peças nas quais eu digo “sim, foram peças feitas para o concerto x, ou y ou z.” Mas eram peças de estudo, na verdade, com um objectivo muito específico, nas quais eu queria estudar aqui “isto”, ali “aquilo”, acolá outra coisa, e que eu espero, no futuro, que se venham a mostrar presentes nas obras. Ou seja, digamos que, aos pouquinhos, vamos juntando cartas para depois dar noutras situações.

 
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