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ENTREVISTA |
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Paulo Brandão |
Entrevista a Paulo Brandão / Interview with Paulo Brandão |
2004/Jan/10 |
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Versão Áudio
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Versão Texto
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Registo Videográfico
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Título do Suporte Entrevista a Paulo Brandão / Interview with Paulo Brandão |
Realizador Perseu Mandillo |
Produtor Tortoise Movies |
Tipo de Documento Entrevista MMP |
Tipo de Suporte MiniDV |
Data 2004/Jan/10 |
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Edição
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Editora Centro de Informação da Música Portuguesa |
Referência da Edição CIMP_entr_VID_PB |
Data 2004/Jan/10 |
Localidade Parede |
País Portugal |
Email Editor mic@mic.pt |
Página Web Editor Página Web Editor |
Edição Online |
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Observações
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Entrevista conduzida por: Luísa Prado e Castro
Transcrição, Redacção, Revisão: João Carlos Callixto, Miguel Correia |
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Acesso
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Centro de Informação da Música Portuguesa |
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Untitled Document
Percurso composicional
O caminho percorrido... Há aqui uma espécie de conflito estético,
porque ao olhar para toda a minha produção – que se distingue
entre música pura, cinema e teatro (e a sua interpenetração)
– é de facto todo um percurso estético desde 1976, quando
faço o Ah Kiu – que foi o meu primeiro trabalho com o
Teatro da Cornucópia. Foi uma experiência importantíssima,
de uma abrangência estética pluridisciplinar. De facto, tenho sempre
a sensação de que isto foi ontem, parece que não se passaram
tantos anos assim. É a sensação de que se está sempre
a começar e se está sempre a refazer as coisas que já foram
feitas...
Há um caminho na escrita musical que é sempre um caminho para
dentro. Não para fora, mas para dentro. Eu olho para todo este meu projecto
e, em 1976, quando faço o Biálogo – que foi de
facto o meu Opus 1 – olho novamente para esse mesmo ano e faço
o Ah Kiu, que era um outro mundo completamente diferente. Aí
reparo nessa capacidade que eu tive na altura (e penso que ainda hoje de certa
maneira tenho) de estar em várias disciplinas ao mesmo tempo. E a vida
do compositor é um pouco isso, é uma experiência, um pouco
do eterno, digamos assim. Estamos sempre a falar de coisas do passado mas as
coisas são de agora. Tudo isto, para mim, podia ser de agora, deste momento.
Ainda hoje estou a trabalhar em peças ou a refazer coisas... Sei lá,
a Noite Transfigurada foi uma peça importante para mim, do ponto
de vista em que era preciso uma coragem em falar de uma peça que tem
este nome, de um compositor muito maior do que eu. Olho para este material que
eu fiz na altura, um pouco em confronto, e vejo perfeitamente que hoje não
faria da mesma maneira, mas há traços que são meus, que
são de agora e que estão sempre presentes.
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Influências
Eu, como muitas pessoas do meu tempo, sempre fui um serialista “avant
la lettre”. Mais tarde, analisando sobretudo o Marteau sans Maître,
cheguei rapidamente ao ponto de saturação do serialismo. Ainda
hoje utilizo a mentalidade serial, mas não sou de facto um compositor
serialista. Utilizo processos que têm a ver com uma herança das
séries, mas não utilizo a série conforme a Segunda Escola
de Viena a imaginou.
No entanto, há compositores que me marcaram, como por exemplo Wolfgang
Rihm ou Morton Feldman. Feldman, por exemplo, é um compositor que eu
admiro muito. Não me revejo na maneira dele escrever, mas revejo-me na
maneira de ele pensar a musica, a música pura, o fenómeno do intervalo,
a evolução do intervalo, o clima, as melodias espontâneas,
etc... Há uma obra que me marcou um bocado, que foram os seus Ensaios.
Os seus Ensaios, o seu livro e conhecê-lo pessoalmente, foram
para mim experiências muito interessantes, porque o Feldman, no final
da sua vida, ficou um pouco minimalista, mais ou menos minimalista. Ele tem
para mim um gosto espectacular do ponto de vista orquestral, um gosto no ambiente,
na textura, na rede sonora... Pessoalmente, revejo-me muito nesse ambiente.
E, é claro, não posso deixar de me esquecer das aulas que tive
com o Ligeti. Sobretudo na Alemanha, há a ideia de um neoclassicismo,
de uma neo-polifonia, que eu penso que na minha música existe bastante.
Quando eu olho para o Luigi Nono e vejo uma peça somente feita com a
nota sol – a obra No hay caminos, hay que caminar…, que
é sol, sol sustenido, sol bemol, sol bequadro, sol quarto de tom, é
sempre sol ao longo da peça – fico perplexo. E ele a partir daí
constrói uma obra com uma coerência espectacular, é como
se dissesse que “é o ponto limite para dentro” da criação
musical. As manipulações de um próprio sol, o caminhar
dentro daquele som – eu faço como que a mesma coisa. Essa ideia
é uma ideia que me entusiasma cada vez mais, porque... É engraçado
isso, porque nas coisas que eu faço mais recentemente utilizo sonoridades
luxuriantes com muita multiplicidade de som, uma coisa muito atomizada, e depois
a seguir entro em crise com aquilo que faço e a tendência que tenho
é voltar outra vez para os sons distanciados, com ppppp, ppp...
Não mais do que isto.
A sensação que eu tenho, quando se escreve que “a energia
da peça está lá dentro”, é de que quem a toca
tem que ter uma percepção muito, muito grande de que quando vai
tocar um som, é nesse preciso momento que aquele som vai ter o seu lugar.
E então o som tem uma dimensão gigantesca. Esse lado, o lado contemplativo
do som e do silêncio, é muito importante para mim. Claro que isso
acaba por criar também a questão formal. Estamos a falar em forma
e eu penso muito mais em microforma, nos módulos que se entrecruzam entre
si, na construção, no burilar, na renda. Claro que isso é
evidentemente a microforma, e é dessas microformas que nós tiramos
grandes formas, não é? Mas outras vezes acontece-me não
saber que forma é que a obra tem ou vai ter. Não sei como, mas
vai ter.
Por períodos, há músicas referenciais para mim... Por exemplo,
neste momento ando numa ânsia extraordinária de ouvir música
extra-europeia. Neste momento gosto imenso de ouvir… Estou a descobrir
o alaúde árabe, por exemplo. Ouvi uma cantora de canto popular
muito famosa no Egipto, chamada Umm Kolthoum, e fiquei claramente ensimesmado
pela sua capacidade de modulação vocal, pela capacidade do drama,
pela capacidade de pôr um público a ferver com uma música
que à partida me parece uma música... perfeitamente estática,
com um maneirismo quase musical. É esse maneirismo que faz com que o
público delire. Quando era miúdo, gostava de ouvir as ondas curtas
para ouvir a música árabe, essa civilização paralela…
Houve uma altura em que todos nós ouvíamos música indiana,
queríamos imaginar como era feita a música indiana. Houve outro
período na minha vida em que eu ouvia simplesmente gamelão, gostava
da música indonésia. Gostava, sobretudo, das transformações
que esse material produzia. Lembro-me de ir aos concertos no museu dos instrumentos
de Amesterdão só para ouvir como é que os músicos
faziam aquilo naquele momento. Era um grupo de instrumentistas que tocava com
os instrumentos do museu e havia concertos todos os domingos de manhã.
Era fantástico, fantástico, simplesmente fantástico.
Por outro lado, recentemente peguei em Wolfgang Rihm, que é um compositor
a que eu gosto muito de voltar, e em Luigi Nono. Eu muitas vezes faço
assim uma imersão em certos compositores...
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Experiências e orientações
estéticas
Em toda a minha produção há uma fase importante, que é
a da colaboração com o Grupo de Música Contemporânea
de Lisboa. Houve imensos trabalhos que eu realizei num período da minha
vida que estavam indissoluvelmente ligados à constituição
do GMCL e ao estímulo que o grupo produzia. Mas, em seguida, também
é importante a minha colaboração com o Teatro da Cornucópia,
e foram bastantes anos de colaboração com o Jorge Silva Melo e
com o Luís Miguel Cintra, passando por colaborações com
o Teatro da Malaposta e com o Teatro de Almada (onde ainda recentemente fiz
um trabalho). Depois, também fiz os filmes com o Paulo Rocha, as nossas
viagens ao Japão, e o material que deu A Ilha dos Amores, que
foi um marco fundamental na minha produção.
Olhando para muitas coisas que tenho feito, de facto, os caminhos que eu percorro
são muito marcados por experiências diferentes. Se eu for ver A
Ilha dos Amores, toda aquela carga de distância que o filme tem,
de silêncios e da função do som no espaço infinito,
não é de maneira nenhuma a mesma que eu fiz no Ah Kiu,
que era uma peça musical luxuriante. E esses caminhos, que se cruzam
algures, não sei onde, são todos diferentes mas têm uma
linha comum do meu pensamento, da minha maneira de escrever. Isso é interessante,
porque, se eu no início sou uma pessoa muito marcada pela Segunda Escola
de Viena – um pouco na herança do trabalho que fiz com o Álvaro
Salazar e com o Jorge Peixinho – que era digamos o mundo do atonalismo
pós-vienense, rapidamente depois comecei a apreciar o som por si só
e comecei a viver experiências politonais e pantonais. Olho para trás
e se calhar uma coisa tem a ver com a outra, necessariamente, mas hoje já
estamos noutra, não é?
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Gramática musical
Se olharmos para o tradicional Dó maior e Dó menor, estamos perante
séries... A ideia de uma organização de um conjunto de
sons é uma ideia serial. O diatonismo é uma ideia de série,
de uma outra espécie de série com outro tipo de manipulações
e, já como o Schoenberg dizia, as coisas são retomadas. No seu
famoso livro O Estilo e a Ideia, a ideia que está por trás
da série é de facto a da recuperação de um pensamento
que está já por trás do tonalismo e do modalismo –
é a ideia de uma organização no espaço. Evidentemente
que ele ultrapassou a questão cadencial e ultrapassou a questão
da dependência, o que é de facto um marco fundamental, mas quando
estamos a pensar numa série com dois sons, estamos efectivamente a pensar
num intervalo, ou com três sons em dois intervalos. E este princípio
de tensão e distensão entre o conjunto de forças, de energias
e dinâmicas que há entre o som e o silêncio, rapidamente
pode levar à série.
Há uma ideia na minha música que está sempre muito presente,
como se eu compusesse de binóculos, e se dissesse que ali algures está
uma partitura que eu não visse de repente, mas tendo ela estado lá
sempre, sem que eu nunca a visse. De repente, ligo o rádio e ela existe.
É qualquer coisa que está algures, não sei onde, e que
eu detecto, quase como um radar. Essa ideia de distância, a ideia de um
espaço distante, está muito presente na minha música, como
se a gente tivesse que fazer um grande silêncio e ouvir, com muita calma,
para depois começar a ouvir. Podemos dar como exemplo as últimas
obras do Nono, como No hay caminos, hay que caminar… –
é tal e qual como eu imagino as coisas que eu faço mais recentemente.
Formalmente, podemos ver duas coisas. Se eu faço a música baseada
num texto, ou servindo-me de um texto, necessariamente que... Qual é
a revolução da forma? Depois de Bartók já não
há formas novas. Há micro ou macroformas, mas depois das formas
em arco, o que é que a gente pode dizer? Mais rápido aqui? Mais
lento ali? Isso tudo são processos de arrumar a casa de outra maneira.
A forma é uma coisa que está muito dependente do material que
nos atrai. Quando uma pessoa está a fazer uma obra e busca informação
paralela, quase que de certa maneira essas coisas começam a nascer, e
muitas vezes, na minha música, a forma vem depois de escrever ou nasce
da obra. Agora quando eu tenho um texto, como o texto, por exemplo, de O
Senhor do Leste, que é um texto extremamente organizado, com oito
partes de cada vez, digamos que o próprio texto já me determina
a forma. Mas atenção, há outras obras, como o caso, por
exemplo, da Primavera e Sono, em que foi precisamente o contrário.
Como eu não estou muito ligado à questão fonética
mas antes à questão semântica, o texto dilui-se e também
dilui a própria forma. Porque é assim, O Senhor do Leste
é uma peça que se interpreta através de uma partitura com
vários cartões. Embora haja limite nas combinações,
aqui entra um limite que é o factor memória, que é uma
coisa engraçada. A partir de uma certa altura, alguns músicos
faziam experiências com fractais, em computador, que têm uma repetição
muito tardia do processo. E a memória do espectador não retinha
– esquecia-se entretanto, ao longo da obra – como tinha sido no
início. A ideia que o espectador tem é que a obra não tem
fim. No entanto, ela foi-se repetir algures tão longe, tão longe,
tão longe que nós já não nos lembramos como é
que ela começou e é aí que surge a ideia de uma pescadinha,
enorme, gigantesca… E aqui também, no caso de Primavera e Sono,
essa forma também aparece diluída no tempo e no espaço,
e acaba por ser uma crítica da própria forma. Embora a forma esteja
lá, e está implícita, mas é de tal maneira grande
e de tal maneira distanciada…
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A música das palavras
Quando eu comecei a descobrir a função da palavra, a palavra como
música, que é uma dimensão da palavra, ou da palavra como
organização métrica, ou da palavra como ideia, uma ideia
que está para além da palavra… Recentemente, comecei a ler
uma escritora portuguesa que me está absolutamente a pôr maravilhado.
Desconhecia-a, só a conhecia de nome – Maria Gabriela Llansol.
Bem, eu acho que é o máximo! Acho que aquela senhora me consegue
encher a cabeça com carradas de ideias, de sons, de coisas que não
estão escritas, de um prazer pela palavra e pelo significado. E é
um pouco assim que eu imagino a criação musical! Foi uma descoberta...
Foi o meu Natal! Comecei a ler a Gabriela Llansol e fiquei absolutamente maravilhado.
E a relação grande que ela tem com aquela autora mística
espanhola de tradição carmelita… A palavra tem uma força
por si só.
Quando eu, por exemplo, peguei no Fernando Pessoa e fiz a música para
o 2º Fausto, é evidente que quem ouve a música desses
textos tem de facto que ler o texto para perceber o que está por trás
daquilo. Nem todas as motivações da música – embora
seja uma peça que vale por si só – são evidentemente
perceptíveis no texto e vice-versa. O texto é um pretexto, neste
caso. Mas há toda uma construção de tensões e de
claro/escuro, iluminação, penumbra… Há todos esses
sentimentos, todos esses sentidos que o texto me pode permitir, que são
de facto o motor de tudo aquilo. Outras vezes pode acontecer o contrário.
Por exemplo, eu tenho uma pequenina peça, também do Pessoa, que
se chama Visão, que é baseada num texto do Lisbon
Revisited. Quando fiz essa peça, fiz uma coisa estranhíssima:
toda a gente conhece o Tejo, quando está em Lisboa. A gente está
à beira-mar e conhece o Tejo. Mas quando nós andamos e percorremos
o Tejo e já não estamos em Lisboa, o Tejo é outra coisa.
Lisboa distancia-se, já não ouvimos automóveis. Ouvimos
um ciclorama em movimento, com sons distantes, muito distantes. Eu estou a andar
de barco à beira do Tejo, mas Lisboa está extremamente longe.
E, de repente, vi a coisa ao contrário, quer dizer, o que eu estou a
ver não é Lisboa, é uma visão de Lisboa. E toda
a partitura nasceu logo daí, de uma visão microcósmica
e temperamental. Não é temperamento no sentido da construção
melódica. Esse estímulo exterior é uma coisa que está
muito presente na minha música. O estímulo visual, o estímulo
emocional, o estímulo da palavra, o estímulo do sentido da palavra.
É claro que fazendo eu imenso cinema, fazendo eu imenso teatro, necessariamente
que o mundo do teatro é o mundo do teatro e o mundo do cinema é
o mundo do cinema, mas há coisas que se cruzam. Por exemplo, aquilo que
um actor diz ser “falar com um determinado tom”, quando eu estive
no Japão descobri no teatro Nô que se podia dizer uma palavra de
uma determinada forma, e isso é pura música.
Esta relação sonora da palavra também está muito
presente no chinês – esta musicalidade de dizer uma palavra aqui,
outra ali, e no fundo as coisas estão muito interligadas. Imaginem que
nós estamos a dizer palavras sem sentido nenhum, sem qualquer significado
a não ser um significado musical – pura e simplesmente coisas como
na poesia concreta, brincadeiras de palavras. O significado já lá
não está presente e ficamos, tout court, com a música pura
e simplesmente. Por isso, esta relação com a poesia, que é
música de outra maneira, também pode ser vista ao contrário.
É como se eu metesse a ideia da poesia, de Herberto Helder, por exemplo,
dentro da música. Mas de outra maneira, ela é a espinha dorsal
da música, embora a música seja outra coisa.
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A música como conhecimento
de si próprio
É evidente que muitas pessoas pensam – e eu de facto não
digo que não – que há muito misticismo na minha música
e na minha maneira de pensar. Isso não nego, é evidente que tenho
sempre uma ideia do transcendental em tudo o que faço – e cada
vez mais na minha escrita isso é muito presente. Falo de toda essa ideia
do sentimento, da doçura do sentimento, daquilo que faz parar, daquilo
que faz silenciar, daquilo que faz observar, daquilo que nos obriga de certa
maneira a fazer um discurso que não coincide com o discurso que se conhece,
a fazer um percurso que não coincide com o percurso que se conheceu,
o que cria a aventura de penetrar numa zona de existência desconhecida.
É como aquela ideia das pessoas que estão entre a vida e a morte
e que dizem aquilo que viveram próximo da morte e não próximo
da vida! É quando a gente descobre que a vida e a morte são a
mesma coisa! É o mesmo lado da mesma coisa! É um pouco isso que
na minha música está sempre presente! E que também é
um bocadinho motivado pelo texto, pela palavra e por toda essa viagem... O Pessoa,
por exemplo, levou-me muito a isso. Fernando Pessoa é… para nós
todos acho que é difícil dizer que não é um grande
momento na história da Humanidade... E é um escritor tão
musical, que nos leva por caminhos tão fantásticos.
Se calhar, o texto acaba por ser uma bengala para a gente partir para a musica.
Mas eu acho que isto nasceu, de facto, do cinema e do teatro. Quando a gente
faz cinema, que é uma arte tão musical, isso obriga-nos a transportar,
a fazer movimentações de climas diferentes. Estou a lembrar-me,
por exemplo, que n’A Ilha dos Amores há um plano em que
o Wenceslau de Moraes vem para casa no meio da neve, e o Paulo Rocha dizia-me:
“Este plano é musical! Este plano é musical. Vamos ver!
Olhe, este plano também é musical. Naquele posso mudar o plano
se gostar muito da música…” Faziam coisas assim, era de arrepiar!
Uma pessoa mexia na sua criação se a música mudasse. Mas
ao mesmo tempo é interessante.
Bom, depois de muito pensarmos, eu fui ao espaço onde aquilo acontece,
e a música estava no espaço. Existia ao longe um mosteiro budista,
com um gongo enorme que só tocava a determinadas horas. Bastou-me tirar
todo o som ambiente e só ficou o gongo. E então, tudo aquilo,
vai por ali fora.
Há outras vezes em que também me acontece isto... Quando eu fiz
o curso de bailado em Inglaterra, todos os dias tínhamos de fazer uma
obra musical, todos os dias tínhamos que apresentar um projecto novo.
Onde é que isto nos leva? Isto leva-nos quase à paranóia.
As pessoas a certa altura já não têm ideias nenhumas. E
de repente nasceu-me uma ideia fantástica: algo que seria feito na Universidade,
que tinha uma igreja que tocava de hora a hora. Era uma igreja que tinha um
carrilhão com um som muito bonito, que tocava de hora a hora. E de repente
eu comecei a perceber que aquele carrilhão fazia parte do projecto. Então
tivemos que começar o projecto aos 2 minutos para as nove. E às
nove horas o trombone estava a fazer sons parecidos, só sons parecidos
com os do carrilhão. De repente todo aquele som do carrilhão entrou
na sala e então, lá está, a música ambiente acabou
por fazer parte do projecto. São coisas... Eu acho que isto é
um achado. São coisas... Fiquei até arrepiado, como aquela ideia
funcionou e funcionou tão bem. As coisas estão de facto na natureza
e na vida! É isso.
Pois é… o percurso próprio em que o próprio projecto
se desenvolve. Eu levo muito tempo antes de escrever uma nota de música,
e a reunir ideias, influências, o que é que vem de quê, o
que é giro e o que é que não funciona... O que é
que pode ser bom, o que é que não pode, o que é o instrumento
que pode melhor… Só depois deste processo todo é que eu
vou para o papel e começo a escrever. Outras vezes é ao contrário,
não podemos dizer que isso é um processo em si. Eu escrevo todos
os dias. Todos os dias tenho que escrever. À noite, em minha casa, até
às 2, 3 horas da manhã, estou sempre a escrever.
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Canto para Beatriz,
Senhor do Leste e Acqueos Fire
Olhando para esta sequência, nós temos aqui o Canto para Beatriz,
que eu fiz para o GMCL e que é nem mais nem menos a Beatriz de Dante.
Olhando para o Canto para Beatriz, ou para O Senhor do Leste,
por exemplo, ou para o Acqueos Fire – que é uma peça
premiada e importante também – vemos que, a partir de um determinado
momento, começo a encontrar em mim um lirismo. Uma questão lírica,
uma questão poética. No princípio, a minha música
era muito mais de outra natureza, havia o intervalo como motor. De repente,
começo a descobrir o prazer no ornamento, o que me vai levar a uma ideia
um pouco neo-barroca, se assim lhe podemos chamar. Simultaneamente, acho que
isto é uma vontade de violentar o tempo, uma vontade de meter o som no
esparto do compasso, de meter coisas que não caberiam. Não é
propriamente “meter o Rossio na Rua da Betesga”, mas é forçar
o tempo propriamente dito. O que implica, necessariamente, tornar o compasso
elástico – e, na minha visão, é o que ele deve ser.
O compasso é uma medida que nos serve de controle e não de uma
observação atenta e quase determinante. Essa vontade de quase
“forçar o tempo” obrigou-me a trabalhar muito mais as partituras,
no sentido do “tempo do segundo”, por exemplo, e não da utilização
do “tempo do compasso” – falo do tempo do compasso como estrutura
organizativa. Outras vezes, penso que também tem um pouco a ver com isso,
com a não utilização sistemática de compassos com
quadratura regular – quaternário, ternário, binário
– mas antes forçar, misturar e ir contra outros compassos, como,
por exemplo, Stravinsky utiliza na transformação das melodias.
É um pouco essa ideia de um certo “podemos dizer”, que quem
lê muita música e quem faz muita música chega a um ponto
em que quase prevê o que vai acontecer. E isso também foi motivado
por sucessivas análises musicais que eu fui fazendo ao longo da minha
vida (e continuo a fazer), em que já prevejo o que vai acontecer. O esquema
está mais ou menos vivido, e então é dizer-lhe, quase como
se a gente tivesse como que um banco de memória de repertório
conhecido, e no momento em que se está a compor, dizer “tudo menos
isto”. Escrever tudo menos isto, menos este processo. O que me leva de
facto a descobrir outra gramática, outra estética. E eu diria
que isso tem a ver com um determinado momento, não quer dizer que de
hoje para amanhã seja assim. As minhas últimas obras são,
por exemplo, de métrica muito mais fluida, muito mais dura, até
porque estou a fazer mais coisas para orquestra e coisas para formações
maiores. O compasso, aí, é de facto um auxiliar no sentido da
justeza, de ter a certeza absoluta de como as coisas se fazem. Na música
de câmara podemos ter um pouco mais de liberdade e descobrir outras coisas.
Uma coisa, pela positiva, foi fazer a encomenda da Fundação Gulbenkian
– falo de O Senhor do Leste. Foi mesmo pela positiva. Tive a
capacidade de ter bons cantores, de ter a orquestra, de dispor de uma partitura
que eu acho que funcionou.
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Ne Vas Pas au Jardin des
Fleurs e Comunicações
Há uma obra que é o quarteto para clarinetes, Ne Vas Pas au
Jardin des Fleurs, em que a utilização do espaço vertical
e o trabalho pormenorizado sobre o tempo é muito evidente... Essa peça
é, aliás, uma espécie de ponto de chegada e de ponto de
partida para outras coisas. É um quarteto para clarinetes em que eu utilizo
quase doze clarinetes, porque cada instrumentista tem que tocar dois instrumentos
em determinado momento da peça. Ou seja, há a transformação
tímbrica dentro da própria família do instrumento, o que
vai, digamos, ampliar a ideia quase sinfónica deste. É como se
fosse um leque cada vez maior do timbre, mas ao mesmo tempo da textura e da
cor. No último momento da peça, há uma utilização
abusiva, quase violenta, do micro-tom – e que é também um
pouco uma pesquisa, num instrumento tradicionalmente temperado, de encontrar
os timbres intermédios com quartos de tom, oitavos de tom, que aí
também está muito presente.
Essa peça foi uma espécie de descoberta do mundo do micro-tom
– mas, ao mesmo tempo, a estrutura formal é completamente diferente.
Há a ideia de forçar o instrumentista a ter que utilizar outro
timbre dentro do seu próprio instrumento, de o forçar a utilizar
politécnica, por exemplo, e sempre com o instrumento. E já não
vou ao desmembramento, como acontece com outras peças em que eu vou só
à boquilha do clarinete, ou o que eu chamava o “meio clarinete”
– que era a secção superior, só com a campânula,
com um instrumento mais pequeno, com umas sonoridades incontroláveis.
Há, por exemplo, uma obra em que eu utilizo isso, o Comunicações,
onde empreguei walkie-talkies a fazer feed-backs, e os clarinetes são
metidos no meio desses sons, com meios clarinetes... Não utilizo dessa
maneira, ou seja, não vou mexer no material físico do instrumento,
vou mexer é nas zonas onde ele não costuma tocar. O instrumentista
vai ter que adoptar outra atitude dentro do instrumento da sua própria
família e vai ter que mudar as embocaduras em espaços de tempo
relativamente curtos – como sabe, isto é extremamente violento.
No Ne Vas Pas au Jardin des Fleurs, é completamente diferente.
É uma obra claramente com duas partes, sendo a segunda parte espelhada
na primeira, mas não espelhada no sentido organizativo, antes no sentido
da cor e no sentido da oposição – é um espelho deformado
da primeira parte. Aí, utilizo intervalos largos, com sons vastos, e
na segunda parte utilizo micro-tons, com passagens extremamente virtuosas e
com variações de velocidade, mas todas separadas entre os instrumentos.
A ideia que o espectador tem é como se fosse um instrumento a fazer muitos
sons, mas todos eles separados entre si. É uma grande atomização
do material da primeira parte – atomização e ao mesmo tempo
contracção e dispersão. Os intervalos ficam mais contidos
ou mais alargados, sempre utilizando a ideia do micro-tonalismo para dentro
ou para fora. É a ideia de intervalos largos, com micro-tons, ou intervalos
extremamente estreitos, com micro-tons. E aí existe claramente uma dualidade.
É quase como que fazer a inversão dos micro-tons de um intervalo
– a ideia binária, de duas partes, de intervalos invertidos, que
já é um processo binário em si, de colocar um som assim
e trocá-lo. É uma ideia binária, tal como o é depois
a ideia de colocar a peça – o número “2” quase
que determina aquilo. A ideia de segunda maior como intervalo de preferência,
a segunda menor tratada ou miscigenada timbricamente, ou alargada... Enfim…
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Untitled Document
A Árvore Metálica
N’A Árvore Metálica vou mais longe. A Árvore
Metálica é o desmembramento… É o contrário:
começa pelo desmembramento dos instrumentos, os instrumentos de sopro
podem-se retirar. Têm várias bombas, têm essa árvore,
esses ramos todos – e por isso é que a obra tem esse nome. Ou seja,
deu-se o contrário – existe a surpresa, no início da peça,
de um som não convencional, feito com “pedaços de instrumento”,
como se fossem “galhos” de instrumento. No final da peça,
há a demonstração do instrumento como ele é, como
se estivesse a ser atraído... É um filme ao contrário,
um filme das coisas que se separam e depois são juntas de novo... A ideia
aqui foi ao contrário. Corresponde muito a essa fase da minha escrita,
de mexer no material, mexer fisicamente no material, transformar, ver o que
é que ele permite fazer. Ao mesmo tempo, era também um bocadinho
de “provocação”, de experimentalismo e de provocação
também.
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Untitled Document
Urantia
Urantia é uma experiência engraçada, porque é
um livro que está muito na moda em certos círculos. Logicamente
nunca o li, nem tinha tempo para tal. Hoje estava a lê-lo, e é
um livro que tem quatro mil ou cinco mil páginas. O que me agradou em
Urantia foi a fantasia, o delírio – acho que aquilo é
um delírio. O Livro de Urantia acarreta essa ideia quase que
do Holst, que fez a Sinfonia dos Mundos, dos Planetas... É
quase a ideia generativa de uma coisa que está um pouco a ir ao encontro
da harmonia das esferas, não é? É a ideia tradicional da
música no tempo de Platão, das sonoridades que estão presentes
e que não são ouvidas mas que são dependentes. E isso também
tem a ver com uma coisa que li, um dia, há muitos anos. Mais uma vez,
parafraseio Schoenberg… Ele dizia que “As pessoas não sabem
a responsabilidade que têm no mundo quando tocam um som”. Eu senti
muito que este som pode ser um veículo enriquecedor... Se o som pode
ser uma coisa que vem e que vai, que existe, se é uma coisa que pode
ser posta em funcionamento, quem sabe… Passando à ideia livre,
a este delírio, achei-lhe imensa graça. E como os delírios
podem ser muito perigosos, as pessoas começam a imaginar coisas que não
existem. Essa foi precisamente a ideia que estava por trás dessa obra
onírica e esquisita – foi, de facto, partir para a mesma coisa,
ter o mesmo delírio em música. E generativo, claro, completamente
generativo, porque aqueles intervalos estão sempre em movimento e são
sempre dependentes entre si. É como se tivéssemos um som fundamental,
com um conjunto de notas que gira à sua volta e que é a ideia
espiralada do tonalismo – uma fundamental que tem um conjunto de notas
que dependem de si. Mas agora já não vou utilizar o mesmo tipo
de intervalos do sistema tonal, do sistema diatónico, vou utilizar outras
notas, mas que dependem também de uma outra. É como se tivéssemos
várias dependências, uma coisa constelar, digamos – independentemente
de si, mas com pontos de referência que gravitam à sua volta.
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Primavera e Sono
Primavera e Sono é um texto da poetisa Joana Ruas, em que houve
o desafio de pensar em termos semânticos. Utilizar a palavra só
como ideia semântica e não como ideia fonética – ou
seja, o significado ser mais importante do que o fonema. Isso levou-nos a criar
com palavras, sempre presentes, mas extremamente transformadas, através
de várias possibilidades de manipulação. Eu, na altura,
fazia partituras com módulos – Primavera e Sono é
um exemplo disso, são vários módulos... Tenho três
ou quatro módulos que se podem interpretar, módulos que correspondem
ou não a outros tantos módulos de texto. Se eu utilizar o módulo
A, B, C ou D, eu utilizo o módulo A, B, C ou D no texto. Mas posso utilizar
o módulo A e misturá-lo, posso tirar à sorte, e o resultado
é sempre previsível – é quase como um jogo, uma coisa
que se tira da caixa e que se interpreta. Essa ideia já o Mozart utiliza,
com os dados e o acaso como produto da cabeça. Na Primavera e Sono,
como todos os elementos fonéticos estão controlados e há
elementos comuns em cada prancha, surge uma espécie de tronco, uma espinha
dorsal que os percorre a todos e que faz a unidade entre eles. Mesmo que eu
utilize A com C, C com D, ou B com C, eles estão sempre relacionados
uns com os outros, embora não se saiba o que é que vai acontecer.
O meu controle é um controle tímbrico ou de palavra, ou então
há sempre um elemento que faz a ligação da peça
e que cria a unidade dentro dela.
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Seistento
No Seistento, é evidente, são 6 instrumentistas, e isso
baseia-se numa ideia muito ibérica que é o “ricercare”,
a ideia da imitação. A ideia da imitação é
a de recuperar uma forma de escrita com uma linguagem contemporânea. É
uma homenagem ao “tento”, uma homenagem a Rodrigues Coelho –
uma espécie de apelo ao passado. Há uma altura na minha vida em
que eu começo a procurar muito a música da Idade Média
para a Renascença e ainda hoje estou nesse caminho. É uma área
que me interessa. São maneiras de escrever e de pensar que eu acho que
têm a ver com a música do século XX e do século XXI.
Foi um pouco isso, houve uma atracção muito forte por aquela maneira
de escrever, que correspondia mais ou menos à grande forma da fuga. A
ideia do tema com transformações, mas que é uma coisa ibérica,
que está aqui, que tem a ver com o nosso solo Mediterrânico/Temperamento.
Isso também para perceber o que é que, na grande Alemanha, o Bach
faria (o que todos nós conhecemos – mas, e aqui na Península
Ibérica, como é que se fazia? Como é que era o sistema?
O que é que havia aqui de influência? Toda a gente sabe que isso
existe, por várias origens, por várias razões, de ordem
espacial, mas também por motivação – e os géneros
de escrita musical, por natureza em imitação.
O Seistento é uma peça de música do mais puro
possível, na qual eu evito e me retraio na utilização de
um texto – que é uma coisa que está muito presente na minha
música. Não um texto, uma ideia literária, uma imagem,
e aí é a escrita pura, o mais pura possível, sem significado.
Música per se. Esta ideia espacial é muito querida aos
compositores do sul da Europa, a ideia da música espacial de S. Marcos,
em Veneza, a utilização de músicos em vários espaços,
e é um pouco a ideia da utilização espacial que vai levar
também a reforçar o género imitativo, cujo ponto mais alto
é a fuga. No Seistento, existem várias hipóteses
de espaços diferentes. Ou seja, não é aquilo de utilizar
sempre, por excelência, a ideia do músico a tocar à frente
do público, mas antes, em cada espaço, ter um estudo pormenorizado
do modo como se faz a obra, para que se percebam as relações de
ressonância, Há, inclusivamente, um projecto, nessa obra, em que
os músicos estão em movimento – mas, normalmente, os músicos
têm plataformas em que se movimentam por entre o público. Como
se tivéssemos carrinhos com motorzinhos, e aí o público
tem a noção da música que se aproxima, que se afasta –
um pouco a ideia estocástica do Xenakis, de música que não
se sabe de onde vem, não se sabe a sua origem.
Na última versão que fiz utilizei carrinhos, com vários
instrumentistas a tocar pelo público, para que o público tivesse
a presença de coisas que não são assim… Assiste-se
a um dinamismo também do ponto de vista motor. Há um processo
generativo a nível do material do tento, que é como se escrevesse
uma fuga a quatro partes na qual, a determinado momento, eu perdesse o controle
– mas ela continuava a escrever-se por si só, e a desmultiplicar-se.
Portanto, é quase que a ideia do compositor que “põe a máquina
em movimento” e que depois fica a observar aquilo que já produziu,
porque já não lhe pertence. É uma coisa que se desmultiplica,
se desmultiplica, se desmultiplica… Claro que ao limite nem é possível,
não é?
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Estigma
Estigma é uma obra que, como o próprio nome indica, é
uma chaga. A primeira coisa que acontece com Estigma, e que me motivou,
foi uma espécie de catarse na minha vida que eu tive que ultrapassar
– motivada precisamente pelo falecimento do meu pai. Portanto, entrei
num período difícil da minha vida, um período complicado,
e a única maneira que eu tive de me libertar de toda essa dor foi, de
facto, escrever. Coincide com essa altura a ocorrência de uma conversa
com o meu querido amigo Lopes e Silva sobre querermos fazer obras para guitarra,
e ele quer muito ter um repertório meu para guitarra. Foi o início
de uma colaboração que continua. A ideia do Estigma,
de uma dor que é nossa mas que a gente não pediu, é uma
dor que nasce de nós – a ideia da dor mesmo, do sofrimento, da
chaga – e, simultaneamente, a ideia da própria dor da guitarra,
do estigma que é a sua própria boca. Como se a guitarra fosse
uma mão que tem um estigma na sua própria boca – a ideia
da guitarra também estigmatizada. É claro que aí está
presente uma outra coisa importante, que é uma imagem franciscana –
a imagem da figura de S. Francisco, do homem com uma imagem universal que consegue
criar uma reforma mental no seu próprio tempo, mas que ao mesmo tempo
é um indivíduo capaz de se despir de tudo, até da sua própria
roupa, pelo seu ideal. Portanto, esta ideia é a ideia do estigma, da
dor, mas é a ideia da vitória sobre a dor. É também
um pouco isso. É uma obra pontilhista, completamente pontilhista –
eu diria que é uma obra super serial, em que a própria dimensão
do tempo de espera está prevista em várias possibilidades. Ou
seja, a minha primeira ideia era que o ataque da nota pudesse ser acutilante
ou suave, e que fosse capaz de fazer a pessoa mexer-se do lugar. Ao fazer, por
exemplo, um pizzicato de Bartok na guitarra, que é uma coisa extremamente
dura, a ideia que a gente tem é a de que a guitarra se partiu... Falo
de todo esse lado, mas do outro lado… Há os ecos do outro lado,
como um espelho de várias faces. Existe uma coisa, neste momento, que
é uma dor, mas, por outro lado, uma certa eternidade que se dissolve.
É um pouco essa a ideia da peça e por isso se torna muito complicada.
Há um problema complicado, que é a dominação do
tempo. Eu controlo todos os gestos, a multiplicidade de gestos, e digamos que
faço um catálogo de linguagem: trémulos, pizzicatos, copos
nas cordas, rasgados... Enfim, um conjunto de coisas que se têm que fazer,
digamos assim. Só que, depois, todo esse material e a sua organização,
está indissoluvelmente ligado aos intervalos. Qual é a ideia?
Por exemplo, o arpeggiato: temos uma referência, um “estigma”
de outra maneira, que é o arpeggiato à maneira de Tárrega.
Imaginemos o Tárrega com 8 intervalos que ele nunca utilizaria e com
prevalência de notas no arpeggiato. Nós sabemos o que
é um arpeggiato, mas nunca é aquele que estávamos
à espera. É essa a ideia do espectador ou do ouvinte, imaginar
que está a ouvir uma coisa que conhece mas “mal tocada”,
se é que podemos dizer assim, ou tocada de outra maneira. É de
notar que essa obra também tem influência de um trabalho que eu
fiz com o Ligeti, da análise dos Monumente, para piano, que tem notas
mais fortes em simultâneo nos cinco dedos. Ou seja, tocar mais forte com
os cinco dedos – é uma espécie de nova roupa na técnica
do piano, uma coisa que à partida parece contranatura. Mas quando eu
ouvi o instrumento tocado como se o pianista se tivesse enganado e em vez de
tocar a tecla tivesse tocado na madeira… É um elemento de que não
se está à espera na técnica do piano. Utilizo sempre isto
da mesma maneira na guitarra, procurando encontrar não só efeitos,
como por exemplo, harmónicos junto ao ponto, no outro lado. É
como se a gente estivesse junto ao ponto e fosse aqui encontrar um harmónico,
com outro timbre completamente diferente. Portanto, há um trabalho de
pesquisa profundo, que foi feito assim, a par e passo, com as minhas ideias
e sugestões. Fui então construindo a gramática da peça,
falando com o Lopes e Silva – “faz isto, faz aquilo, gosto mais
disto, gosto mais daquele” – e, portanto, todo este trabalho foi
um trabalho vivido e pensado. Claro que depois aconteceu um problema: como o
Lopes e Silva conhecia muito bem a peça, a sua interpretação
é fantástica. Eu diria que a interpretação que está
gravada e que foi feita por ele é “a interpretação”.
Outros guitarristas fizeram a peça, mas já não foram capazes
de ter o “sentido sem limites” daquele espaço como uma recta
sem cortes, uma coisa que está situada no infinito – e é
o que aquilo é, uma recta sem cortes. Não é um segmento
de recta, é uma recta sem ser segmento. Portanto é uma coisa que
nos ultrapassa, e nós não conseguimos dominar uma coisa que não
nos pertence. Uma recta sem segmentos é o infinito, por isso é
que temos que pôr o segmento.
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Nocturno
Eu quando pensei no Nocturno, pensei fazer um “diurno”.
Porquê “nocturno”? Chopin fez imensos nocturnos, porque
é que eu ia fazer outro “nocturno”? Porque na noite existe
uma coisa que é determinada pelo silêncio, ou pelo menos existia…
Hoje em dia as pessoas na noite procuram muito mais o barulho do que o silêncio.
Mas a noite, a Lua por excelência, influencia muito mais a vida, sobretudo
das mulheres, do que o Sol, que influencia a dos homens – isto enfim,
em linhas gerais. Como se costumam contar as luas, para saber quando nascem
os bebés… Portanto, é a lua que determina o nascimento.
Essa lua é um reflexo, um reflexo luminoso, e produz uma outra capacidade
de gerar qualquer outra coisa. Enfim, entre aspas, ao nível do símbolo
pelo menos. Ora bem, foi nesse sentido que eu pensei fazer um nocturno, que
é uma ideia romântica. Nocturno é uma ideia romântica
por natureza: é a ideia de um momento musical em todo o mundo, em silêncio
e a ouvir a música. A ideia do nocturno é precisamente essa
– a expectativa. É uma peça em que eu, acima de tudo,
quero silenciar as pessoas. Silenciá-las e vivenciar esse espírito
que paira. É um pouco essa a ideia.
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