No documentário curto que faz parte do DVD com a gravação da sua ópera anterior, “O Rapaz de Bronze”, fala da necessidade de renovar a ópera contemporânea. Deixe-me mais uma vez fazer referência às palavras de Igor Stravinsky, que disse: “A ópera não me atrai de maneira nenhuma... A ópera é falsidade que finge ser verdade, enquanto eu preciso de falsidade que pretende ser falsa. A ópera é uma competição com a natureza”. O que é a ópera para si e como vê a reinvenção da ópera contemporânea enquanto género que sintetiza não só várias abordagens estéticas mas também junta a música ao teatro e às artes visuais?
Ao contrário de Stravinsky, eu tenho uma atracção fatal pela ópera. Acho que é o maior espectáculo do mundo. É pena ser o mais caro, não é? Porque enfim isso dificulta muito a produção. Há outras coisas que são muito caras, o cinema é muito caro, mas continua. Há aqui umas questões financeiras que eu não consigo abordar. Todavia acho que a ópera é mesmo o maior espectáculo do mundo. Em relação à falsidade da ópera eu de facto não vejo as coisas assim. Para mim a arte deve dizer a Verdade (com “v” grande) duma maneira falsa. Isto é quase pessoano: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente”. É exactamente esta quadra.
Se calhar é assim que a arte pega só em algumas coisas da realidade e depois as mostra numa maneira diferente. Não é assim?
Isto são coisas pessoais. Na minha visão a arte não deve mostrar a realidade. Stravinsky era muito irónico e há aqui algumas coisas assim distorcidas. A arte não deve revelar a realidade. Basta-me ver o dia a dia, aquilo que acontece. Nada mais real do que ver aqui os desgraçados do Chiado, sem pernas. Portanto não é essa a realidade que a arte deve mostrar. Para mim ela deve mostrar, falseando, qualquer coisa que possa sublimar tudo isto. Se não, não vale pena para mim, se não, não tem interesse, é uma espécie da nossa redenção. Eu preciso da arte, e acho que as pessoas também, com este sentimento de nos redimir, de nos esperançar.
Se calhar também de fugir um bocado da realidade? Ou não é uma fuga?
Acho que não é uma fuga. É um apoio, é uma força que de repente nós sentimos e que nos faz andar. Acho que por isso é que eles faziam as pinturas nas cavernas. Havia lá mais coisas do que propriamente decorar a caverna. A gente não sabe porque, eles já morreram todos, mas havia qualquer coisa ali a mais. Portanto não era só a decoração era qualquer coisa misteriosa e enfim quase transcendente. Vejo as coisas assim. A falsidade é uma coisa necessária. Toda esta ópera é falsa, acho que todas as óperas são falsas.
Eu vejo muito o conteúdo artístico nas entrelinhas e não nas linhas. Acho que tudo o que é grande está nas entrelinhas. Uma coisa que aparentemente possa ser falsa portanto um livro, o grande dum livro está nas entrelinhas. É por isso que por exemplo os jornais não tem nada, não há entrelinhas nos jornais. Há autores modernos, escritores que se apoiam muito nesse concreto e nós lemos frases que são de facto intensas e grandes, mas a minha sensação é que ali depois faltam coisas. Falta aquela coisa nas entrelinhas que nos vai fazendo assim um profundo.
E a reinvenção da ópera contemporânea? Isso é uma questão que colocou no documentário...
Eu disse que gostava de participar. Durante quantas décadas mais vamos continuar a ouvir o “Rigoletto” ou “Tristão e Isolda”? Agora está tudo bem, há uma grande produção mundial, quinhentos Rigolettos anuais etc. Falo no “Rigoletto” mas podia falar de outras óperas, é um exemplo. Quantas mais décadas nós vamos continuar a ouvir estas coisas? Em 2100 será que as casas de ópera, se ainda existirem, ainda vão continuar a mostrar mais uma produção do “Rigoletto”? Tenho dúvidas. Portanto eu falo nesta renovação no sentido de que tem de haver produção contemporânea. E essa produção contemporânea não tem que chocar, mas tem que existir, tem que viver...
...e atrair públicos...
...as pessoas têm que se mostrar interessadas. Não basta haver uma produção e depois ninguém se interessa. Tem que haver uma comunicação com o público e portanto nesse sentido só vejo que a ópera possa continuar se houver esta comunicação. Acho mesmo difícil daqui a 100, 150 ou 200 anos, se ainda cá estivermos, continuar a haver o “Rigoletto” e a “Madame Butterfly”. Acho muito difícil. E o mesmo se passa com a música clássica, no sentido da música da tradição.
Sim, mas acho que na música do passado a investigação das maneiras de execução é agora tão aprofundada que surgem sempre novas ideias de interpretação...
Sem dúvida. Mas eu continuo a pensar que a arte existe e sempre existiu, é uma coisa natural. É como as pinturas nas cavernas. Ela existe. É como nós irmos à casa de banho, fazer as necessidades. A arte nunca vai deixar de existir. Agora, certas formas podem deixar de existir...
...podem mudar, podem evoluir...
...ou podem morrer. A música popular (o pop, o rock) neste momento tem uma força tremenda. Eu não critico, mas não quero ir para lá. Tem uma força tremenda, quer dizer, é muito mais importante o lançamento de um novo disco de fado do que se calhar a ópera “Banksters”. Eu não sei se sim ou não. Uma forma musical pode não ser eterna. Portanto, a ópera pode acabar? Sim. Talvez. Talvez acabe. Porque não? É nesse sentido que eu acho que ela precisa de uma renascença. É uma comunicação com a contemporaneidade com o dia-a-dia. Não pode ser um museu. Se for um museu, vai morrer. Tenho quase a certeza que se continuar museu, com os teatros quase de elite...
...sim mas sempre foi um bocado assim...
Eu acho que não. Posso estar errado mas acho que não. Para dar um exemplo do século dezanove em Itália, a ópera era a parte do povo, da politica.
Por outro lado, Wagner quis criar uma obra completa, escolheu a ópera e depois tornou-a num género mais elitista...
Sim, sem dúvida. Não estou a dizer que não mas eu considero que a ópera nem sempre foi uma coisa tão elitista. Que passou a ser, se calhar, começou a ser com ideias muito transcendentes ou não. Tinha o grande poder. Mas hoje em dia, se eu posso chamar ópera por exemplo ao “West Side Story”? Vejo o poder que ela tem. Há pessoas que dizem: “Não, mas isso não é uma ópera, é um musical”. Mas tem esse poder, como dizia o Pessoa: “existir é ser visto”. Portanto quando uma arte é marginal e não é vista, não sei se ela existe. Depois há sempre aquele aspecto histórico de “naquela altura não foi mas depois tornou-se”. Também é possível. Esta renovação é nesse sentido de fazer coisas pertinentes e que valem e uma pessoa sai de lá com qualquer coisa boa ou má mas que não saia neutra – “ufa, ainda bem que acabou”. Coisas assim.
Para terminar de maneira mais leve a última pergunta é sobre a sátira e o humor. São importantes para si – o humor, a sátira, o burlesco? Porque no fundo a sua última obra é uma ópera satírica.
Isso é muito importante. Até porque eu acho que a ironia e a sátira são aspectos que têm grande impacto quando as pessoas vêem. A tragédia para mim é mais fácil e não só para mim, acho que para muita gente. A tragédia é clara e poderosa já de si. Ao contrário, a comédia é muito mais difícil, mas por outro lado tem muito mais impacto. Há muito mais risco. Quando a comédia não funcionar é mesmo ridículo. A tragédia quando não funciona é uma coisa neutra. Quando se quer ser satírico e não há mesmo sátira nenhuma para mim é ridículo. Vejo isso às vezes na televisão com os programas que pretendem ser cómicos. É uma coisa horrorosa. Não tem piada nenhuma e torna-se ridículo. Portanto acho que é uma coisa difícil, mas quando acontece acho que tem um impacto fortíssimo e ajuda a comunicar com o público. É muito importante para mim conseguir ter este sinal na música, esta intenção de ser irónico e nas entrelinhas dizer coisas fora das notas. Eu já tinha feito isso um bocadinho. Tenho feito ao longo quando apresentei aqui o Inermezzo “O Velório de Cláudio” há um ano – foi uma tentativa de ser irónico. Acho que é fundamental.