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ENTREVISTA
 
Pedro Amaral
Entrevista a Pedro Amaral / Interview with Pedro Amaral
2003/Dec/14
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ENTREVISTA A PEDRO AMARAL (Versão Integral)

Paris 1994


Parti para Paris em 1994, para estudar composição com Emmanuel Nunes. Era um sonho que tinha desde há muito tempo. No ensino do Emmanuel encontrei uma atitude de permanente colocação em questão das minhas ideias. E isso foi muito importante; não tanto no que se refere às soluções técnicas individuais, mas à consciência da ponte que existe, em cada um de nós, entre aquilo que construímos como obra e aquilo que somos como natureza humana. Nesse sentido, o ensino do Emmanuel acabou por ser quase uma permanente psicanálise do meu ser musical, ou da maneira como o "ser" se projecta musicalmente. A pergunta fundamental do seu ensino é: "a que é que corresponde em ti isto que escreveste?". É um caminho difícil se aceitarmos percorrê-lo a fundo; mas é extremamente fértil. Parece-me difícil poderemos realizarmo-nos como pessoas e como artistas sem uma aceitação incondicional daquilo que somos. Esta é uma parte da lição de Nunes. E uma tal aceitação pressupõe uma auto-análise permanente, a todos os níveis.

A partir daqui, encontramos as nossas próprias soluções técnicas, as nossas premissas individuais. Devo no entanto dizer que, a partir de um certo momento, a conquista dessa individualidade, com todo o artesanato que se gera, me pareceu insuficiente. A auto-análise é fundamental para uma verdadeira conquista dos nossos próprios territórios, mas faltava-me aprofundar uma visão mais ampla, uma espécie de cartografia histórica do meu passado próximo, uma quase "justificação" das minhas opções individuais num contexto histórico global. Como músico, sempre cultivei uma reflexão histórica, permanente, quase obsessiva. Decidi então fazer um mestrado sobre Gruppen, de Stockhausen, porque é uma das obras que leva mais longe a ideia do sistema, no contexto da linguagem serial, que corresponde à grande época dos sistemas (em meados dos anos cinquenta). O sistema tonal constituiu um extraordinário paradigma; a partir do momento em que se tornou uma língua morta, não temos outra solução a não ser inventar novos paradigmas, hoje relativos, pessoais, transitórios. E os anos cinquenta conheceram uma reinvenção constante, de cada compositor e em cada obra, de novos paradigmas de sistematização da linguagem. (Nos anos sessenta vamos assistir a uma corrosão crescente desses paradigmas, o que, aliás, está em pleno acordo com a evolução social do Ocidente ao longo dessa década.) Ora, a reflexão sobre a linguagem serial (que é a última linguagem relativamente estabilizada que nos precede) levou-me a estudar uma obra máxima desse contexto, e por isso escolhi Gruppen.

Conceitos de tempo e de espaço estudados a partir de Gruppen

Há nesta obra uma assimilação muito interessante entre a dimensão espacial e a dimensão temporal. Paradoxalmente, ao contrário do que se pensa quando se ouve a obra em concerto, com as três orquestras em torno do público, com o som em permanente movimento, o espaço, como dimensão abstracta, não tem uma importância capital na poética, na arquitectura do sistema. É quase que apenas uma consequência da estrutura temporal que, essa sim, constitui a própria pedra de toque dessa arquitectura. E curiosamente esta dicotomia entre um aspecto flagrante e a sua quase irrelevância no seio do sistema é uma constante em muitas obras de Stockhausen. Não há dúvida de que o sistema pode ser, como aqui, levado tão longe quanto possível; mas Stockhausen leva ainda mais longe um lado puramente vivencial, sensível, do próprio acto sonoro. É essa dialéctica que faz dele um criador excepcional.

Efectivamente a análise desta obra marcou-me muito como músico e como estudioso, mas não propriamente do ponto de vista técnico; ajudou-me, na minha meditação histórica, a enquadrar a minha própria linguagem, mas não integrei de modo nenhum as soluções concretas que Stockhausen propõe. A influência, quando é profunda, ultrapassa em muito o quadro puramente formal, circunstancial, das obras.

Depois de ter feito os 3 primeiros anos na classe de composição dirigida por Emmanuel Nunes no Conservatório de Paris, acumulei o 4º e último ano com o 1º ano da École des Études en Sciences Sociales. Acabei o conservatório em 1998 e, ao mesmo tempo, obtive a minha graduação de mestrado. Na realidade, sem o saber na altura, tinha encetado um período de reflexão teórica mais amplo que viria a culminar num Doutoramento sobre uma outra obra de Stockhausen - Momente.

Momente e a problemática da forma

A minha "tese" é a seguinte: nos anos cinquenta a constituição da linguagem serial implica o aparecimento de novas formas, coerentes com os seus princípios fundamentais; o desenvolvimento dessas novas formas vai por sua vez implicar uma desagregação de determinados princípios do serialismo. É evidente que nos anos cinquenta não faria qualquer sentido continuar a adoptar formas clássicas, tentação a que os vienenses tinham cedido ainda na década anterior, Webern em particular, numa série de obras onde deparamos com uma sistematização límpida das formas clássicas, quase como uma demonstração da aplicabilidade da sua nova linguagem, como se se testassem os novos princípios através dos seguros cânones do passado - o que não deixa de revelar um pensamento assaz paradoxal. Mas nos anos cinquenta, a linguagem serial é levada tão longe que efectivamente implica a pesquisa de novas formas. E no momento em que as várias categorias da linguagem se encontram já suficientemente estabilizadas, a última delas, praticamente a última que ainda não está ao nível do conjunto dos princípios da linguagem, é a forma. Até ali, nos primeiros anos de sistematização do serialismo, não há propriamente formas inteiramente adaptadas à sua natureza e aos seus princípios constitutivos, não há propriamente uma reflexão formal. (Há formas que dependem do texto, mais ou menos manipulado, como é o caso de Marteau sans Maître, construído sobre uma dramaturgia poética e sobre a interpenetração de 3 ciclos, o que, em si mesmo, deriva da construção formal de Messiaen, nomeadamente da interpenetração dos ciclos em Turangalîla, embora Boulez deteste que se faça este paralelo; e depois há formas que são mais ou menos livres, como as de Stockhausen na primeira metade dos anos cinquenta).

Quando se chega a 1955, a linguagem está bastante sistematizada e suficientemente estável para integrar o aparecimento de novas formas. Os compositores dão-se conta de que, fora do contexto tonal, não há nenhuma razão para que as formas musicais tenham obrigatoriamente de constituír percursos unívocos do ponto de vista narrativo, ciclos fechados sobre si próprios. A influência tardia de Joyce faz-se sentir no panorama da composição musical.

No contexto da tonalidade, as formas clássicas dependem de um sistema fechado, onde o percurso tonal, efectivamente unívoco, circunscreve a forma. À linguagem tonal (que podemos comparar a um modelo fixo do universo, um sistema gravitacional perfeitamente estável) correspondem logicamente formas fixas. Numa linguagem onde a poética é por definição aberta (podemos compará-la a um modelo do universo em permanente expansão), o novo domínio formal pede, naturalmente, novas formas, elas próprias em expansão, elas próprias abertas. Chegamos assim ao domínio da forma aberta. A forma aberta, porém, tal como a encontramos ao início, por volta de 1956 (Stockhausen e Boulez), assentava em sistemas seriais "íntegros", por assim dizer. Mas à medida que a própria noção de forma aberta se desenvolve, o sistema modifica-se profundamente, desgasta-se. Em Stockhausen, por exemplo, cada fragmento da forma acaba por exigir uma tal individualização que requer pólos - quase "tónicas" no sentido tonal - que identifiquem, que valorizem e que incarnem, digamos assim, a sua singularidade: é o fim do hiper-relativismo serial e da sua famosa abolição do princípio de identidade. Não é por acaso que Momente se apoia numa morfologia harmónica quase inteiramente tonal: acordes maiores ou menores, maiores e menores, ou diminutos (ainda que Stockhausen desfigure completamente o sentido primeiro dessa morfologia, com é evidente: de facto não ouvimos um único fragmento de Momente em função da tonalidade, apesar da constituição factual da materia harmónica).

Ou seja, em meados dos anos 1950 estávamos em presença de uma linguagem que induz o aparecimento de uma nova tipologia formal e, menos de 10 anos depois, o fenómeno inverte-se: a conquista dessa nova tipologia formal vai aniquilar o universo linguístico que lhe deu origem. Esta pequena observação fascinou-me, e a análise de "Momente" foi levada tão longe que acabou por constituir o tema único do meu doutoramento.

O Conceito de forma na obra de Pedro Amaral

Penso sempre a forma como "coisa em si". Nesse sentido, há uma diferença fundamental entre as minhas ideias e as de Emmanuel Nunes. A forma nas suas obras é um resultado directo, praticamente, da articulação dos conteúdos que se encadeiam, não uma dimensão trabalhada em si mesma. Nesse sentido a lição de Stockhausen terá sido fundamental para mim. Não para forjar a minha técnica (a técnica de Momente é irrepetível), mas permitiu-me identificar e reforçar algumas das minhas próprias reflexões no domínio da forma. Há, porém, outros autores e obras que me influenciaram tanto, neste sentido, como Stockhausen. Talvez mesmo mais. É o caso de Proust. A obra de Proust, é para mim fundamental enquanto compositor e enquanto fruidor no sentido mais básico. É uma leitura que cultivo há muito anos, que acabo e recomeço permanentemente, como se deambulasse por uma cidade em permanente redescoberta.

Há em Proust um lado fascinante, justamente, para quem medita sobre as questões da forma. A construção da frase, por exemplo, por vezes longuíssima, que nos obriga a uma abordagem em várias etapas. Numa primeira leitura lemos, por vezes, omitindo os muitos parêntesis e interrupções. Depois, pouco a pouco, vai-se acrescentando elementos à frase numa série de leituras e níveis de leitura subsequentes. Este tipo de pensamento influenciou-me muito, não só para minha própria construção da frase, em termos musicais, como para a indução de uma forma global coerente com ela. O que, aliás, segue de perto o exemplo de Proust, onde a "frase", a "parte" e o "todo" do romance seguem exactamente os mesmos princípios labirínricos de construção.

Por exemplo: na minha peça Script para marimba e electrónica em tempo real, existe um fragmento, ao fim, a que chamei Post Scriptum, que é um autêntico estudo sobre a frase e sobre a forma, neste sentido. A partitura tem uma série de parêntesis de vários formatos. O músico começa a ler a partitura, de início, tocando apenas o que não está dentro dos parêntesis - faz uma leitura, chega ao momento do parêntesis e salta-o, ignora-o, passa à frente, até chegar ao fim da partitura. Quando chega ao fim, recomeça e integra o primeiro nível de parêntesis. Tal como em matemática ou em programação, há vários níveis de parêntesis. Em literatura é igual. E na literatura musical, tal como eu a entendo, também é igual. O fragmento que inicialmente é apenas uma frase vai aumentando a partir do seu próprio interior, vai-se expandindo e completando o seu sentido através das sucessivas releituras. Constrói-se assim, em certa medida, uma forma aberta. Não uma forma aberta no sentido Bouleziano - que oferece a possibilidade de estabelecer percursos diversos através de um determinado grupo de objectos. Também não uma forma aberta como em Stockhausen - onde o intérprete relê sucessivas vezes o mesmo objecto sob perspectivas diversas. Post Scriptum é uma forma efectivamente aberta em termos da constituição do próprio sentido da frase, da forma, da obra: à medida que o intérprete vai passando diversas vezes pelos mesmos objectos, vai acrescentando sentidos, ramificações, extrapolações, desenvolvimentos, vai desvendando um sentido global através de uma sucessão de sentidos transitórios. A forma abre-se progressivamente. A frase em Proust influenciou muito directamente o meu trabalho - mas há exemplos do mesmo tipo de prática, menos generalizada é certo, menos sistemática, nas últimas Sonatas e nos últimos Quartetos de Schubert, por exemplo.
 
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