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ENTREVISTA |
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Filipe Pires |
Entrevista a Filipe Pires / Interview with Filipe Pires |
2004/Jul/07 |
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Versão Áudio
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Versão Texto
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Registo Videográfico
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Título do Suporte Entrevista a Filipe Pires / Interview with Filipe Pires |
Realizador Perseu Mandillo |
Produtor Tortoise Movies |
Tipo de Documento Entrevista MMP |
Tipo de Suporte MiniDV |
Data 2004/Jul/07 |
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Edição
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Editora Centro de Informação da Música Portuguesa |
Referência da Edição CIMP_entr_VID_FP |
Data 2004/Jul/07 |
Localidade Parede |
País Portugal |
Email Editor mic@mic.pt |
Página Web Editor Página Web Editor |
Edição Online |
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Observações
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Entrevista conduzida por Miguel Azguime e realizada na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (Porto)
Transcrição, redacção, revisão: Pedro Ferreira, João Carlos Callixto |
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Acesso
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Centro de Informação da Música Portuguesa |
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Untitled Document
Etapas no percurso como compositor
Isso é uma pergunta aparentemente muito simples, mas a resposta não
é fácil e sobretudo não é curta – tem que
ser dividida em muitos sectores, porque depende. Isso pressupõe imediatamente
um percurso, uma evolução que se vai desenvolvendo ao longo de
toda uma vida… Os começos são sempre referentes à
primeira aprendizagem. Enfim, não vou ao ponto de começar a descrever
como é que foi a minha primeira lição de música,
aos seis anos de idade. De qualquer modo, a partir do momento em que comecei
– não direi a optar pela composição em vez do piano,
porque durante alguns anos da minha juventude essas duas áreas foram
simultâneas – dei concertos, fui pianista, e simultaneamente já
era compositor. Simplesmente, até sair do país para estudar mais
prolongadamente fora, o que ocorreu teria para aí os meus 22 ou 23 anos,
eu era as duas coisas.
Isto em finais dos anos 1950, começos dos anos 1960, portanto. Fui para
a Alemanha em 1957, quando já tinha terminado aqui o Conservatório,
em Lisboa. Até essa altura, mais ou menos, eu fui – não
diria vítima, porque tudo tem as suas vantagens e desvantagens –
fruto de uma certa paralisação no contexto da música em
Portugal e o ensino também se reflectia disso. O máximo seria
Bartók, Stravinsky, mas não todo o Stravinsky. Portanto, a minha
passagem pelo Conservatório passou-se à sombra de Ravel, Debussy,
algum Hindemith, também, e algum Bartók, em certos aspectos. A
escola de Viena era qualquer coisa de impensável. O simples facto de
falar nisso numa aula, fazer uma pergunta a um professor, era algo de subversivo.
Não havia resposta para aquilo, fugia-se ao assunto.... Eu tinha colegas
com voos mais largos, alguns pensavam e bebiam um bocado já na fonte
de Messiaen, mas eram excepções. O próprio Hindemith, embora
fosse neo-clássico, era assim qualquer coisa… Quando fui para a
Alemanha, os meus professores andaram a auscultar-me durante algum tempo e depois
deram-me liberdade para fazer o que quisesse, mas eu continuava a sentir que
estava a ser auscultado, para eles próprios saberem que terreno pisavam
e até onde poderiam ir. Enfim, não digo que tenha ido muito longe
nessa altura, mas isso permitiu-me dar um salto já bastante grande, que
depois foi progressivamente confirmado com várias visitas a Darmstadt.
E aí, eu confesso que em algumas vezes que lá fui, durante umas
duas ou três semanas, era uma espécie de embriaguez, de bebedeira
musical… Assistia-se a tudo, desde música do extremo Norte da Europa
até ao extremo Sul da África ou da Ásia, e havia ali um
certo convergir de tendências. É claro, depois vinha para casa
e começava a digerir aquilo tudo, e isso levava o seu tempo. Evidentemente
que, por temperamento talvez e por nunca ter tido a preocupação
de estar na moda no que quer que fosse, sentia a necessidade de mudar de linguagem
– e mudava – mas não porque fosse o último grito naquela
altura. Eu andei permanentemente a ser considerado como um indivíduo
que fazia os passos na retaguarda em vez de avançar... De modo que tudo
é resultado de uma evolução progressiva e é difícil
eu estar a dizer o que me marcou em cada momento. Evidentemente, em Lisboa,
no contexto do conservatório, foi sobretudo Ravel, Debussy, Hindemith,
Bartók e pouco mais. Depois, uma vez que passei para a Alemanha, comecei
a sentir-me um bocadinho fascinado – embora não tivesse nunca assentado
arraiais – pela técnica dodecafónica e por outros aspectos,
como a música aleatória. Fiquei bastante aberto, por assim dizer,
a esse tipo de coisas. Bastante mais tarde, já na década de 1960,
foi sobretudo a música electroacústica que me interessou, o que
me fez percorrer um grande número de tendências, de correntes,
de técnicas e de estéticas.
Eu ainda hoje não renego nada daquilo que fiz atrás, porque foi
produto do momento, daquela fase da vida. A nossa maneira de ser também
se pode ir alterando, portanto não renego nada. Agora evidentemente,
há obras de que eu continuo a gostar muito e outras de que eu deixei
de gostar. Mas era o que eu pensava nessa altura, e, portanto, socorrendo-me
dessa evidência de que a maneira de exprimir se vai alterando, posso dizer
que passei realmente por muitas fases.
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Afirmação de uma
linguagem própria ao longo das várias fases
Sinto-me sempre eu, embora seja constantemente um eu diferente… Até
porque eu posso muitas vezes dar passos para a retaguarda, e ir buscar técnicas
ou sistemas de composição que já utilizei, embora os reformule
de outra maneira. É um pouco como sucede com a moda… Calças
largas ou estreitinhas… Quando volta outra vez a moda que já tinha
vigorado há trinta anos atrás, não é exactamente
igual – há qualquer coisa que se vai buscar mas ao mesmo tempo
reformula-se e segue-se uma direcção diferente.
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Ligações entre
a imagem e a música
A imagem para mim é muito importante, mais importante às vezes
do que propriamente a poesia ou um texto, até como reflexo ou recordação
de qualquer coisa anterior. Eu sou muito sensível à cor, ao timbre
e ao jogo de formas visuais, isto tanto na pintura como no cinema ou, embora
mais secundariamente, na escultura. A cor e o volume influenciam-me bastante,
de várias maneiras.
Uma técnica extrema que eu utilizei, na década de 1980, foi a
transcrição musical por um sistema de codificação
que eu inventei para uma série de grafismos – pontos e linhas sobretudo
– da autoria do Jorge Pinheiro. Eu transcrevi-os musicalmente, pensando
de forma milimétrica na distância entre cada ponto, no comprimento
de cada linha, e transcrevendo tudo em função da duração
dos sons. Depois, tinha em mente o ponto e a página em que aquilo estava,
e também as tessituras, os timbres e as durações. Eu penso
muito orquestralmente – mesmo quando escrevo uma peça para piano
estou a pensar numa orquestra, é uma coisa que para mim é inevitável.
Já quando era pianista pensava sempre em orquestra… As questões
do timbre e até o próprio uso do pedal são coisas importantes,
com as quais se pode transformar o som. É como se fosse um jogo mecânico,
em que uma tecla acciona um martelo que bate numa corda, o que é perfeitamente
mecânico. Mas em face do pensamento e da acção que decorre
desse pensamento a mesma forma é transformada… enfim transforma
e produz interpretações diferentes. O simples facto de nós
carregarmos numa tecla com o polegar ou com o indicador produz sons diferentes.
Se temos o braço e o pulso numa posição, se temos os dedos
esticados ou encolhidos, se atacamos de alto, tudo isto são timbres,
sons diferentes, e portanto isso traduz-se musicalmente em questões tímbricas,
orquestrais, é isso que me interessa explorar.
No caso dessa transcrição dos grafismos do Jorge Pinheiro, empreguei
a palavra “extremo” pelo rigor milimétrico com que fiz aquilo.
No outro caso extremo, no campo das impressões, sensibilidades e coisas
do género, evidentemente que aí poderei ter uma latitude muito
maior naquele sentido de que uma coisa me sugere uma outra e portanto transcrevo
de acordo com a impressão que naquele momento a coisa me causou. Pode
ser uma impressão muito impressionista, passando a redundância,
mas mesmo assim eu sinto as coisas ainda muito impressionisticamente. Gosto
de me deixar guiar pelo instinto, que foi, necessariamente, filtrado e que se
baseia em fundamentos muito sólidos que, felizmente, me foram dados.
Esses fundamentos estão cá e mesmo que eu não os sinta
a todo o momento, eles com certeza transparecem, porque fazem parte já
da combustão interna. Cada vez mais eu gosto de, uma vez assimilados
determinados princípios e determinadas bases – que se podem alterar
e se podem infringir, evidentemente – deixar as coisas depois fluir livremente
ao sabor da imaginação e da sensibilidade, que é aquilo
que, no fundo, poderá transmitir mais algo de pessoal e menos de estratificado…
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Métodos de composição
Eu costumo dizer aos meus alunos: ”Tudo isto que vos estou para aqui
a dizer são bases sobre as quais cada um de nós deve arquitectar
a sua obra, o seu edifício. Uma vez adquiridas essas bases, quando
acabarem as vossas aulas aqui na escola – ou pelo menos quando acabarem
as aulas comigo – vocês têm, ou deverão ter, raízes
e princípios criados para fazerem exactamente o contrário daquilo
que eu vos disse. Isto porque se continuarem a fazer aquilo que eu vos disse
ou se aquilo que vocês começarem a fazer se prolongar tempo demasiado,
nunca saem do mesmo sítio.” Não digo que isto seja uma
preocupação minha, é antes uma constatação
daquilo que se tem passado comigo ao longo da vida e portanto eu desejaria
que os meus alunos perpetuassem essa instabilidade e não se estratificassem
num determinado momento ou numa determinada posição, por melhor
que ela seja, já que isso os levaria a repetirem-se indefinidamente.
Digamos que isso é uma necessidade que eu sinto e que tem como resultado
libertar-me de qualquer preconceito. Nunca mais me esqueci duma crítica
que o João de Freitas Branco fez à minha obra Portugaliae
Genesis, para coros e orquestra, baseada em textos escritos em latim
bárbaro, ainda dos começos da nossa nacionalidade – isto
portanto em 1968. O João de Freitas Branco, depois de muitas considerações,
de muitas coisas elogiosas e de outras objectivamente menos precisas, teve
uma frase de que eu nunca mais me esqueci. Dizia ele que estranhava que uma
pessoa com 34 anos produzisse uma obra que, não sendo uma obra de vanguarda,
era quase uma obra de vanguarda da retaguarda. Talvez ele esperasse coisas
que eu naquela obra não empreguei, embora tivesse empregado noutras
de outra época. Ou seja, aquela obra, pelo seu contexto e pelo próprio
texto literário mesmo, obrigava-me a seguir um determinado caminho,
ou até a misturar vários caminhos, e não outros. Cingi-me
a um determinado número de contingências, não por qualquer
outra razão mas por necessidade intrínseca. Um ano antes ou
um ano depois eu tenho obras que são completamente diversas daquela…
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Confluências de estilos
A mistura de estilos, aquilo que hoje se convencionou chamar o pós–modernismo,
acho que só é pejorativa para quem não entende as coisas
ou as entende de uma forma unilateral – tudo tem os seus prós e
os seus contras, evidentemente. Se eu misturo indefinidamente Hindemith com
Palestrina e com Bartók, evidentemente que a coisa terá que ter
outra organização. Mas quanto a misturar vários estilos
dentro de uma determinada obra, nesse aspecto do pós–modernismo,
eu tenho a impressão de que já antes de se inventar o próprio
pós–modernismo eu já o fazia de certo modo – o que
me valeu chamarem-me de reaccionário musical. Eu nunca tive preconceitos
em empregar, se necessário, um encadeamento de Dominante-Tónica.
Evidentemente que aquilo passava como sendo um acidente de percurso, eu não
ia copiar um coral de Bach ou transcrever à minha maneira algo com todos
os requisitos do séc. XVIII. No Portugaliae Genesis eu utilizo
fontes gregorianas, judaicas, árabes e contraponto primitivo –
evidentemente que agora não faria aquilo da mesma maneira. Actualmente,
considero um pouco infantil estar a justificar musicalmente uma obra a partir
das características históricas que cada texto determina, mas no
fundo é o que lá resulta. Agora não sei, evidentemente
a forma como o cozinhado é feito já não me compete a mim
estar a dizer.
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Como surge uma obra
Nunca é igual, eu não tenho um sistema concebido a priori.
Lembro–me de um trio para piano, violino e violoncelo, ainda dos meus
tempos de estudante na Alemanha e com o qual ganhei o prémio Casella
em Nápoles. Era uma obra que hoje não me agrada a cem por cento,
mas, como qualquer outra, não a rejeito, porque foi produto de uma época.
Essa obra, ainda me lembro perfeitamente, nasceu de um acorde que me ocorreu
e que toquei no piano. Gostei tanto daquele acorde na altura – embora
hoje seja um acorde normalíssimo – que comecei a pensar: “Como
é que eu chego aí e como é que daí eu continuo para
diante?” Ou seja, este acorde não será necessariamente o
centro de toda a obra, mas só poderá aparecer depois de um certo
percurso, não é? Então a partir daquele acorde eu comecei
a pensar como é que começo para lá chegar e depois como
é que saio dele para terminar a peça. Portanto, aí sucedeu
desta maneira. Outras vezes é exactamente o contrário, penso numa
estrutura global – independentemente de notas ou de qualquer outro elemento
rítmico ou sonoro – e depois tudo vai sendo encaminhado naquele
sentido. O que não quer dizer que a estrutura se mantenha até
eu acabar a obra, porque entretanto eu começo e depois aquilo começa
a divergir, a diversificar-se, e quando a obra está concluída
já não é nada da estrutura que eu tinha pensado inicialmente.
Não tenho um único sistema para escrever cada obra. Geralmente
acabo uma obra e penso: ”Esta foi a minha obra-prima!”. Mas foi
no momento em que eu acabei a obra, porque no momento em que começo outra
aquela imediatamente ficou para trás e já não me pertence,
não me agrada tanto. Começo a construir outra obra que irá
ser outra obra-prima, à qual vai suceder o mesmo.
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Música electroacústica
Quando eu comecei a trabalhar electroacústica, estávamos ainda
na proto-história. Lidava com discos e com gira-discos, com fita magnética,
a cortar fitinha e a colar fitinha, não é? Portanto, nessa altura
sentia-me impelido a transpor para a fita magnética aquilo que sentia
orquestralmente. Não posso definir começos nem terminações,
porque muitas das coisas se sobrepuseram, mas em houve uma fase em que a influência
inversa se verificou através de experiências electroacústicas,
sobretudo no domínio de sons concretos, na teoria do Schaeffer, que influenciaram
bastante a minha escrita orquestral também. Portanto, digamos que há
um caldo composto de várias influências recíprocas a esse
respeito…
Eu tive uma fase que foi, por assim dizer, a da pré-história –
nós estamos agora na história – que foi a passagem do analógico
para o digital. De certo modo, mantenho-me ainda um bocadinho na expectativa
- bem sei que esta nova fase de evolução é muito estimulante,
até para mim. Eu desejo voltar, embora me tenha afastado por circunstâncias
várias, inclusivamente por falta de tempo e de oportunidade de me enfronhar
um bocado em novas tecnologias, mas acompanho sempre que possível…
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Importância de Pierre Schaeffer
Marcou-me bastante, sobretudo num aspecto a que o Schaeffer e a sua escola davam
muita importância e que eu retive como um elemento fundamental. Estavam
constantemente a insistir connosco, porque nós éramos um grupo
de várias nacionalidades e fazíamos o estágio no Groupe
de Recherches Musicales, para sermos o mais exigentes que fosse possível
com cada um de nós na escolha e na confecção de cada objecto
sonoro. Ou seja, um objecto sonoro entendia-se a todo e qualquer fenómeno
sonoro simples ou composto, elaborado ou não, susceptível de produzir
qualquer coisa de discurso musical – portanto desde o ruído mais
incongruente até ao som mais composto. A escolha, a selecção
e a própria manipulação do objecto deveriam ser objecto
da nossa maior exigência, não podíamos transigir com qualquer
coisa… Isso marcou-me bastante, sobretudo no aspecto instrumental e mesmo
extra-electroacústico, para ser exigente na escolha dos timbres, do ritmo
e da organização sonora.
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Série Figurações
A ideia das Figurações - eu passei a chamar-lhes Figurações
como poderia chamar “Arabescos” ou qualquer outra coisa - no fundo
nasceu das Figurações I, uma peça para flauta
solo que me foi pedida em 1968 pelo flautista Carlos Franco: “Escreva-me
uma peça curtinha para flauta, eu precisava dela e gostava muito que
a fizesse.” Nessa altura, evidentemente, pensei: “Bom, vou compor
uma série dodecafónica e depois desligo-me de todo o aspecto académico
dessa série dodecafónica no que diz respeito à organização
do discurso, à maneira do Schoenberg ou dos seus seguidores imediatos,
e vou procurar utilizá-la de outras formas quaisquer que me lembre, que
me ocorra.” Fiz então uma pecinha para flauta solo sobre aquela
série dodecafónica que vai aparecendo sucessivamente. Primeiro
uma nota, depois duas, três notas, quatro, cinco, seis, depois a série
completa, depois diminuindo uma nota de cada vez, etc. Fiz, portanto, um cozinhado
diferente daquilo que era habitual. Depois, não sei porquê, mas
passado algum tempo surgiu-me uma oportunidade de uma peça para piano
e pensei: “Espera lá, vou fazer as Figurações II,
mas agora para piano.” Portanto, foi tudo nascendo progressivamente. Depois,
alguém me pediu para dois pianos, alguém me pediu para harpa,
e eu fui sempre pensando nesta possibilidade, uma vez que as Figurações
II são uma série de curtas sequências que podem ser
tocadas por qualquer ordem. Pensei que elas poderiam ser sobrepostas às
Figurações I, de flauta – muitas vezes até
se tocam simultaneamente, porque a série é a mesma, a forma de
tratamento é que é diferente. O facto de eu lhes chamar Figurações
nasceu talvez da ideia de que cada peça é um bocadinho resultado
de desenhos melódicos ou rítmicos um tanto caprichosos –
enfim, é um título…
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Possibilidade de apresentar a
série completa em concerto
Aí os intérpretes terão de escolher entre uma infinidade
de possibilidades, inclusivamente deixar pausas pelo meio entre cada uma, ou
fazer, enfim, interromper a execução de uma para que as outras
decorram. Tudo isso é evidentemente viável e eu creio que haverá
uma nota comum, que é o facto de a a série ser igual para todas,
o que conferirá uma certa unidade ao conjunto.
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Tordesyalta e a questão
do teatro musical
Essa obra é, digamos assim, uma espécie de antevisão de
um século futuro, em que se dá uma nova partilha do mundo: Tordesilhas
e Yalta, não é? Aquilo é algo de Kafkiano… Os
Zoocratas, ao contrário, são uma farsa à burocracia
e tem episódios distintos uns dos outros, que se encadeiam numa sucessão
ininterrupta e com factos todos verídicos e passados comigo, ao longo
da minha vida. Falo de coisas incríveis de ordem burocrática mas
que sucederam e que eu, bastante ironicamente, ponho na boca de animais. Agora
de facto os textos de uma e de outra são meus, portanto eu não
sinto que tenha esgotado o tema ou a modalidade. Eu tinha mais peças
de Teatro Musical, mas a oportunidade não existe constantemente ou quando
a gente quer. No entanto, gostaria ainda de voltar ao assunto com outra obra.
Tordesyalta foi a minha primeira experiência teatral nesse aspecto,
e é tudo menos ópera, ou pelo menos ópera naquele sentido
tradicional. Tem um pouco de tudo, mas eu tentei abstrair-me e procurei fazer
uma coisa de tipo mesmo amadorístico, no meu sentido. Depois da peça
escrita, mostrei-a a várias pessoas do mundo teatral e fiquei surpreendido
por me dizerem: “Ah, isso tem uma grande teatralidade.” Espero que
tenham sido opiniões sinceras porque eu não lhes paguei, portanto…
De qualquer modo, fiquei satisfeito porque eu procurei não procurar influências
de A, B ou C. Agora evidentemente que tudo isso é resultado de uma busca
incessante de qualquer coisa de diferente, em termos de mudança do meu
rumo. Nunca me sentiria bem se ao fim de uns tantos anos estivesse a caminhar
na mesma direcção que já adoptara anos antes.
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Dualidade semântica / fonética
na utilização de textos
É uma pergunta muito interessante, até porque justamente isso
põe em foco um aspecto que eu acho primordial. Falo daquela necessidade
que muitas vezes o compositor sente em transmitir por sons aquilo que uma imagem
lhe diz. Como na música de cinema, por exemplo, em que há uma
cena dramática e ouve-se música com tímbalos, há
uma cena romântica e tem que haver um solo de violino muito cantado, etc.
Mas em que medida não se poderá procurar o oposto, para que desperte,
por assim dizer, e não adormeça o espectador e o auditor. Lembro-me
da impressão extraordinária que me causou a primeira vez que ouvi
o Wozzeck, do Alban Berg, naquela cena em que a banda de música passa
diante da casa da Maria. A melodia é perfeitamente banal, quase ridícula,
mas naquele contexto está numa situação de profunda angústia,
e a orquestração e o próprio encadeamento harmónico
são de tal forma angustiantes que estabelecem um contraste. Acho esse
aspecto muito mais interessante de explorar do que propriamente a “identidade”
da música com a acção cénica. A respeito do outro
aspecto que estava a focar, que os compositores destroem o texto poético,
eu não fui ainda – embora gostasse de tentar – ao extremo
de compor cortando e desmontando um texto, de forma a deixar vogais e consoantes
desligadas umas das outras como se fossem fonemas. Acho que, a menos que uma
situação o exija, isso não traduz uma poesia. Não
posso dizer que aquilo é a poesia tal do poeta tal se de facto eu esfrangalhei
aquilo tudo de forma a torná-la irreconhecível.
Isso no fundo será uma composição musical mas acho que
se for uma mudança drástica não autoriza o compositor a
dizer que aquilo é feito sobre a poesia ou sobre o texto tal do autor
tal, porque aquilo é um cadáver em adiantado estado de putrefacção
que já não permite o reconhecimento da identidade. Não
quero com isto dizer que isso não seja uma forma de expressão.
“AAARRRAAUUUOOOOIII” – coisas deste tipo são perfeitamente
admissíveis, não é? O que se passa é que eu não
fui tão longe no ponto de esfrangalhar um texto e dizer “o texto
foi este”, se ele não está lá.
Há algumas das minhas obras corais em que há uma fragmentação,
mas é uma fragmentação momentânea, uma vez que a
palavra aparece completa antes ou depois. São situações
diferentes.
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Untitled Document
Obra como processo de comunicação
Nos últimos anos tenho pensado mais nesse assunto. Acho que, evidentemente,
um artista criador não deve descer ao ponto de tentar agradar ao público
menos ilustrado ou faminto de qualquer tipo de cultura. Se sobe muito, no entanto,
arrisca-se a que apenas uma meia dúzia de ouvintes e de espectadores
adiram à sua mensagem. O meu problema não é tanto o de
querer agradar a todos ou de só agradar a alguns. Evidentemente que o
artista que compõe apenas para si próprio sem pensar em mais ninguém
não se pode queixar. Nós temos de comunicar com alguém,
não devemos enterrar a cabeça na areia. Portanto, se há
um desejo de comunicação, a quem é que nós queremos
comunicar? Essa é a primeira pergunta. Podem surgir várias respostas,
evidentemente. Mas a ideia de que vamos procurar a quantidade em desprestígio
da qualidade, isso eu acho que só poderá fazer quem não
tenha de facto outras aspirações, porque quem tenha algumas aspirações
terá que pensar também na qualidade. Como é que se concilia
uma coisa com a outra? Eu acho que há maneiras de encontrar, da parte
de quem nos escuta – e tenho tentado ultimamente chegar a isso –
várias leituras possíveis. Cada um de nós pode pensar num
livro que leu, numa música que ouviu, num filme que viu e que nos agradou
por uma determinada razão, e que ao falar com outra pessoa que tem um
contexto cultural completamente diferente percebe que ela gostou muito da mesma
coisa, mas por outras razões – ou seja, há várias
leituras possíveis desde que haja um leque abrangente, não digo
de 360 graus, mas que seja susceptível de ser entendido por vários
tipos de pessoas, por várias camadas sociais, culturais e até
mesmo geográficas. Como? Evidentemente que há muitas maneiras
de lá chegar mas eu acho que tenho tentado, e tenho pensado bastante
nesse problema.
Creio que encontrei alguns caminhos, porque até por experiência
própria tenho tido, às vezes, reacções das pessoas
mais diversas, que me dizem, pelas suas próprias palavras, e às
vezes sem termos técnicos nenhuns: ”Gostei desta sua obra por isto,
por aquilo e aqueloutro.” Enquanto que um colega meu, um especialista,
um compositor ou um músico, me diz a mesma coisa por outras palavras,
mas foi buscar outros aspectos da obra. Portanto, há que conciliar dentro
da mesma obra aspectos que possam ser digeridos por vários públicos.
Eu creio que estará aí talvez uma preocupação, uma
preocupação de artistas e criadores – não falo só
em compositores, porque isto pode ser generalizado.
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Untitled Document
Obras recentes para orquestra
De entre essas quatro obras de orquestra, a primeira, a que chamei Os Sons
Abandonados, foi uma peça baseada em material deixado pelo Jorge
Peixinho. Falo de material que ele não tinha aproveitado, vários
apontamentos completamente desligados uns dos outros, embora muitos ocorressem
na mesma página. Alguns desses elementos eram de facto muito interessantes
e muito estimulantes musicalmente, e fugiam àquela imagem que normalmente
se tem do Jorge Peixinho como sendo um indivíduo que renegava a melodia.
Ele passou por uma fase em que, digamos assim, era profundamente ligado a uma
certa ditadura de Darmstadt, mas depois libertou-se muito disso, até
num sentido muito salutar de uma ausência de preconceitos. Ele tinha uma
ideia e não estava a olhar para si próprio a dizer: “Não,
isto são duas notas consecutivas, portanto pode ser tomado como um fragmento
de melodia, eu não posso usar isso”. Ele passou a usar coisas deste
género, e que em certa medida eram tabus. Isto para dizer que descobri
encadeamentos melódicos, coisas de um lirismo extraordinário…
É evidente que quando peguei naquilo não tive a preocupação
– o que seria absurdo da minha parte – de imitar o estilo do Jorge
Peixinho ou de fazer as coisas à maneira do Jorge Peixinho. Não,
procurei construir um discurso meu, e por isso chamei-lhe Os Sons Abandonados.
É uma peça de uns dez minutos, e foi a primeira dessa série
de quatro encomendadas pela Orquestra Nacional do Porto. À segunda, que
também já foi executada, chamei-lhe Ricercare. É
uma peça para orquestra, com material exclusivamente meu, mas com outros
objectivos, tradutores de uma fase de intranquilidade e quase de exasperação
em que eu me encontrava nessa altura, o que portanto dá um contraste
grande de situações musicais. A terceira e a quarta obras foram
entregues por mim mas ainda não foram executadas. A terceira é
uma paródia que eu já há muito tempo aspirava fazer, mas
que nunca tinha tido oportunidade, e a que chamei Playing Ludwig. É,
por assim dizer, uma orquestração minha de fragmentos muito curtos
de sonatas e sinfonias de Beethoven, sobretudo aquelas em que predominam os
encadeamentos de dominante tónica. Por razões várias, que
não interessa aqui considerar, adquiri uma alergia ao Beethoven já
desde os meus 18 anos de idade, embora admire muito e goste mesmo de algumas
obras, mas em relação a uma grande maioria sinto-me sempre inclinado
a encontrar defeitos e não qualidades. Acho que foi também por
isso que decidi escrever esta obra. Enfim, a culpa e o maior problema é
meu e não do Beethoven, evidentemente. A última obra é
uma obra coral sinfónica a que chamei Babel, porque é
sobre textos em latim, do Antigo Testamento, que relatam a construção
da Torre de Babel. É para solistas vocais, coro e orquestra. Como disse,
estas duas últimas ainda não foram executadas.
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Untitled Document
Ritmo de trabalho actual
A partir do momento em que me vi forçado a cumprir prazos, através
desse contrato com a Orquestra Nacional do Porto, tive para essas quatro obras
um período de quase três anos de produção contínua.
Acabava uma obra e começava outra imediatamente, porque tinha prazos
a respeitar.
O trabalho era diário e quando não era diário era angustiante
para mim. Digo isto porque se parava dois ou três dias já tinha
que seguir outro caminho que não era aquele que vinha trilhando quando
interrompera… Portanto, esse é que é o grande drama. Depois
disso, evidentemente que avancei com mais algumas obras que me foram pedindo
ou encomendando, e agora confesso que estou num período, desde há
uns meses, em que não tenho escrito nada. Estou a tentar recarregar baterias
porque me sinto um bocadinho cansado do ritmo de acabar obra, começar
obra, acabar obra, começar obra – é um bocadinho esgotante…
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Escrita de um ensaio sobre orquestração
Agora o meu projecto imediato não é tanto de uma obra, mas sim
de um trabalho literário. Não será um tratado de orquestração
nem de instrumentação, mas sim uma espécie de reflexões
sobre o pensamento orquestral. Falo do pensar em termos de orquestra quando
se toca piano ou outro instrumento – ou seja, não limitar a técnica
do instrumento apenas aos aspectos técnicos da interpretação.
Porque isso não será uma interpretação, será
uma pura execução, e eu acho lamentável limitarmos a realização
sonora de uma obra à simples execução. Portanto, é
nesse sentido que eu penso agora reunir material que tenho arquivado já
há mais de trinta anos e que nunca tive ainda oportunidade de juntar.
Quero aproveitar um bocadinho um interregno na composição e atirar-me
à escrita desse livro.
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