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ENTREVISTA |
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Sara Carvalho |
Entrevista a Sara Carvalho / Interview with Sara Carvalho |
2004/Jul/06 |
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Versão Áudio
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Versão Texto
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Registo Videográfico
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Título do Suporte Entrevista a Sara Carvalho / Interview with Sara Carvalho |
Realizador Perseu Mandillo |
Produtor Tortoise Movies |
Tipo de Documento Entrevista MMP |
Tipo de Suporte MiniDV |
Data 2004/Jul/06 |
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Edição
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Editora Centro de Informação da Música Portuguesa |
Referência da Edição CIMP_entr_VID_SC |
Data 2004/Jul/06 |
Localidade Parede |
País Portugal |
Email Editor mic@mic.pt |
Página Web Editor Página Web Editor |
Edição Online |
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Observações
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Entrevista conduzida por Miguel Azguime e realizada no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro
Transcrição, redacção, revisão: Pedro Ferreira, João Carlos Callixto |
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Acesso
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Centro de Informação da Música Portuguesa |
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Untitled Document
Despertar para a Música
Há uma história engraçada… A minha mãe diz
que eu quando tinha três anos estava sempre a fazer aquelas coisas que
os miúdos fazem, como dirigir, por exemplo, e ela perguntava: “O
que é que tu queres ser quando fores grande?” – e eu dizia
sempre: “Quero ser Beethoven”. Portanto, não sei… Eu
acho que nem conhecia a música de Beethoven… Quer dizer, se calhar
até conhecia alguma sinfonia, porque a minha mãe punha música
em casa, mas acho que não me dizia “Olha, isto é Beethoven”
ou “Olha, isto é Mozart”. Mas isto é uma coisa que
ela conta como sendo uma piada: “Olha, queria ser Beethoven, olha para
ela!” – assim um bocado na brincadeira. Depois, mais ou menos por
volta dos dez anos, entrei nos Gambozinos. É um centro onde se aprende
música, e acho que isso foi muito importante, porque era uma coisa bastante
livre. Nós aprendíamos música de uma forma muito criativa,
e eu comecei a ter aulas com o Fernando Lapa por volta dos catorze anos, para
fazer os exames no conservatório. Simultaneamente, tínhamos aulas
de composição livre, de que eu gostava muito, mas nunca me passou
pela cabeça seguir composição, embora fosse uma coisa que
eu gostava de fazer. Quando chegou a altura de ir para a universidade, punham-se
dois pontos. É que eu também gosto de línguas e, portanto,
podia ir para português/inglês ou ir para música. Eu tocava
piano, mas não era uma grande instrumentista, porque não tinha
paciência para estudar. Gostava era da Formação Musical…
Nos Gambozinos tínhamos um grupo instrumental Orff, e fazíamos
umas coisitas. Gravámos um CD de crianças, e todas essas coisas…
Quando o curso de Aveiro abriu, era um curso para ensino, e ensinar era uma
coisa que eu gostava de facto de fazer. Pensei então que podia juntar
o útil ao agradável e concorri para Formação Musical
ou para Composição. Fiz as provas, entrei e o João Pedro
Oliveira disse: “Não, vens trabalhar comigo!”. Comecei a
trabalhar com ele e a coisa surgiu um bocadinho do nada… Foi um bichinho…
Comecei a aprender e a gostar cada vez mais, fiz o curso com o João e
depois decidi continuar. Fui para Inglaterra e aí houve uma grande mudança
na minha vida – para já porque é um país completamente
diferente de Portugal, a todos os níveis. Depois, porque pela primeira
vez tive uma obra tocada. É que eu fiz o curso cá em Aveiro mas
na altura não tive oportunidade de ouvir nada meu – eu escrevia
mas as obras ficavam paradas num folder… Quando cheguei lá, concorri
com uma peça, e ela foi seleccionada e tocada, e isso foi uma experiência
única. Eu já não era uma cachopinha, já tinha 25
ou 26 anos, portanto foi uma coisa que realmente me marcou imenso. Percebi que
a música e que compor era muito mais do que… Foi uma coisa inexplicável…
Não compararia com o nascimento da minha filha, porque mesmo assim o
nascimento do primeiro filho… Os bebés ao nascerem é uma
coisa… Mas é muito semelhante a experiência. Depois convidaram-me
a ficar para fazer o doutoramento lá e continuei.
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Estudos na Universidade de York
Eu concorri para muitas escolas no Reino Unido, e todas elas me disseram que,
com o fólio que eu tinha até ao momento, me aceitavam. Eu fiquei
um bocadinho confusa, não é? Tinha estado em Inglaterra aos 18
anos como au-pair, em Londres, e conheci lá, através
da família onde estava, um músico. Ele afinava instrumentos, como
o piano, e trabalhava também com clarinetes. Fazia uma série de
coisas, era uma espécie de homem dos sete instrumentos. Na altura eu
liguei-lhe e disse-lhe: “Olha, eu queria fazer um mestrado em Inglaterra,
o que é que tu me aconselhas?”. E ele aconselhou-me alguns sítios-chave
– que não vale a pena estarmos a dizer quais são, para não
fazermos publicidade – e disse-me que em York havia um centro muito interessante.
Disse-me que era das únicas escolas do país onde não havia
exames – é tudo feito através de trabalhos e de apresentações
públicas – e que havia lá uma compositora muito conhecida
em Inglaterra, a Nicola LeFanu. Ele achava que deveria seria interessante para
mim ir trabalhar com ela. No final, o que me levou a decidir – porque
também estive entre ir e não ir trabalhar com o Michael Finnissy,
que é da mesma geração que a Nicola – foi o facto
de York ser uma cidade muito mais barata do que Londres. O nível de vida
era três vezes mais barato e como eu não tinha bolsa de estudo,
porque em Portugal é complicado arranjar uma, decidi ir para York por
isso. Estou muito contente, acho que foi o sítio ideal para mim a nível
de cidade, de pessoas, de universidade… Tenho pena de não trabalhar
com música electrónica, porque lá é um bom centro…
Lá tive oportunidade de trabalhar não só com a Nicola mas
também com o Roger Marsh, por exemplo. Fiz um curso com o Brian Ferneyhough,
a Betsy Jolas também foi lá dar um curso, e acho que a minha formação
não terminou aqui – gostaria de ter muito mais tempo para continuar
a fazer cursos. Acho que por vezes as pessoas têm a ideia que, quando
já são professores, já não precisam de fazer cursos,
elas é que dão cursos. Eu acho que a gente tem sempre a aprender
muito uns com os outros. O último que fiz foi um curso para ópera,
que foi uma coisa que eu não tive oportunidade de fazer directamente.
Tenho várias cenas escritas para uma ópera que eu gostava de ver
tocada, mas gostava que me fizessem uma proposta – não digo monetária…
Acho que é muito interessante associar o teatro à musica, às
outras artes.
De York, voltei para Portugal, e a nível de ensino tenho parado. Tenho
crescido por mim, estudado, ouvido música, aquelas coisas que nós
vamos fazendo para continuarmos dentro das coisas. Mas, basicamente, tento encontrar
o meu próprio caminho. A pessoa faz isso com imensas etapas na vida,
e, na composição, é um bocadinho assim. Claro que há
oportunidades que te levam para determinados sítios e há outras
que às vezes te desviam um bocadinho daquilo que tu pensaste fazer –
ou seja, afinal já não é aquilo e é antes outra
coisa qualquer.
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Modelos e referências
É engraçado, porque eu trabalhei muitos anos com a Nicola mas
ela nunca me serviu de modelo em relação à musica dela.
É um bocado estranho dizer isto – e não tem nada a ver com
eu gostar ou não da música dela, porque até gosto –
mas eu não me identificava propriamente com aquilo que ela fazia a nível
musical. Há uma pessoa que me marcou muito, que foi o Pierre Boulez com
o Marteau Sans Maître. Quando o João Pedro Oliveira me
disse que devia olhar para o Marteau Sans Maître, eu de facto
olhei. Se calhar hoje olho de uma maneira diferente da que olhei na altura,
porque na altura talvez tivesse um ouvido um bocadinho mais ingénuo,
ainda não percebia exactamente a técnica utilizada. Mas foi uma
coisa que eu nunca tinha ouvido antes e portanto foi uma sonoridade mesmo diferente.
Também me marcou muito por ter sido logo no primeiro ano do curso. Depois,
claro, há outros compositores que se vai começando a descobrir,
como o Ligeti ou o próprio Ferneyhough, com aquela complexidade que se
calhar eu já tive, mas que entretanto abandonei. Mas há muitos
compositores que te marcam, como o Jorge Peixinho, com aquele lirismo todo –
isto para não falar só em personalidades de lá de fora…
Sim, acho que alguns compositores te marcam, aprendes com eles, e de facto o
teu próprio percurso é um bocadinho daquilo que tu tiras daqui,
dali e de acolá, e fazes andar.
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Jorge Peixinho
Nunca trabalhei com o Jorge Peixinho. Só tenho algumas partituras e gravações
dele, que pedi ao José Machado para me enviar. Fiz um trabalho sobre
o Peixinho no meu mestrado – peguei em dois ou três compositores
portugueses de diferentes gerações e fiz um trabalho, se calhar
um bocadinho amador, sobre a música desses compositores. Pelo menos foi
uma forma de eu mostrar em Inglaterra que cá também se fazia música
boa e muito interessante, foi mais ou menos com esse intuito. Aliás,
fiz vários seminários em Inglaterra sobre esse mesmo tema –
as pessoas convidavam-me e estavam realmente interessadas. Mas eu nunca conheci
o Jorge Peixinho, embora tenha estado em concertos onde ele esteve – mas
eu era muito novinha e sempre fui um bocadinho envergonhada nessas coisas. Não
sou uma pessoa que me chegue à frente e que diga: “Olhe, eu sou
a Sara e tal…” – tendo a ficar um bocadinho à rectaguarda,
enquanto as pessoas fazem aquele serviço mais de relações
públicas…
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A tese de doutoramento / Solos I e Solos
II
A tese é um fólio com 12 obras, todas elas para agrupamentos
muito diferentes – mas tudo música acústica, não
tenho electroacústica. E são 12 obras que vão desde agrupamentos
grandes, como uma peça orquestral, até peças solo. O
doutoramento tem quatro peças solo que foram escritas em anos seguidos
– isto é uma ideia que eu tenho mantido, que acho que é
interessante. Portanto, tens o Solos I, que foi escrito em Fevereiro
de 1997, depois tens os Solos II, que foram escritos no Verão
do ano seguinte, o Solos III, em Agosto de 1999, e por aí
adiante. De certa forma, o livro dos solos é quase como um percurso
daquilo que eu fazia e daquilo que eu faço neste momento, uma vez que
tenho uma peça nova escrita todos os anos. O primeiro Solos
foi escrito a seguir ao Quarteto de Cordas e os primeiros três
minutos estão cheios de regras. O primeiro andamento do quarteto acaba
com um pequeno solo de violino, quase para rebentar com aquele esquema todo,
e eu pensei: “Não, eu preciso de continuar este solo noutro sítio
qualquer. Aqui não há espaço mas eu preciso de o continuar
intuitivamente”. E o Solos I foi a primeira peça em
que utilizei material do quarteto – eu tinha desenvolvido esse material
demasiadamente e então quis que o Solos I fosse como que uma
ampliação, mas de uma forma mais livre. Mesmo assim, as frases
são todas controladas, há uma frase que vai diminuindo…
portanto, há muitas regras! Os Solos II, no ano a seguir,
continuam a ser uma obra bastante estruturada, na qual os andamentos e as
modificações metronómicas se vão alterando –
imagina que começas com uma semínima igual a 52 e tens uma quintina,
depois passas a ter uma semínima de base 60 com uma tercina. O objectivo
era de grande virtuosismo, a obra foi escrita para o Pedro Carneiro…
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Solos III
O Jorge Salgado Correia pediu-me para escrever uma obra para flauta, e queria
que eu utilizasse as quatro flautas. Foi aí que eu tive que resolver
uns problemas complicados, mas, ao mesmo tempo, bastante interessantes até.
Foi preciso pensar como é que eu poderia utilizar as quatro flautas
sem que houvesse aquela coisa de “instrumentista pega, toca, pousa,
vinte segundos depois volta a tocar…”. Ainda por cima ele tem
que aquecer um bocadinho a flauta, todas essas coisas para aquilo sair bem,
e então a solução que achei foi fazer da obra uma peça
teatral, em que o instrumentista tem que declamar um texto. Ele toca parte
do texto – toca literalmente, aquilo foi ajustado e tudo – e depois
também diz o texto. No fundo, é a palavra feita música,
literalmente. Havia também uma tabela que eu construí –
o A seria o Lá, o A não sei quantos seria o Lá quarto
de tom… Claro que isto depois não ficou literalmente assim, porque
os resultados podem ser demasiado indeterminados para resultarem de alguma
forma interessante. Portanto, eu depois ajeitei a coisa conforme fui necessitando…
Se as pessoas quiserem utilizar essa tabela, se calhar vão ver que
as palavras saem um bocadinho ao lado. Mas era a intenção da
frase – eu fiz essa equivalência de fonemas e depois tentei ajustar
o sentido da palavra a esse mesmo contexto. Pensei na forma como o próprio
gesto cabe dentro do texto, no fundo. Eu precisava de liberdade para compor,
as coisas não podiam ser só delinear uma estratégia a
nível de “ok, tenho aqui os meus esquemas todos, isto está
bem pensado, pensei nestes acordes, nestas harmonias, nestes ritmos e isto
agora vai sair tudo direitinho, um bocadinho à moda do serialismo integral”.
Eles têm aquelas coisas todas e há coisas que resultam bem –
com sorte – e há outras que resultam pior – com um bocado
mais de azar – mas eu cheguei à conclusão que não
conseguia trabalhar assim. Isto porque a ideia musical que eu tinha não
era transmitida, estava próximo mas não era exactamente aquilo.
A ideia resultava como embrião, mas depois o embrião teria que
crescer de uma forma um bocadinho diferente.
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Solos IV, V e VI
Chegando aos Solos IV, no final do meu doutoramento, as coisas já
tinham mudado. Essa foi uma obra que eu trabalhei a pensar já na ópera,
no Musical Theatre – nem sei muito bem como é que hei-de traduzir
para português… Teatro Musical ou Musical-Teatro…
O meu problema é que aparece o teatro primeiro, e o meu objectivo é
que apareça a música primeiro – por isso é que
eu gosto do Musical Theatre, porque aparece em primeiro a música e
só depois é que aparece o teatro. É o teatro que trabalha
para a música e não a música que trabalha para o Teatro.
Portanto, de qualquer das formas, a música está em primeiro
plano. Mas se a obra fosse tocada sem ser no teatro também tinha que
funcionar, porque eu depois sou uma pessoa um bocado prática nessas
coisas. Penso: “Não, mas depois aquilo vai estar em CD, e se
não resulta? As pessoas não estão a ver, não é?”.
Mas é importante de facto tentar criar uma ligação directa
com o público, porque há o elemento teatral e porque há
alguma coisa que nos faz alargar a imaginação. Cada um depois
interpreta os movimentos da sua forma, o que dá um bocadinho de liberdade
ao intérprete para poder assimilar as coisas de uma forma mais pessoal
– não vais encontrar dois intérpretes a fazerem uma peça
de Musical Theatre da mesma maneira. Mas, simultaneamente, gosto que a coisa
depois ouvida, sem imagem, resulte também. Os Solos IV foram
um projecto para a tal peça de Musical Theatre, e foi com esse fim
que eu a compus. Tentei trabalhar um bocadinho a voz soprano e também
a forma como eu conseguiria pegar na história que quero vir a desenvolver,
a história de Perséfone.
O material já se começou a delinear
de uma forma muito mais simples, porque eu tenho quatro personagens dentro
da mesma obra e, portanto, tive que delinear espaços, tive que delinear
vestimentas, luzes. A peça acaba por se transformar e o esquema que
eu arranjei, musicalmente, de ela se transformar é com determinadas
harmonias, com determinados ritmos, com formas de cantar. Quando eu digo que
estão lá os esquemas, quero dizer que… É que eu
continuo a trabalhar com muitas regras e com muita organização!
Por isso é que eu digo que, se calhar, e só para falar do doutoramento,
o livro dos solos é muito interessante, porque mostra um percurso.
As pessoas têm-mas pedido, já tenho quem toque os solos para
harpa, para piano e para guitarra, e agora até vou começar um
outro, mas eu ainda não os libertei da minha pessoa. Acho que eles,
embora tenham sido construídos um por ano, continuam de certa forma
a seguir a vertente do teatro. Falta-lhes qualquer coisa… E até
essa coisa surgir eu não os vou entregar… Isto embora eles estejam
escritos e continuem a seguir um percurso parecido… É engraçado,
o primeiro e o segundo estão agrupados, o terceiro e o quarto estão
agrupados também de alguma maneira, o quinto e o sexto continuam essa
ideia, o oitavo ainda não sei exactamente o que é que vou fazer,
nem para que instrumento será – isto porque as pessoas se têm
irritado um bocado comigo porque eu não os tenho libertado: “Então
o Solo e tal? Nunca mais mo entregas!”. Eles estão prontos, mas
há qualquer coisa que falta – não sei se é na parte
teatral… Acho que se eles fossem gravados, a coisa resultava…
Mas há qualquer coisa ao nível da imagem… Preciso de falar
com alguém que saiba mais do que eu destes assuntos, há qualquer
coisa que está bloqueada ali… Mas a promessa é escrever
um por ano, e vai continuar assim!
O terceiro e o quarto são aquela experiência do teatro, mas o
quinto e o sexto continuam... Quando eu falo de agrupar os Solos,
falo a nível de trabalho, a nível de alguma coisa de harmonia,
de material, de alguma história que continua de um para o outro. De
certa forma, neste caso temos o mesmo tipo de drama no Solos V e
no Solos VI, mas é em relação a este drama que
não estou muito satisfeita. Por isso é que eu gostava de não
me exceder muito e esperar que a coisa surgisse – provavelmente até
podíamos gravar este vídeo daqui a dois anos e eu teria então
algumas soluções diferentes, porque no fundo isto é sempre
uma procura… Estou tão satisfeita com os primeiros quatro! Gostava
que isto continuasse a dar-me algum prazer e se eu estou com o quinto e com
o sexto é porque lhes falta qualquer coisa. Eu não sei muito
bem o que é ainda – provavelmente quando os largar vão
ser quatro ou cinco estreias seguidas, não sei…
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Untitled Document
Squashed Fairies, Máscara, Blows Hot and
Cold
Eu não começo uma obra até descobrir o título
– se tem uma história, tem que ter um título, não
é? Ou, mesmo que não seja o título chapado, mas é
algo que me leva a fazer alguma coisa relacionada. No Squashed Fairies,
por exemplo, o título estava lá mesmo antes de eu escrever uma
nota, portanto isso significa que, quando eu descubro o título, a obra
está praticamente pronta. Depois é só aquele trabalho
de pôr as notinhas, de orquestrar e de fazer as coisas. Todas as obras
têm uma história… A Máscara é sobre
as diferentes máscaras que as pessoas colocam para lidarem umas com
as outras. O Blows Hot and Cold é o título de um poster
do Dexter Gordon, onde ele fuma um cigarro. Estava uma vez a olhar para esse
poster, que é a preto e branco e muito bonito, e lembrei-me: “eh
pá, ele está assim com um ar pensativo, mas eu vou é
arranjar uma história sobre o que o cigarro está a pensar, não
o Dexter Gordon”. Isto porque realmente os cigarros têm uma duração…
Eu na altura fumava, agora não fumo… Mas pensei que seria interessante
fazer uma peça com a duração de um cigarro, que é
mais ou menos três minutos e meio. O segundo andamento do quarteto veio
a ter esses três minutos e meio – lá vêm as regras!
Portanto, no fundo, Blows Hot and Cold é a história
de um cigarro! Claro que é uma metáfora, evidentemente, mas
falo do inalar e do expirar, do fumo, dos momentos de pausa, enquanto a pessoa
conversa, com o cigarro a arder lentamente… Aquelas coisas são
quase programáticas. Claro que as pessoas não percebem nada
que é a história de um cigarro, não é? Mas eu
agora não fumo, já deixei porque é um vício terrível…
O Squashed Fairies é um livro muito engraçado. É
um livro sobre fadas no mundo imaginário, e fala duma miúda
que diz que apanha fadas entre as páginas do seu diário. A miúda
escreve com muitos erros, e isso foi o ponto de partida. No fundo, são
três cenas, uma introdução e um prólogo, que representam
o apanhar dessas fadas pela miúda. É apenas isso, uma visão
musical daquilo que ela fazia na visão escrita: "Nanny, today
I caught a fairy!”. É muito giro, os meus filhos adoram o livro,
e eu achei que seria interessante. Orquestralmente, era um piano, uma harpa
e um quarteto de cordas, e achei que aquele mundo etéreo resultava
bastante bem dessa forma.
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Untitled Document
Notas de programa como aproximação
ao público
Geralmente não me interessa que as pessoas percebam os textos que uso
nas obras – eu dou-lhes um imaginário. Isto porque as minhas
notas de programa são um bocadinho surrealistas, não é?
Dou-lhes uma frase, ou duas, ou três, mas nunca falo sobre como é
que construí a obra – senão, teria de partir do princípio
que o ouvinte sabia música, e eu tento sempre escrever as minhas notas
de programa para um público leigo a nível analítico.
Acho que deve ser assim, porque se queremos disseminar este tipo de música
e fazer com que toda a gente o ouça, temos que dar às pessoas
algo com que se identifiquem de alguma maneira. Aliás, o teatro é
óptimo, porque as pessoas têm mais referentes, por qualquer motivo.
Mas se tiveres uma obra orquestral, as pessoas ouvem, entram naquele mundo,
como no Squashed Fairies, e dizem: "ah, realmente, nota-se aquele
mundo etéreo das fadas…". No entanto, quando tens muito
teatro em palco, os instrumentistas podem passar um bocadinho por patetas
que andam por ali, e eu não queria que isso acontecesse. Se por um
lado isso não é suficientemente importante, por outro lado foi
precisamente esse o ponto gerador da minha história. Acho que tem que
haver um ponto de equilíbrio, especialmente em peças que são
muito teatrais, de forma a que possa comunicar com o público da melhor
forma possível. Mas no que toca a eles perceberem exactamente aquilo
que eu estou a fazer, prefiro ter uma nota de programa explicativa. Por acaso,
as pessoas normalmente perguntam: "Mas o que é que quer dizer
Squashed Fairies?" ou "Porque é que deste o nome
em inglês?". Aí eu respondo: "Olha, porque Fadas Esmagadas
é um título um bocado horroroso em português, e em inglês
sempre escapa a esse problema...”
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Untitled Document
Surya Namaskara
Há uma obra minha, o Surya Namaskara, que tem aspectos teatrais.
Há um ecrã enorme e por trás está a minha professora
de yoga, e ela faz o “surya namaskara” – é um conjunto
de posições do yoga que representam a saudação
ao Sol. São doze movimentos, e há também o grupo de música
de câmara. Estava tudo às escuras, e portanto foi um teatro de
sombras – a minha professora passou a obra a fazer apenas o “surya
namaskara”, porque eu pensei que seria interessante ter aquilo que gerou
a própria peça integrado nela. Não quer dizer que nós
não possamos só ouvir a peça mas também seria
interessante termos a saudação ao Sol ao vivo. Nesse caso, como
eu dizia, são doze movimentos, e esses doze movimentos correspondem
a doze secções da peça, cada uma quase como que respeitando
cada um dos movimentos que a Ana – a minha professora – apresentava.
São posições de permanência, essencialmente, e
claro que a música não pode ser permanente o tempo todo –
há mudanças, e quando as há a música sofre algumas
das mudanças. Mais uma vez é uma história, mas neste
caso não é uma história concreta… Tenho uma soprano
e ela vai dizendo o Mantra. Eu criei uma melodia minha e agora já nem
sei a melodia original, mas ela vai dizendo “Om Bhoor Bhuvassuvah /
Tat Saviturvarenyam” ao longo da peça, de forma cíclica.
Diz seis vezes o mantra, que está relacionado com o dia e com a noite
– temos as 24 horas do dia e a metade é representada pelos 12
meses do ano… É este género de coisas que me interessa
explorar, que se calhar nunca ninguém vai saber mas também não
me interessa que ninguém saiba. Para mim, é o que me faz escrever,
e é assim que eu consigo encontrar a minha própria coesão.
O Solos IV, por exemplo, tem a ver com a mudança das estações
e com as mudanças de ciclos – falo do próprio ciclo do
mantra, que corresponde ao ciclo do dia e ao ciclo do ano. Há coisas
que eu faço dentro da própria música, mas acho que provavelmente
não são perceptíveis. Também não são
para ser perceptíveis, basta que o sejam para mim ou se calhar até
para alguém que um dia mais tarde tenha algum interesse e queira olhar
para a peça com mais atenção.
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Untitled Document
Instrumentação
Geralmente, olho em primeiro lugar para a instrumentação. As pessoas
pedem-me: “Olha, podes escrever para este agrupamento?” –
e eu começo a olhar para os instrumentos, de forma a que eles se moldem
uns aos outros. No Squashed Fairies, por exemplo, foi assim. Eu tinha
um grupo de instrumentos que, salvo erro, era um quarteto de cordas com piano
e harpa – e podia, se quisesse, usar também voz. Mas decidi deixar
a voz de fora porque achei que os seis instrumentos seriam mais apetecíveis
para transmitir aquilo que eu queria. Andava a pensar o que é que haveria
de escrever, e a ideia surgiu-me ao ler o tal livrinho das fadas, que depois
tentei adaptar. Achei que seria fantástico, e os instrumentos são
óptimos – aquilo resulta às mil maravilhas ao nível
da harpa, e consegue-se criar aquele ambiente etéreo ao tocar nas cordas
do piano por dentro para acompanhar a harpa. Acho que consegui criar um ambiente
fantástico mesmo. Mas quando o Jorge Salgado Correia me pede para escrever
para as flautas, geralmente tenho a instrumentação antes e portanto
tento, perante a instrumentação que tenho, conseguir encontrar
a minha própria ideia. Claro que as pessoas às vezes dizem: “Tens
14 instrumentos, podes escolher.” Se calhar, ando à procura de
uma ideia e depois perante essa ideia escolho os instrumentos que me são
oferecidos.
Eu não costumo partir do material. É ao contrário, parto
da ideia para encontrar a sonoridade que eu quero. Portanto tenho a ideia, e
depois perante a ideia que tenho tento encaixar as pecinhas do puzzle. Crio
o material harmónico e o material rítmico – se ele for preciso
– que são as coisas que eu sinto necessárias para que a
obra cresça de uma forma saudável.
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Untitled Document
Chimaera, Nothing Can Both be
And Not Be, Sounding Silences
A minha obra de orquestra do doutoramento chama-se Chimaera, mas podia
chamar-se outra coisa qualquer. Eu acho que tenho histórias para todas
elas… No fundo, a minha Chimaera é uma cabeça de
leão, um corpo de ovelha e um rabo de serpente, e portanto a obra tem
4 andamentos, o primeiro andamento corresponde à cabeça do leão
e é mais rítmico, depois temos o segundo, mais harmónico,
um terceiro provavelmente mais melódico, onde os solistas têm uma
certa liberdade de trazerem melodias para fora e o quarto é quase como
que a fusão, a própria quimera. É só com a fusão
dos três primeiros que conseguimos construir o animal…
Portanto, estamos a falar de uma orquestra grande, talvez de quarenta instrumentistas.
Provavelmente nessa altura ainda não usava o teatro, nem tinha pensado
muito nisso, e em termos orquestrais teria que pensar se tem que haver teatro…
Havia e há sempre uma história – isso é o meu ponto
de partida, é assim que trabalho. Como há pessoas que acreditam
no Evangelho e que trabalham sobre capítulos do Evangelho, há
outras que trabalham essencialmente sobre transformação. Esta
Chimaera não é mais do que uma transformação
do material vista sobre diferentes perspectivas, em que há o desembocar
dos três elementos mais um, que é o timbre. Neste caso, o timbre
foi tratado de uma forma um bocadinho fora do vulgar. Falo das misturas de flautins
com trompas, por exemplo. Já mais recente é o Nothing Can
Both Be and Not Be, que é uma obra para catorze instrumentos e tem
a ver com o facto de nós não podermos ser e não ser ao
mesmo tempo, literalmente. No fundo, tento encontrar o silêncio como ponto
de contraste entre o ser e o não ser. Mesmo dentro do silêncio
não se encontram estruturas silenciosas, portanto no fundo esta questão
já vem do Sounding Silences. São ambas obras que levam
o mesmo tipo de problemática, embora o Sounding Silences ainda
seja do meu doutoramento. Se calhar não é uma história
propriamente, mas para mim é. Como é que nós encontramos
o som dentro do silêncio…
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