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ENTREVISTA
 
Pedro M. Rocha
Entrevista a Pedro M. Rocha / Interview with Pedro M. Rocha
2004/Jul/16
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Formação: à procura do ser interior

 

Bom, vou tentar responder a essa tua questão uma vez que creio que existem componentes, diversos vectores que me levaram a ser aquilo que sou -  enfim, eu penso que cada um de nós tem sempre diversos vectores ou diversas variáveis que nos levam a ser aquilo que nós somos a uma dada altura. Eu penso que o facto de ter vivido de alguma maneira no meio rural, digamos com determinado tipo de princípios comportamentais bastante restritos, o facto de eu ter vivido o 25 de Abril quando eu tinha 13 anos de idade, são factores que, de alguma maneira, me levaram a desenvolver mais tarde um conceito que eu poderia chamar "liberdade" - que é não só um conceito mas um valor ao qual cada vez mais atribuo importância. Depois passei pela faculdade de Ciências com 18 anos de idade, estudei ciências geológicas durante 3 anos, quase que fiz o bacharelato. Nessa altura também entrei para o conservatório, onde continuei a estudar piano.

Em 1982 houve um seminário que me marcou bastante, em Viana do Castelo,  - os seminários de música electroacústica que se faziam então nessa altura e que alargou, de alguma maneira, o panorama da música que tinha nessa época.

Mais tarde, em 1983, decidi optar pelo estudo da música a tempo inteiro e, a partir daí, houve determinadas personalidades que me começaram a marcar. Uma delas foi o compositor e maestro (e grande pedagogo também) Christopher Bochmann, com quem comecei a estudar harmonia (e composição também, em aulas particulares desde 1982), outra o Emmanuel Nunes, com quem muitas vezes estivemos também na Fundação Gulbenkian (também a partir de 1982) e mais tarde, em Paris, tive a oportunidade também de estar com Alain Bancquart. Eu diria que o Bancquart foi mais uma espécie de pessoa que me deu um pequeno empurrão, uma espécie de catalisador de ideias que já vinham fermentando em mim que é a ideia, digamos, do microcromatismo. Ele, de alguma maneira, deu-me a coragem de começar a trabalhar com micro tons - embora antes de ir para Paris, justamente em 1990, tenha feito uma obra chamada Vórtice que já usa os micro tons pela primeira vez.

Foi importante também a passagem pelo IRCAM, também pelo GRM - isso permitiu-me ter uma visão relativamente vasta dos meios tecnológicos que, na época  - enfim as coisas evoluem muito rapidamente -, era possível ter à nossa disposição. Essa visão foi extremamente importante, continua a ser importante hoje.

 

A ciência de facto é uma componente importante no meu conceito de vida, de arte. A pintura também. Na minha adolescência tive um colega que se interessava pela pintura e ele, de alguma maneira, incutiu-me o bicho da pintura  e a imagem, de facto, é algo que sempre foi extremamente importante para mim a ponto de, de alguma maneira, querer conciliar a imagem com a música -  como sabes, é um trabalho que eu tenho vindo a desenvolver nos últimos anos, embora não de forma tão consistente e sistemática como gostaria.

 A outra componente que eu gostaria de referenciar tem a ver com a minha maneira de ser, a minha maneira, talvez, de conciliar dois personagens bastante contraditórios. Um seria um indivíduo bastante extrovertido, um indivíduo que, digamos, amaria as coisas mais imediatas da vida, e a outra um indivíduo profundamente introvertido, profundamente preocupado com a razão da existência, o porquê de existir  - com aquelas velhas questões, o que somos, de onde vimos, para onde vamos. Digamos que esse foi um assunto que, até aos meus 30 anos, nunca foi muito pacífico. A uma dada altura, a iminência de que a minha vida como ser físico e mental desaparecesse, era qualquer coisa que me angustiava imenso. Aliás houve um romance que me marcou bastante na altura, o Aparição, do Virgílio Ferreira, que abordava exactamente essa temática - eventualmente da nossa efemeridade -  que por um lado era sublinhado pela minha visão científica do universo, ou seja, a matéria em si seria capaz de criar vida, e a vida oriunda dessa mesma matéria seria capaz de criar, ela própria, todo esse universo mental e emocional que nós somos. Esse percurso, de alguma maneira a minha relação com esse percurso, e as pessoas com quem convivi, nomeadamente o Emmanuel Nunes que, a uma dada altura,  me aconselhou a ler uns livros do Castañeda, levou-me a abordar a existência - a minha existência como qualquer coisa de ligeiramente diferente, ou direi mesmo completamente diferente, de um ser efémero que nasce da matéria. Todas as suas atribuições seriam devidas à matéria e de facto eu comecei, desde alguns anos a esta parte, a ter uma perspectiva, completamente diferente, de que os nossos sentidos não nos transmitem a verdade primeira, nem última, daquilo que é o universo, e a nossa razão também não. Ou seja, o meu próprio percurso como músico, a minha relação com a música e, de uma maneira geral, a minha relação com a arte, obrigou-me a rever esse ponto de vista e a ter que me considerar como qualquer coisa de muito mais do que um ser que apenas é formado por matéria, que, provavelmente, tem uma parte que é pré-existente e que continuará, posteriormente, à desagregação dessa mesma matéria. Num certo sentido também se poderia dizer que a própria música constituiu uma fonte de formação. Como sabes o facto de nós termos que lidar com o som - que é qualquer coisa de absolutamente sensorial, intuitivo -  no qual muitas vezes a razão - ou, enfim, cada vez mais, no meu caso, falo por mim, que tive uma abordagem muito racional no início da minha formação como músico, mas nos anos mais recentes, cada vez mais, a minha abordagem do som é mais irracional, é mais sensorial, emotiva e intuitiva -  isso constituiu em si outra fonte de aprendizagem, que é o de procurar o conhecimento no interior de mim mesmo e, por extensão, acreditar que o conhecimento pode ser obtido por uma procura de alguma maneira consistente e humilde no interior de cada um de nós.

 
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Arte, Eternidade e Motivação

 

Ora bem, cada vez mais creio que a vida, o universo, é qualquer coisa que é muito mais transcendente do que a nossa própria razão consegue abarcar. Por outro lado, a obra de arte, por muito genial que seja, e vamos ter já aqui um problema não é? Que é saber onde é que está a obra de arte genial, não é? O que é que é o génio? Será que uma obra genial é genial apenas numa cultura, enquanto noutra cultura, se calhar, já não é considerada genial. Ou não é genial numa época mas depois passa a ser considerada genial… Enfim, vamos supor, hipoteticamente, que temos obras de facto geniais, e eu pessoalmente acredito que sim. Penso que o que é importante, é que nós nos possamos experienciar plenamente como seres (que somos)  - e quando digo experienciar plenamente refiro-me não apenas ao lado espiritual mas ao lado físico, digamos, à globalidade daquilo que nós somos como seres - , e, a partir ,do momento em que eu posso ser extremamente feliz, quando ouço uma peça tua ou ouço uma sinfonia de Mahler ou ouço a missa do Machaux, eu penso que o que é importante é que eu me sinta bem, que eu me sinta feliz quando estou a ouvir, quando eu estou a experienciar essa música. Se ela vai ser eterna, eu pessoalmente penso que não. A minha perspectiva, enfim, científica do universo diz-me que não. A minha perspectiva, digamos, do pouco que sei da evolução do universo, enfim, é que daqui a 5 milhões de anos o sol vai-se transformar numa gigante vermelha e vai-se dilatar e portanto Mercúrio, Vénus, Terra e Marte vão desaparecer. Nessa altura talvez nós já nos tenhamos transferido para outro planeta, com todo o manancial histórico-cultural que cá estava. Mas será que isso é importante? Não penso que isso seja muito importante, eu penso cada vez mais que, realmente, a preocupação da genialidade - se faço uma obra que fica na história ou não - é de alguma irrelevância. É evidente que todos nós, como artistas, gostamos que a nossa obra seja reconhecida, gostamos que se atribua valor à nossa obra e ao nosso trabalho. Isso é qualquer coisa que é inerente a qualquer artista honesto, acho eu, mas por outro lado o importante é que nós sejamos felizes, enquanto usufruímos do fazer a nossa obra, da alegria que temos em conceber uma obra e da alegria que temos posteriormente em vivenciá-la, em experienciá-la.

 

Poderia ter sido pintor, poderia ter sido cientista, se eventualmente tivesse tido um outro tipo de educação e um outro tipo de circunstâncias, penso que sim, penso que poderia ter sido. Mas também penso e também acredito que, provavelmente, a música é de todas as artes aquela que mais impacto provoca no ser humano. Penso que não é por acaso que a música - enfim ligeira, pop, rock, não importa - consegue levar atrás de si centenas de milhares de jovens, ou milhões de jovens, milhões de seres humanos no mundo inteiro. A música é qualquer coisa de bastante universal, enfim nós que somos músicos sabemos disso, porque estamos cá, optamos por fazer da música o nosso meio de vida. Eu penso que para ti será relativamente fácil explicar isso, mas nem sempre é fácil explicar, a outras pessoas, porque é que eu sou músico se não considero importante, de facto, que uma obra de arte seja eterna. Porque realmente experienciar-se a música é qualquer coisa que nos permite puramente ser. A minha experiência diz que quando eu sou, plenamente (e quando eu digo ser plenamente não implica ser plenamente apenas a minha parte racional mas toda a minha parte subconsciente, inconsciente ou super-consciente) aquele ser que existe em mim, ou eventualmente a parte mais profunda de mim, quando ela se experiencia na sua plenitude, aí nós somos felizes. E a música a meu ver é das poucas coisas na vida que nos permite ser plenamente, e podemos sê-lo talvez de três maneiras: ouvindo-a, tocando-a e compondo-a. Enfim compor é um acto não tão totalmente de audição como os dois outros, mas é um acto muito particular, é um acto onde existe uma alegria de estar a criar um edifício acústico, sonoro. E esse acto, dessa criação, é também um acto onde nós estamos a ser plenamente porque temos que estar plenamente, do ponto de vista emocional temos que estar completamente envolvidos.

 

O facto de eu ter determinado tipo de preocupações não confere à minha música características superiores às de outra pessoa que não tenha essas mesmas preocupações. Nós somos aquilo que somos, e não podemos fugir aquilo que somos. Talvez a minha música reflicta isso que eu sou, agora não quer dizer que outra pessoa que tenha uma maneira, eventualmente mais “nonchalante,” uma pessoa um pouco mais extrovertida por natureza que eu, não quer dizer que essa pessoa, esse compositor, ou esse artista, não tenha uma obra absolutamente fabulosa. Eu não estou a reivindicar nada para mim, embora acredite que, num determinado ponto, há qualquer coisa que nos une, enquanto seres humanos, e portanto acredito que de alguma maneira, se eu gosto da minha obra, penso ter algumas “chances” de que mais alguém irá gostar. Não toda a gente, com certeza, mas penso ter algumas “chances” que alguém pelo menos irá gostar dela. Enfim, os critérios de qualidade para uma pessoa, como sabes, não são os critérios de qualidade para outra e as condicionantes culturais, eventualmente, também são muito fortes, de maneira que é muito difícil encontrar-se uma universalidade na arte. Mas para responder à tua questão de uma maneira um pouco mais definitiva, eu diria que não é uma preocupação muito importante, a preocupação mais importante é eu gostar daquilo que estou a fazer mas, acredito que se o fizer satisfazendo-me, acredito que irei satisfazer alguém.

 
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Composição, Rigor e Liberdade

 

Ora bem, é um processo gradual e lento também, que teve a ver com a tomada de consciência de valores sociais. Ou seja, há determinadas coisas que nos dizem: “É certo fazer-se desta maneira, da outra maneira não é certo fazer-se.” e no entanto, se fizermos uma perspectivação de determinados hábitos ou de algumas leis ao longo dos tempos, alguns comportamentos eram tidos como correctos, depois passaram a ser incorrectos e depois eventualmente voltaram a ser correctos. Então em que é que ficamos? O que é que é absoluto? O que é que é verdadeiro? Digamos, essa atitude foi também, de alguma maneira transferida para o som, para o som em si, no ponto de vista microscópico - o material se quiseres -  como também a forma global. Qual é o resultado melhor, mais belo, mais artístico? - enfim, falando de uma maneira subjectiva. O que se passou é que, eventualmente, a minha formação científica impregnou, fortemente, os meus primeiros anos de aprendizagem musical académica. Penso que não foi negativo, penso que aprendi imenso, o facto de me ter obrigado a formalizar, de uma maneira extremamente rigorosa, deu-me um certo tipo de escola, mas comecei a aperceber-me que, muitas vezes, as obras menos formalizadas eram aquelas que soavam melhor. E vice-versa. As obras menos formalizadas onde existia mais aquele rasgo de: “Agora é esta ideia, não importa porquê.” Essas obras são frequentemente aquelas que soam melhor. Gostaria de chamar aqui, mais uma vez, a pintura. Ter observado o percurso de diversos pintores - Picasso, Kandinsky, Pollock - que a determinada altura cortaram, pura e simplesmente, radicalmente, com o universo pictórico tradicional e passaram a fazer coisas quase completamente como outsiders, - enfim o caso dos Dadaístas, de alguma maneira também o Marcel Duchamps, as próprias provocações do Marcel Duchamps, as provocações do John Cage também, (enfim, isto poder-nos-ia levar muito longe, ao ápice deste tipo de provocações que é a “Merda de Artista” de Piero Manzonni) - tudo isto, de facto, leva-me a perguntar: “O que é que é legítimo?" ou: “O que é que é realmente belo?” “Qual é que é a melhor opção?” “Porque é que escolho isto e não escolho aquilo?” E às vezes a única resposta que tenho é: “Porque a um dado momento me apeteceu.” Ou seja, uma obra é um resultado de diversas opções que, cada um de nós, tomou em diversos momentos. Provavelmente noutros momentos teria optado por fazer escolhas ligeiramente diferentes e a obra soaria, com certeza, de maneira ligeiramente diferente, mas possivelmente no seu Pathos global continuaria a soar à obra que é.

Não sei se respondi bem à tua questão, mas para sublinhar essa resposta e para que ela fique um pouco mais clara, neste momento o que se passa é que não me coíbo de usar um determinado material ou uma determinada forma, só porque fui treinado para pensar que esse determinado tipo de material não poderia existir ou esse determinado tipo de forma não poderia existir. E ainda para te dar um outro exemplo - vivemos num mundo que cada vez mais é, não só mestiço (do ponto de vista de raças mas também do ponto de vista de culturas) mas cada vez mais aldeia global e, curiosamente, o fluxo de diversas matérias que não que não musicais - portanto absolutamente extra-musicais - têm convergido para fazer aquilo que eu sou ou aquilo que eu conheço. Esses diversos tipos de fluxo, ou de conhecimento, penso que, cada vez mais, são visíveis nas minhas obras mais recentes, daí nalgumas obras (particularmente no projecto quer estou a fazer agora) coexistirem instrumentos musicais do mundo inteiro, ou de grande parte do mundo inteiro. Instrumentos musicais que muitas vezes tocam linhas melódicas ou harmónicas, que são típicas do idioma musical ao qual pertencem, e com o qual estou a trabalhar, sobrepondo-as, portanto. Ou seja, estou a chegar a um nível de mestiçagem extremamente elevado. Continuar-me-ei a interessar por ele no futuro? Não sei, mas neste momento é uma ideia que me apetece usar e para responder à tua questão, é isso, neste momento se me apetece fazer qualquer coisa, pura e simplesmente faço.

 

Ora, o que se tem passado é que cada vez mais tenho trabalhado sem formalizar, embora às vezes sinta vontade de, enfim, fazer determinado tipo de coisas, especular. Normalmente, se pretendo pegar num material muito reduzido e pretendo ir muito longe, às vezes pode dar-me jeito formalizar. Mas a verdade é que me tenho sentido perfeitamente bem com a minha consciência ultimamente, trabalhando com pouca formalização ou, às vezes, nenhuma. Mas lá está, quer dizer, a formalização é uma ferramenta. É uma ferramenta que, a qualquer momento, penso que poderá ser útil utilizar e se me apetecer utilizar a uma determinada altura, utilizá-la-ei. Algumas da obras o que fazem é conciliar as coisas, mesmo aquelas obras que eu considero melhor conseguidas como o Dual. É uma obra que concilia justamente esses dois aspectos, de um rigor formalista extremamente elevado e, por outro lado, de gestos extremamente intuitivos bastante grandes.

 
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O contínuo sonoro e o ultra-cromatismo como “ferramenta” para a composição

 

Eu posso pegar num som, considero que este som está bom, não vou analisar o espectro dele, soa-me bem assim, mas eventualmente poderia pegar numa parte desse som ou de outro som qualquer e dividi-lo em décimos de tom como fiz no To a world free from countries. Eu para responder à tua questão de uma maneira mais rigorosa eu queria dizer o seguinte: o ultra-cromatismo, que é um conceito que quase parece que sou o único compositor em Portugal que fala dele - eu gostava de esclarecer que o ultra-cromatismo não é apanágio exclusivo da minha música - o ultra-cromatismo tem a ver com a música actual, ou seja há compositores que não falam nesse conceito mas cuja música envolve esse conceito. É, digamos, uma inevitabilidade da música actual, que nós possamos de facto trabalhar cada parâmetro de uma maneira tão fina que de facto estamos a encaminhar-nos para um contínuo musical. Tu fá-lo na tua música, o Emmanuel Nunes fá-lo na música dele, e outros colegas nossos fazem-no na sua própria música. Eventualmente não lhe dão esse nome, enfim se calhar falam numa formalização espacial ou rítmica, no caso do Emmanuel Nunes, enfim, outros tipos de coisas, mas esse conceito de contínuo sonoro, como sabes, nem sequer é um conceito meu, é um conceito que já vem desde há imenso tempo. Os modernistas dos anos 50 falaram imenso nele e portanto penso que, de alguma maneira, é uma inevitabilidade e qualquer coisa que pertence a toda a música, não só à minha mas à música de todos nós, actualmente.

 

Digamos que eu, mais uma vez, dir-te-ia que o ultra-cromatismo, quer sejam quartos, quer sextos, quer oitavos, quer décimos, quer centos de meio-tom (penso que o cento de meio-tom dificilmente se ouvirá, não é? Até porque qualquer som é de tal maneira complexo e variável no tempo que enfim, nem vale a pena falar nessa ordem de grandeza…), a própria música em meios-tons, enfim, só é em meios tons - se calhar - se for feita pelo piano ou pelo órgão. Se for um coro, uma orquestra, já será uma aproximação. Eu mais uma vez consideraria isso como uma ferramenta. É uma ferramenta que me permite pegar por exemplo - mais uma vez lembro-me do To a world free from countries, que tem um som de pizzicato de viola ou um som de um prato numa balança ou outros sons que aparecem no meio da obra e que são captados e depois são transpostos de facto na ordem do décimo de tom - enfim, porquê o décimo de tom? Porque não o oitavo de tom, porque não os décimos segundos de tom? Enfim foi uma unidade que me pareceu suficientemente pequena e, ao mesmo tempo, suficientemente audível para que eu percebesse melodias, não é? Foi uma ferramenta, pura e simplesmente. É uma ferramenta. Aliás, o que se passa hoje em dia, se eu tenho vontade de fazer qualquer coisa, faço e muitas vezes não estou preocupado com a quantificação daquilo que faço, desde que me soe bem - com tudo de subjectivo que essa palavra tem - ok, então é isso que farei. Se me dá jeito agora trabalhar determinado tipo de material, e realmente tentar usar micro-ritmos, intervalos mais pequenos que o meio-tom temperado, pois será um processo. É uma maneira de compor mais rápido talvez, se tu quiseres. Em vez de andar a pensar muito, às vezes, olha: “Deixa cá fazer este esquema assim…” Às vezes a formalização, ou eu diria, talvez no melhor dos casos a formalização é aquilo que nos permite compor de uma maneira mais rápida ou rentabilizar mais o tempo e obter qualquer coisa que seja relativamente consistente e coerente do ponto de vista musical ,se é que isso é importante, porque, hoje em dia, devo dizer que nem sequer já a coerência e a consistência sejam uma coisa que me preocupe.

 
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A utilização da electrónica

 

É difícil para mim, com o tempo que tenho disponível, conseguir produzir uma obra que tenha electrónica em tempo real. Isso por um lado, digamos que é uma dificuldade física e logística que tenho. E uma facilidade que tenho, justamente, é de compor pura e simplesmente para fita magnética, portanto música acusmática. Digamos que é um processo de trabalho que me permite rentabilizar enormemente o meu tempo. Por outro lado também tenho tido alguma dificuldade em que os instrumentistas toquem a minha música. Provavelmente a minha tendência é escrever de facto com micro-tons ou com micro-ritmos eventualmente, e os instrumentistas têm-se revelado, de uma maneira geral, relativamente avessos a fazer isso. É claro que a música só instrumental, ou música só acusmática, ou a junção do acusmático, ou da electrónica em tempo real com o mundo instrumental, é evidente que são mundos que me interessam e todos eles são válidos. Todos eles são formas de expressão, a meu ver, completamente válidas, que se completam e que se complementam umas às outras. No meu caso eu diria que tem sido mais os problemas logísticos de conseguir colocar isto como resultado final. Mas penso que, num futuro relativamente próximo, as coisas possam tornar-se um pouco mais fáceis em relação a isso.

 
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Relações da música e da imagem

 

Digamos que há duas vertentes. Uma absolutamente teórica, tem a ver com o meu lado espiritual e evolucionista de acreditar que nós estamos no caminho de adquirir mais capacidades intelectivas, perceptuais, e que estamos no caminho de nos tornarmos seres cujas capacidades serão mais eficazes no futuro do que são no presente. O facto de nós alargarmos as nossa capacidades perceptuais em contacto com uma obra de arte - ou seja, não tendo apenas a imagem ou não tendo apenas o som, mas sim ambas as coisas - obriga-nos a dar um salto, em termos de percepção, a meu ver bastante elevado. A experiência que tenho é que é extremamente difícil manter uma percepção elevada do ponto de vista de captação de uma imagem e extremamente elevada do ponto de vista de captação do som, ao mesmo tempo. Normalmente o que se consegue é estar bastante atentos à captação de um discurso musical, ou estar também só muito atentos à captação de um discurso pictórico e energético. A junção de ambas as coisas implica um salto perceptual algo elevado e provavelmente nós não estamos, neste momento, preparados para captar a multidimensionalidade destes dois mundos - a imagem com o som. Então porquê fazê-lo? Porque acredito também que a arte é uma maneira de nos fazer evoluir. É uma maneira de nos fazer, não só experienciar aquilo que somos, mas também de alargar as nossas capacidades, alargar o acesso ao nosso eu interior. E, nesse aspecto, a obra de arte total pode ser uma mais valia - enfim, pode ser. Aliás no meu caso pessoal, o que acho que é ideal em qualquer uma delas, que tenha imagem e som, é que possamos ver em separado só a imagem e em separado só o som, ou seja, podemos ter pelo menos essa possibilidade e depois podermos ter possibilidade de as juntar. Este é qualquer coisa que a meu ver é, digamos, um conceito teórico que de algum modo tem a ver com isso. Outra coisa que eu talvez gostasse de adicionar, tem a ver com um artigo bastante interessante acerca de consciência a 4 dimensões que li, há uns tempos atrás, onde se falava que "se imaginarmos um ser a uma dimensão e um ser a 2 dimensões, o ser a 2 dimensões faz um percurso, que é visionado pelo ser que vive apenas numa dimensão. Se o ser que tem 2 dimensões fizer um salto no seu percurso, salto esse que não está incluído na dimensão do ser que vive a uma dimensão, esse salto poderá não ser percepcionado, ou seja, o ser a duas dimensões pode ter momentaneamente desaparecido". Onde é que isto me leva, este tipo de especulação? - a considerar que nós neste momento temos um determinado tipo de consciência a n dimensões (eu provavelmente diria 2 dimensões, ou seja, uma dimensão tem a ver com a superfície - não com o volume - ) e que não nos permite pensar em 2 assuntos ao mesmo tempo. Normalmente nós podemos alternar, podemos pensar em 2 coisas alternadamente mas ao mesmo tempo, que eu saiba, isso é impossível. Então, em relação à arte, também é extremamente difícil - se não impossível - percepcionar as 2 coisas ao mesmo tempo. No entanto, e como, mais uma vez, acredito na evolução, penso que os nossos sucessores ou outros seres que habitam nesta galáxia ou noutras galáxias, terão já essas capacidades - têm já uma capacidade de perceber mais dimensões que a nossa. E claro que terão manifestações artísticas diferentes da nossa. Também te queria dizer que não vivo angustiado a pensar, numa espécie de ponto de fuga, que a arte tenha necessariamente que reflectir aquilo que é o ser humano do futuro. Mais uma vez volto a insistir, o que é importante e o que é bom, e aquilo que realmente nos faz feliz, é nós sermos felizes agora, fazermos aquilo que temos vontade de fazer agora, e, sobretudo, divertirmo-nos com isso.

 
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“Dual”, “Vórtice”, “Caminho”

 

O Dual, sem dúvida alguma, é aquela que eu considero, do meu catálogo, a minha primeira obra pessoal, onde de facto consegui conciliar - a meu ver com algum sucesso - uma certa formalização com uma grande intuição. Aliás, na altura, foi um pouco difícil fazer essa obra. Eu lembro-me, tinha alguns complexos de culpa por me ter permitido fazer determinados tipos de liberdades nessa obra que era uma coisa que, na altura, era pouco concebível para a minha maneira de encarar a composição.

Depois mais tarde, enfim - Vórtice - continuo a achar que é uma obra bastante importante na minha produção musical. Ainda não foi feito, mas é uma obra na qual essa intuição e essa formalização coexistem, e é uma obra onde já se começa a manifestar não só o meu pendor para os micro tons mas também para ruídos corados eventualmente ou mais ruído branco menos ruído branco, ruído corado, mais espectro inarmónico. Mais tarde depois, no IRCAM, Caminho, é uma obra que considero também bastante importante. A mesma coisa, portanto - existe formalização conjugada com bastante intuição e sobretudo existem sons de proveniências extremamente diferentes - não só o universo dos sons instrumentais, como os sons instrumentais que são transformados electronicamente, como os sons concretos utilizados em bruto, ou também transformados. Portanto existe uma panóplia de som relativamente vasta. É uma obra que eu considero muito importante embora, como tive aqui há alguns anos a oportunidade de te dizer, ainda hoje não sei muito bem como é que me hei de posicionar em relação a essa obra, uma vez que existe uma quantidade de especulação tão elevada sobre essa obra que, confesso, que ainda hoje não sei muito bem o que é que hei de pensar sobre ela. Mas sem dúvida que ela foi muito importante para todo o percurso que se deu após 1994.

 
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“Salmo 148”, “To a World Free From Religions”, “To a World Free From Countries”

 

Mais tarde, em 1998, eu voltaria a destacar o Salmo 148 que é uma obra que tem coro misto, órgão, solistas e fita magnética, que ainda hoje não está terminada, mas é uma obra que aquilo que existe já foi estreado. Inclusivamente a fita magnética de uma parte do Salmo é a parte que está na base do To a World Free From Religions, o que não deixa de ser bastante curioso, não é? Porque isto concilia aquilo que eu muitas vezes chamo de espiritual anarca, ou um anarquista espiritualizado, - não sei qual é que será a melhor definição -, que é justamente ter uma fita magnética que pertence a uma obra que, de alguma maneira, é oriunda da tradição judaico-cristã, como o Salmo 148, e por outro lado estar na base de uma obra como Para um Mundo Livre de Religiões. Este aparente tipo de contradições que às vezes me parece extremamente interessante.

To a World Free From Countries também considero uma obra extremamente importante na minha produção, por outro lado, porque também concilia a imagem e penso que foi relativamente bem conseguida. Há algumas obras que eu ainda não tive a oportunidade de ouvir, por exemplo, a minha peça para cordas ainda não foi estreada, já não vai ser estreada este ano. Esteve para ser feita este ano no festival do Estoril, mas razões de ordem logística impediram que isso acontecesse porque, de facto, do ponto de vista da leitura a obra acaba por ser muito difícil, uma vez que há diversos sinais que os músicos não estão habituados a ler. Penso que era uma obra relativamente importante do ponto de vista da especulação, do formal, do intuitivo e dos micro tons com os tais ruídos.

 
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Improvisação e pedagogia

 

A improvisação existe nalgumas das minhas obras, Dual de alguma maneira tem improvisação. É uma obra aberta e implica várias reacções no momento, sobretudo da escolha de cada um dos materiais em cada uma das páginas por parte do pianista e do tempo que ele utiliza para passar de um material para o outro. Há outras obras que têm utilizado improvisação, mas improvisação ,digamos, controlada. Em relação à obra aberta, que é um conceito que eu penso ainda não totalmente definido, eu gostaria de dizer que, por um lado, qualquer obra é sempre uma obra fechada. Porquê? Porque para nós o tempo processa-se de uma maneira linear, então qualquer obra é sempre uma obra fechada. Apenas é uma obra aberta na medida em que nós depois podemos confrontá-la com uma outra interpretação dessa mesma obra  - e, na medida em que estabelecemos comparações, aí distinguimos diferenças, e aí essa obra torna-se aberta, - mas qualquer obra quando está a ser executada é sempre uma obra fechada. Ou seja, qualquer improvisação, apesar de tudo, acaba por ter um resultado fechado quando nós a estamos a escutar. A improvisação e a forma obra aberta tornam-se interessantes quando nós podemos começar a estabelecer diferenças de uma interpretação para outra. Eu pessoalmente considero que a improvisação, e a obra aberta nessa mesma medida, são um campo de possibilidades e de exploração extremamente interessantes e extremamente expressivo. Devo dizer que é qualquer coisa que me interessa bastante e que gostaria eventualmente de, mais tarde, poder transportar isso para a música acusmática.

 

Em Leiria, desde 1999, montei uma classe de improvisação na qual temos uma componente onde abordamos Jazz, standards de Jazz, mas é apenas uma componente. Depois temos uma outra onde abordamos música atonal, e, às vezes, há coisas interessantes. Vamos improvisar, por exemplo, apenas com sons de cordas vocais, sons de voz com cordas vocais ou sons de voz sem cordas vocais e depois vamos misturar, eventualmente com outras coisas, ou com sons produzidos pelas mãos ou pelos pés. Às vezes misturamos isso com os instrumentos que eles próprios tocam e, de facto, é muito interessante que praticamente sem nenhuma formalização, apenas com instruções verbais, conseguem-se muitas vezes resultados musicais, acústico-musicais, extremamente interessantes. De facto tem sido para mim um laboratório, como músico, no qual eu tenho experimentado várias coisas e que penso que, mais tarde ou mais cedo, irá ter consequências. Ou provavelmente já está a ter consequências no meu trabalho.

 

 
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