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ENTREVISTA
 
Isabel Soveral
Entrevista a Isabel Soveral / Interview with Isabel Soveral
2004/Jan/16
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Percurso como Compositora

Sabe que eu faço este ano vinte anos de carreira, o que é imenso, o que me faz pensar que realmente nós crescemos muito devagar. Este ciclo dos vinte anos fez-me pensar muito, fez-me pensar na minha primeira obra e analisar o que é que eu trouxe, o que é que está nessa primeira obra e que continua a estar presente nestas últimas obras. E é claro que este exercício me fez ter consciência da evolução, principalmente a nível de técnica, a nível intelectual, daquilo que vai influenciar as escolhas formais, o trabalho formal... Mas concluí realmente isso, que crescemos muito devagar - porque escrever é um pouco como aprendermos a conhecer-nos a nós próprios. E é um processo lento, é um processo muito lento. E nós vamo-nos descobrindo nas obras...

Há uma fase inicial... A minha primeira peça é de 1983, para flauta solo, e há uma fase inicial que inclui essa peça (Quatro Variações para Flauta Solo), inclui os Opiums (para clarinete solo) e inclui a peça para piano Fragmentos. Portanto, digamos que é a fase que vai de 1983 a 1988, quando eu sigo para Nova York. Essa fase é uma fase mais ingénua, é uma fase mais experimental. Eu ainda era aluna do Conservatório, mas trabalhava com o Jorge Peixinho fora do Conservatório - até ao momento em que ele lá começou a dar aulas.

Portanto, eu venho do Porto para procurar o Jorge, para trabalhar com ele, depois de um curso que ele fez no Porto. E essa fase foi importantíssima, porque para já o Jorge é, como a gente sabe, uma personalidade crucial na evolução da música portuguesa e tinha um poço sem fundo. Falar com ele, conversar com ele, trabalhar com ele, foi uma experiência inesquecível. Portanto houve uma enorme aprendizagem nessa época. Mas isso passava-se a um nível, que era ao nível... O Jorge puxava pelo nosso lado intuitivo. Queria que nós conseguíssemos revelar as nossas tendências expressivas, e havia um misto de experimentalismo, mas tudo isto num processo muito ingénuo. Ele próprio dizia por vezes: "Olha, que engraçado, isto que tens nesta obra já escreveste na outra, de outra maneira". E todo esse processo era muito inconsciente, para mim. Portanto eu faço esse ciclo, isso é perfeitamente claro.

Depois, quando vou para Nova York, inicio o meu trabalho em electrónica, em música electrónica, que é um outro mundo. Foi um novo mundo, não só porque tive acesso aos meios electrónicos e finalmente aos estúdios, como também todo o estilo de aprendizagem - todo o processo de trabalhar era diferente, foi uma experiência diferente. Fazia parte de uma escola, a sério, que aposta muito na formação teórica e técnica e isso também foi muito importante. Eu fiz os cursos de Viana do Castelo, de música electrónica em Portugal, mas nós não tínhamos acesso à parte técnica. A escola americana obriga a ser também técnico, obriga a trabalhar à parte. Crescemos a esse nível também, o que é muito importante para a gente começar a ser mais independente. Mas durante esse período em Nova York, a sensação que eu tinha é que tinha que terminar esse ciclo, tinha que... mas ia adiando. Eu fui lá para estar dois anos e depois iniciei um programa de doutoramento - aliás, eu fiz um mestrado e um doutoramento ao mesmo tempo, foi bastante confuso. Mas eu queria no fundo terminar esse ciclo e estava a ver quando é que isso era possível, para poder iniciar outro. Isso é engraçado, porque as circunstâncias em Nova York limitavam-me. Eu era obrigada a seguir um programa muito rigoroso e sentia falta de toda aquela experiência de só escrever, como a que tinha tido com o Jorge... Portanto, a partir de certa altura, passados dois ou três anos, eu comecei a ter necessidade de regressar para Portugal, ou para a Europa.

Aprendi imenso lá. Tenho uma enorme dívida para com os americanos, porque acho que aqui os músicos têm uma enorme precariedade... A esse nível, eles são realmente fantásticos. As coisas estão lá para ser usadas, tudo está lá para se trabalhar, e quem quer fazer, faz. Mas eu vejo sempre essa estadia nos Estados Unidos como um ciclo. Isto a um nível, ao nível da minha realização, da minha relação com o acto de compor, etc. Mas por outro lado, a meio dessa estadia em Nova York, eu inicio um ciclo que são as Anamorphoses.

Fiquei mais dois anos nos Estados Unidos, mas a minha cabeça na verdade já estava cá. Aliás começo a ir e voltar, não fico lá a tempo inteiro. Tento trabalhar o máximo que posso no estúdio analógico, que tem os sintetizadores analógicos, como o Buchla, que é um sintetizador que agora começa a estar na moda outra vez mas que na altura praticamente não existia. Tinha o Moog, que a mim não me interessava tanto. O Buchla interessava-me porque não tem teclado, portanto, com o Buchla, nós não estamos limitados a um sistema temperado, criamos as nossas próprias escalas, com sequenciadores. Para mim, era mais complicado trabalhar, mas era mais completo para o que eu queria. Trabalhei bastante com o Buchla... E então no último ano em Nova Iorque, eu já estava essencialmente a trabalhar na recolha de material para trazer para cá. Porque sabia que não teria acesso a esse tipo de estúdio em Portugal.

Portanto, faço meses de trabalho em estúdio analógico para recolher material para trazer. E isto ao mesmo tempo que acabava o doutoramento, que para mim não era tão importante. Realmente importante, era que eu conseguisse avançar o máximo na área da música electrónica. E é com esse material que trago que depois continuo o ciclo das Anamorphoses. Depois das Anamorphoses, há as Quadramorphoses...
 
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As Composições: Quatro Variações, Contornos, Opium I e Opium II

A primeira obra, Quatro Variações para Flauta Solo, é uma obra em que eu não tenho a menor noção de influências, o que é que se passou, o que não se passou... Na verdade, até tenho dificuldade em me lembrar como é que se processou a composição dessa obra. Eu sei que ela é importante, ela é a primeira, e foi a obra que eu levei ao Jorge Peixinho e disse assim: "Trabalha comigo?". E ele disse: "Sim, pronto, vamos trabalhar". Portanto, provavelmente teve muita influência do Jorge, mas eu era muito nova e aquilo foi uma obra que cresceu muito intuitivamente. Mas nos Opiums, nas peças para clarinete, há na minha ideia, não olhando agora retrospectivamente, mas na altura, uma influência de Stockhausen. Porquê? Porque eu ouvi a obra de Stockhausen e foi completamente uma revelação. Um salto enorme. Hoje penso em que é que aquela obra me tocou, e penso que aquela obra me tocou essencialmente no mundo sonoro, no imaginário sonoro. E são coisas que os professores não podem ensinar, são coisas que acontecem. Eu fiquei imediatamente influenciada por aquele mundo sonoro. Portanto, não foi um processo que estava, nessa altura, completamente intelectualizado. Foi uma reacção, um estímulo que depois teve consequências.

Tanto no Opium I como no Opium II (depois os Contornos são mais evoluídos a esse nível, porque já é um trabalho por cima disso), foram duas obras que surgiram dessa descoberta. Portanto, eu poderia dizer que provavelmente estou bastante influenciada pelo mundo sonoro de Stockhausen. Mas só a esse nível, sonoramente, nos aspectos que a música de Stockhausen tem de orgânico, do material que evolui. Não estamos a falar de técnicas claras, estamos a falar de uma percepção bastante simples e física e que alimenta um imaginário para uma pessoa que é muito nova, e que vai por aí ser influenciada. Eu acredito que sim, que tenha sido sensível a esse nível.

Em Contornos - no grupo dos Contornos - eu começo a trabalhar... A minha música, já no Quarteto, tem uma tendência bastante contrapontística, mas isso surge de forma natural. Não foi porque eu vim descobrir por não sei quem... ou porque... Não, foi realmente... É uma qualidade de expressão, digamos. É uma tendência.

 
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O Ciclo "Morphosis"

Essa tendência foi sendo depois alargada a aspectos como por exemplo os tímbricos. Por isso as Metamorphoses, as Morphoses e as Anamorphoses... De onde é que o nome vem? O nome vem, exactamente, de valorizar a questão da morfose. Nós não sabemos onde estamos, porque foge e se transforma, e não conseguimos agarrar porque o material é vivo. É uma das características da minha música. É como se eu criasse às vezes monstros, outras vezes não... mas o material que está lá é vivo.

Há uma maneira de trabalhar que é muito orgânica e que em todo o ciclo de Morphoses está muito presente. A própria ideia musical está "intelectualizada" para isso. Ao serviço dessa tendência, desse processo. E, portanto, eu vou trabalhar isso assumidamente. O material evolui, como se estivesse quase vivo, de uma maneira muito orgânica - mas, aí sim, já muito estruturado. Depois, essa constante alteração tímbrica é alargada, é muito influenciada pelo mundo electrónico que está presente e não está, e que, quando damos conta, já passou. Portanto, é alargada para outros parâmetros, e hoje está presente na minha música, mesmo de orquestra.

Quando olho para a minha música instrumental, por exemplo, para grupos mais alargados - como a obra Anamorphoses VII - acho que está bastante presente o imaginário electrónico no mundo sonoro. Sonoramente, sente-se que na obra há opções que têm a ver com todo esse trajecto, de influência da electrónica. Isso até quando nós falamos com um instrumentista, quando dizemos ao percussionista, que está a tocar o xilofone, "no agudo, não faça crescendo, não faça nada" - isso é electrónico. E se fizer um crescendo, isso é como... como um crescendo numa mesa de mistura, que sai e entra. Tem a ver com aspectos de expressão, do músico, que vai mexer, vai trabalhar. O músico tira-lhe alguns aspectos humanos e põe-lhe alguns da máquina, entre aspas. Tem a ver com a própria escrita. Só que o músico, o intérprete, tem que perceber, e às vezes não sabe, que da ideia inicial e da ideia primeira, há essa vontade da minha parte, de que sonoramente o mundo esteja bastante na fronteira entre o mundo electrónico e o mundo instrumental.

O material das Anamorphoses, que inicialmente é bastante conciso, um grupo de intervalos e de ritmos que são aplicados de uma maneira - agora não vale a pena entrarmos nesses pormenores todos técnicos - e começam a criar, fragmentos de material, e conforme as Anamorphoses vão surgindo, eu já trabalho fragmentos que começam a ter uma identidade própria. Aquela frase já não tem, aquele material já não tem... É como se fosse outra vez o "um" dos elementos de trabalho. É claro que a densidade vai aumentando, porque é uma questão de escala. Eu vou aplicar um processo de morfose. Vou aplicar uma norma, uma equação de morfose, que aplica elementos curtos e simples a elementos complexos. E isso acontece pelas Anamorphoses fora. Tudo isso também vem da electrónica. Quando eu fui para estúdio, compor, quando eu fui para lá, aquilo era um mundo completamente diferente. A própria aprendizagem de reagir ao material, a maneira de estar do compositor é diferente... O tempo de trabalho é diferente... Eu, durante toda essa fase, sentia-me como uma escultora de sons. Sentia-me, quando entrava em estúdio, muito mais como uma escultora do que como uma compositora... que está a esculpir massas sonoras.

E tive necessidade - independentemente de todos os sons que eu faça de início, em estúdio, começando pelo oscilador e indo por aí fora até criar o som que quero, ou os "instrumentos" que quero - de começar a trabalhar o material das Anamorphoses, portanto comecei a transformá-lo em material já alargado. Então comecei a ter uma maneira de trabalhar diferente, que veio influenciar toda a minha música posterior. Isto é, hoje em dia, quando parto para uma obra, quando tenho a ideia de uma obra, ou quase uma ideia de uma obra, eu começo a trabalhar o material. E trabalho imenso material, paredes de material, a casa cheia de material! É um trabalho que demora imenso tempo, e que é difícil, é muito difícil. É, para mim, a fase mais complexa do trabalho. Depois, quando tenho todo esse material base, começo a escrever a obra. E então percorro, formo a obra... vou lidar com esse material de uma maneira diferente. E ele prolonga-se.

Há uma tendência para fazer ciclos. É claro, há ciclos, porque eu produzo tanto material e depois quero fazer obras com ele! Tenho que me realizar, realizar esse lado, em que é importante explorar e potencializar. Daí essa tendência para os ciclos. E aliás, nunca sei terminar um ciclo. Eu interrompo. A ideia que tenho é que, para mim, mesmo na própria obra, se me disser assim: "mas como é que você termina uma obra?"... Não me faça essa pergunta, que eu não sei. Eu interrompo a obra, e depois é claro que a minha experiência como compositora e técnica... sabe como interromper, não é? Interrompe, dando-lhe um fim, naquele momento. Mas para mim não fechou completamente a obra, a obra podia continuar. Quando estreei as Anamorphoses VII, a primeira coisa que eu disse ao Chagas Rosa, que estava ao meu lado, foi: "Bem, isto podia continuar mais dez minutos..." Quer dizer, podia perfeitamente continuar! Por vezes são circunstâncias externas ao processo, que não têm nada a ver, como o tempo da encomenda que se tem que entregar, ou não sei quê... portanto eu interrompo. Mas eu tenho necessidade de continuar. E depois logo se vê como é que vai ser!

Vamos então pensar na própria palavra Anamorphoses. Talvez isso ajude a explicar... Imagine um objecto que está deformado. Quando se olha para ele, não se tem a certeza exacta do que é. Ele está desfocado, está deformado... Depois colocamos um espelho, com um corte, e é esse corte que se faz no espelho, é esse traço, é esse corte no espelho que nos vai corrigir o objecto e nos vai dar o objecto perfeito. Isto é o conceito de Anamorphoses.

Eu não sou da Física, portanto explico isto e lido com isto de uma maneira poética. Mas é esta a ideia das Anamorphoses, em que a relação entre o instrumento e a electrónica... Normalmente, quando ouvimos uma peça para electrónica e para instrumento, temos a tendência para pensar: "Aqui está o instrumento e aqui está a electrónica que está a contracenar com este instrumento". Comigo, isso nunca se processou dessa maneira, a não ser quando não era conseguido, não é? Isto durante a fase das Anamorphoses, porque depois altera-se, a partir da sexta obra do ciclo. Mas na maior parte, o que se processou, foi que eu queria que para o material sonoro, todo ele, não se tivesse uma noção clara onde é que ele estava - se na electrónica, se no instrumental, ou na fusão dos dois, e qual o momento. Há momentos com mais luz, porque o material aparece mais transparente, e momentos em que ele está como se estivesse a transformar. É aquela noção do "estar vivo", de que eu lhe falei antes, que é o estar a transformar-se ali na sua frente. Trata-se de uma verdadeira metamorfose, no sentido de se estar a transformar de uma coisa para outra. E isso eu obtenho, exactamente na relação muito próxima entre o que é que o instrumento acústico e os instrumentos electrónicos dizem. Portanto, o que é que cada um diz. E está muito próximo, funde-se e por vezes não se tem noção, não se consegue separar. Isso está muito presente em todas as Anamorphoses, especialmente a partir da Anamorphoses VI, para saxofone e electrónica, que é a primeira obra em que esse processo começa a ser diferente. Porquê? Porque antes, a fita, ou a electrónica, tinha sempre uma atitude muito instrumental. Para mim, é como se estivesse a criar instrumentos imaginários, no sentido em que nós podemos imaginar o músico a tocá-lo. A partir da Anamorphoses VI, por vezes, esse aspecto está tão presente, que nós imaginamos: "Mas isto é quase... Isto não é um violino? Isto é quase um violino. Isto é o Buchla, isto é um sintetizador analógico". Só que nós conseguimos imaginar um violinista a fazer um staccato. Eu pretendo que isso desapareça a partir das Anamorphoses VI. A peça de saxofone e electrónica é a primeira que tem outro conceito por trás. Consegue-se perfeitamente perceber a atitude da electrónica, a atitude do instrumentista e do instrumento da música escrita. É, portanto, absolutamente diferente. Eles estão próximos, sim, porque a electrónica é quase como que uma sombra.

Eu comecei a fascinar-me pela ideia da sombra. Por vezes, aquela ideia do estar também próximo, mas já não é a mesma coisa, é uma projecção do objecto principal numa circunstância em que a luz é diferente, em que isto é assim... Portanto, eu comecei a trabalhar a electrónica de outra maneira, ainda de uma maneira muito experimental em Anamorphoses VI. E agora tenho seguido essa linha.

O discurso instrumental é muito claro. E esse discurso não interfere com o da electrónica, mas há uma presença desta a envolver, como se fosse uma pele, a envolver o que é apresentado pelo instrumentista.

 
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"Mémoires D'Automne"

As Mémoires aparecem... Eu passo uma fase em que estou em Paris, em 1997 e 1998, em que estou a escrever em Paris. Quando as Mémoires são escritas lá - aliás as Inscriptions também - elas aparecem de um trabalho com a memória. É um jogo... Foi uma ideia, inicialmente... Estas ideias têm várias fases, à medida que nós vamos crescendo com a obra que se vai intelectualizando mais e mais...
Mas eu vou falar da primeira, porque a primeira é aquela que, no fundo, mais diz... Quando nos questionamos: "Mas porquê esta obra? Porquê aquela obra? Eu tenho necessidade de escrever, tenho necessidade de o fazer. Mas, o quê? E porquê? O que é que vai agora aparecer? E de onde é que vem?" Em Paris, tinha acabado de viver uma fase especial da minha vida, emocionalmente falando, e da qual só tinha, obviamente, memórias. Havia uma procura, de recuperar essa emoção, de recuperar esse sentimento, para não o deixar fugir nem transformar demasiado. Porque nós temos uma dificuldade enorme em reter o essencial da memória, porque o cérebro nem sempre o permite. E eu queria recuperar essa intensidade emocional, essa densidade de toda a experiência emocional e queria trazer... Então pensei: "Não. Esta vai ser a minha próxima obra. Vai ser trazer esta experiência emocional, trazer..." E nós pensamos isto, mas não quer dizer que você ou outra pessoa que a vá ouvir perceba alguma coisa disto. Não passa na obra - é só para o próprio, é o estímulo, digamos. E então, eu tentei criar através de uma elaboração do material muito específica, e que, principalmente a nível intervalar, do som, da combinação sonora, em termos de frequências e também a nível de imagens fosse de uma intimidade muito grande mas que projectasse memórias, sombras, momentos... Isto é difícil de explicar, não sei muito bem como explicar, mas é recuperar essa emoção, que obviamente já aparece de outra maneira.
 
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"Inscriptions sur une Peinture"

Em Inscriptions... acontece uma coisa interessante, que é esta coisa do quadro que condensa, como uma fotografia que condensa, que passa toda a intensidade emocional, etc. Essa noção na música, é um pouco estranha, porque a música passa-se no tempo. Portanto, estar com esta tentativa de congelar momentos, ter quase uma fotografia sonora dessa ideia musical, é difícil, é uma coisa impossível. Portanto, passa-se só a certos níveis, não totalmente. Não podemos fazer isto de uma maneira absoluta. Em Inscriptions... tento fazer isso. Tento porque é uma obra inspirada num quadro. Obviamente é um quadro que tem uma leitura diferente da música, e não se passa propriamente no tempo. É já do tempo de cada um. Na música não, o tempo impõe-se e implica outros tempos que têm ligação à nossa memória e à maneira como vivemos o tempo. Mas passa-se... O discurso desenrola-se no tempo. Em Inscriptions..., tento ter um momento na obra em que sintetizo todos os esboços do quadro. O quadro é feito em camadas e eu vi o pintor a fazê-lo. Acompanhei o processo de criação do quadro. E Inscriptions sur une Peinture tem os vários esboços, como se fossem sketches. Depois há o momento em que a densidade é imensa e onde eu tento recuperar a densidade plástica do quadro naquele momento. Eles cruzam-se... Num preciso momento os esboços cruzam-se, e portanto todos os materiais passam... Naquele momento, se se pudesse fazer uma fotografia, estava lá tudo. E depois continua, porque a música não pára. É uma relação estranha... É quase autista como o processo da composição, mas para mim tem sido estimulante.
 
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"Un Soir j'ai assis la beauté sur mes genoux et je l'ai trouveé amère"

Eu vejo sempre essa obra com o poema do Rimbaud, sobre a ira, eu vejo-a sempre... Não sei porquê, mas vejo sempre essa obra entre parêntesis ao longo do meu percurso. Talvez porque tenha sido uma encomenda muito específica. Foi uma encomenda para eu retratar a ira, esse pecado capital, digamos. A ira, o que condicionou... todo o processo de arranque, não é? E eu fui buscar o Rimbaud porque considero que não há ninguém que fale da ira como ele. E a partir daí fui trabalhar esse poema. Obviamente que é mais directa a relação entre texto, a relação entre o poema de Rimbaud, o texto e a música, porque ele está lá. Portanto, uma pessoa está a receber a imagem, e, queira ou não, está a receber a imagem que o próprio poema lhe traz. Está a aparecer, conforme vai surgindo - e é suposto o texto aparecer, porque isso também era uma condicionante. A música, nessa obra, tem dois aspectos: por um lado acompanha de uma maneira quase descritiva o poema, por outro tem a sua autonomia em relação ao poema, e cria momentos em que a sensação de ira aparece como num quadro. São momentos que também são flashes, que retratam a ira, enfim... Isso depois é segundo o imaginário de cada um... A ira pode ser muita coisa, até pode ser bem boa... E portanto nesse aspecto, sim. Aliás é o início de uma relação com outros meios de expressão artística.
 
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CONSIDERAÇÕES E CONCLUSÕES

Quando nos perguntam "Mas como é a sua música?", isso é como se nos perguntassem "Mas como é que você é? Quem é você?". Quer dizer, não é fácil. Nós temos uma noção, temos dados que achamos que são adquiridos. Eu sou assim, a minha música tem isto, e isto e isto... Mas sempre que há uma estreia, sempre que há a apresentação de uma obra, nós confrontamo-nos com um novo rosto, quer dizer, há sempre um lado que a gente não conhece. E o grande salto - no meu caso, e provavelmente também em mais casos de compositores e autores - é aí, quando nós nos confrontamos com o lado que não conhecemos mas que é nosso. É daí que nós damos o salto para a próxima obra. Para mim, ao contrário do que se imagina - que é naquele ambiente em que estamos a escrever a obra, em que estamos a trabalhar - nessa fase, às tantas começamos a dominar. Portanto, nós trabalhamos, estamos a escrever e a trabalhar a obra, e é fácil falar dessa fase - o material assim, e faço estas opções e aquelas... Mas depois, há muitas opções e há muito de nós que está na obra e que a gente não conhece.
Sim, eu acho que a minha música é bastante visual, eu acho que... Toda a gente o diz, eu acho que sim. Inicialmente aceitei, agora até concordo. É bastante visual, portanto pode ser que... Bem, pode ser que se calhar eu seja essencialmente uma escultora, ou... Eu não sei, a minha música é visual. As pessoas conseguem ter uma imagem visual, têm sempre imagens visuais quando ouvem uma obra minha - isso, definitivamente. Há uma relação extremamente forte. Haveria muito a dizer sobre isto... Dava quase mais outra hora de conversa!
Tenho a noção que, nas últimas obras, essencialmente nas últimas duas obras, nós caminhamos... Eu quando escrevo, já sei o que quero escrever. E aquilo já está, é uma ligação muito forte entre o que eu quero e como é que está, como é que se enquadra. As influências não me preocupam, mas sinto-as, obviamente - interessa-me é que a minha linguagem se fortaleça cada vez mais, de maneira a que eu possa ir conhecendo melhor o meu potencial. Sabe, tenho sempre essa dúvida: "mas quando é que eu sou eu, e deixo de ser os outros?" É uma coisa, é uma questão... Nós temos que fazer essa conquista, e é nessa conquista que eu estou a apostar. É analisando o que é que está sempre presente em toda a minha obra, o que é que traz, o que é que faz parte de mim, o que é que eu tenho que assumir e tenho que trabalhar, o que é que ainda não está... Ainda tenho dúvidas... "Será que isto é meu? Será que isto ainda tem muitas influências?" Embora isso também não me preocupe, que seja somente meu, mas que eu esteja a escrever por mim, pela minha ideia, percebe? É uma libertação, eu estou nesse processo. Finalmente comecei esse processo, ao fim de vinte anos. Por isso é que eu digo que a gente cresce muito devagar... Depois, vou encontrando pontos de intersecção, às vezes até de uma maneira surpreendente, numa obra ou outra que vou ouvindo. Às vezes penso que, neste momento, muito da minha obra remete para certos compositores do Sul, de Itália, etc. Quer dizer, há realmente certas opções estéticas que estão presentes. Mas, talvez por eu ser capricorniana, a mim o que me preocupa é a coerência, a estrutura formal, forte, coerente, que me permite libertar em termos poéticos e criar uma obra que tenha essencialmente a ver comigo.
 
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Contemporaneidade na Composição

É uma questão que não me preocupa, neste momento, de todo. Até lhe vou dizer, mais ou menos, porquê. É claro que há uma altura em que eu sei perfeitamente onde me situo. Eu sou influenciada pelos modernistas (para mim o pós-moderno, e por aí, são tudo "tretas"). Portanto, vamos falar em modernismo, que o resto isso a gente nem sequer sabe o que é... E depois sei pelo que me influencio, sei que me influencio por escolas, por Stockhausen, e já anteriormente fui muito influenciada por Webern, etc, etc. Mas depois há uma certa altura em que as minhas preocupações começam a ser outras. Quando nós começamos a saber, começamos a estar no fundo mais preocupados com o próprio estilo. O que é, como é que a gente escreve... E aí há uma libertação. Eu neste momento não estou minimamente preocupada, porque penso que já fiz vinte anos de tropa.
 
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