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ENTREVISTA |
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Isabel Soveral |
Entrevista a Isabel Soveral / Interview with Isabel Soveral |
2004/Jan/16 |
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Versão Áudio
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Versão Texto
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Registo Videográfico
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Título do Suporte Entrevista a Isabel Soveral / Interview with Isabel Soveral |
Realizador Perseu Mandillo |
Produtor Tortoise Movies |
Tipo de Documento Entrevista MMP |
Tipo de Suporte MiniDV |
Data 2004/Jan/16 |
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Edição
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Editora Centro de Informação da Música Portuguesa |
Referência da Edição CIMP_entr_VID_IS |
Data 2004/Jan/16 |
Localidade Parede |
País Portugal |
Email Editor mic@mic.pt |
Página Web Editor Página Web Editor |
Edição Online |
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Observações
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Entrevista conduzida por Luísa Prado e Castro e realizada em casa da compositora (Lisboa) |
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Acesso
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Centro de Informação da Música Portuguesa |
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ISASOV_txt00
Percurso como Compositora
Sabe que eu faço este ano vinte anos de carreira, o que é
imenso, o que me faz pensar que realmente nós crescemos muito
devagar. Este ciclo dos vinte anos fez-me pensar muito, fez-me pensar
na minha primeira obra e analisar o que é que eu trouxe, o que
é que está nessa primeira obra e que continua a estar
presente nestas últimas obras. E é claro que este
exercício me fez ter consciência da
evolução, principalmente a nível de
técnica, a nível intelectual, daquilo que vai influenciar
as escolhas formais, o trabalho formal... Mas concluí realmente
isso, que crescemos muito devagar - porque escrever é um pouco
como aprendermos a conhecer-nos a nós próprios. E
é um processo lento, é um processo muito lento. E
nós vamo-nos descobrindo nas obras...
Há uma fase inicial... A minha primeira peça é de
1983, para flauta solo, e há uma fase inicial que inclui essa
peça (Quatro
Variações para Flauta Solo), inclui os Opiums (para clarinete solo) e
inclui a peça para piano Fragmentos.
Portanto, digamos que é a fase que vai de 1983 a 1988, quando eu
sigo para Nova York. Essa fase é uma fase mais ingénua,
é uma fase mais experimental. Eu ainda era aluna do
Conservatório, mas trabalhava com o Jorge Peixinho fora do
Conservatório - até ao momento em que ele lá
começou a dar aulas.
Portanto, eu venho do Porto para procurar o Jorge, para trabalhar com
ele, depois de um curso que ele fez no Porto. E essa fase foi
importantíssima, porque para já o Jorge é, como a
gente sabe, uma personalidade crucial na evolução da
música portuguesa e tinha um poço sem fundo. Falar com
ele, conversar com ele, trabalhar com ele, foi uma experiência
inesquecível. Portanto houve uma enorme aprendizagem nessa
época. Mas isso passava-se a um nível, que era ao
nível... O Jorge puxava pelo nosso lado intuitivo. Queria que
nós conseguíssemos revelar as nossas tendências
expressivas, e havia um misto de experimentalismo, mas tudo isto num
processo muito ingénuo. Ele próprio dizia por vezes:
"Olha, que engraçado, isto que tens nesta obra já
escreveste na outra, de outra maneira". E todo esse processo era muito
inconsciente, para mim. Portanto eu faço esse ciclo, isso
é perfeitamente claro.
Depois, quando vou para Nova York, inicio o meu trabalho em
electrónica, em música electrónica, que é
um outro mundo. Foi um novo mundo, não só porque tive
acesso aos meios electrónicos e finalmente aos estúdios,
como também todo o estilo de aprendizagem - todo o processo de
trabalhar era diferente, foi uma experiência diferente. Fazia
parte de uma escola, a sério, que aposta muito na
formação teórica e técnica e isso
também foi muito importante. Eu fiz os cursos de Viana do
Castelo, de música electrónica em Portugal, mas
nós não tínhamos acesso à parte
técnica. A escola americana obriga a ser também
técnico, obriga a trabalhar à parte. Crescemos a esse
nível também, o que é muito importante para a
gente começar a ser mais independente. Mas durante esse
período em Nova York, a sensação que eu tinha
é que tinha que terminar esse ciclo, tinha que... mas ia
adiando. Eu fui lá para estar dois anos e depois iniciei um
programa de doutoramento - aliás, eu fiz um mestrado e um
doutoramento ao mesmo tempo, foi bastante confuso. Mas eu queria no
fundo terminar esse ciclo e estava a ver quando é que isso era
possível, para poder iniciar outro. Isso é
engraçado, porque as circunstâncias em Nova York
limitavam-me. Eu era obrigada a seguir um programa muito rigoroso e
sentia falta de toda aquela experiência de só escrever,
como a que tinha tido com o Jorge... Portanto, a partir de certa
altura, passados dois ou três anos, eu comecei a ter necessidade
de regressar para Portugal, ou para a Europa.
Aprendi imenso lá. Tenho uma enorme dívida para com os
americanos, porque acho que aqui os músicos têm uma enorme
precariedade... A esse nível, eles são realmente
fantásticos. As coisas estão lá para ser usadas,
tudo está lá para se trabalhar, e quem quer fazer, faz.
Mas eu vejo sempre essa estadia nos Estados Unidos como um ciclo. Isto
a um nível, ao nível da minha realização,
da minha relação com o acto de compor, etc. Mas por outro
lado, a meio dessa estadia em Nova York, eu inicio um ciclo que
são as Anamorphoses.
Fiquei mais dois anos nos Estados Unidos, mas a minha cabeça na
verdade já estava cá. Aliás começo a ir e
voltar, não fico lá a tempo inteiro. Tento trabalhar o
máximo que posso no estúdio analógico, que tem os
sintetizadores analógicos, como o Buchla, que é um
sintetizador que agora começa a estar na moda outra vez mas que
na altura praticamente não existia. Tinha o Moog, que a mim
não me interessava tanto. O Buchla interessava-me porque
não tem teclado, portanto, com o Buchla, nós não
estamos limitados a um sistema temperado, criamos as nossas
próprias escalas, com sequenciadores. Para mim, era mais
complicado trabalhar, mas era mais completo para o que eu queria.
Trabalhei bastante com o Buchla... E então no último ano
em Nova Iorque, eu já estava essencialmente a trabalhar na
recolha de material para trazer para cá. Porque sabia que
não teria acesso a esse tipo de estúdio em Portugal.
Portanto, faço meses de trabalho em estúdio
analógico para recolher material para trazer. E isto ao mesmo
tempo que acabava o doutoramento, que para mim não era
tão importante. Realmente importante, era que eu conseguisse
avançar o máximo na área da música
electrónica. E é com esse material que trago que depois
continuo o ciclo das Anamorphoses.
Depois das Anamorphoses,
há as Quadramorphoses...
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ISASOVtxt01
As
Composições: Quatro
Variações, Contornos,
Opium I e Opium II
A primeira obra, Quatro Variações para Flauta
Solo, é uma obra em que eu não tenho a menor
noção de influências, o que é que se passou,
o que não se passou... Na verdade, até tenho dificuldade
em me lembrar como é que se processou a composição
dessa obra. Eu sei que ela é importante, ela é a
primeira, e foi a obra que eu levei ao Jorge Peixinho e disse assim:
"Trabalha comigo?". E ele disse: "Sim, pronto, vamos trabalhar".
Portanto, provavelmente teve muita influência do Jorge, mas eu
era muito nova e aquilo foi uma obra que cresceu muito intuitivamente.
Mas nos Opiums, nas
peças para clarinete, há na minha ideia, não
olhando agora retrospectivamente, mas na altura, uma influência
de Stockhausen. Porquê? Porque eu ouvi a obra de Stockhausen e
foi completamente uma revelação. Um salto enorme. Hoje
penso em que é que aquela obra me tocou, e penso que aquela obra
me tocou essencialmente no mundo sonoro, no imaginário sonoro. E
são coisas que os professores não podem ensinar,
são coisas que acontecem. Eu fiquei imediatamente influenciada
por aquele mundo sonoro. Portanto, não foi um processo que
estava, nessa altura, completamente intelectualizado. Foi uma
reacção, um estímulo que depois teve
consequências.
Tanto no Opium I como no Opium II (depois os Contornos são mais
evoluídos a esse nível, porque já é um
trabalho por cima disso), foram duas obras que surgiram dessa
descoberta. Portanto, eu poderia dizer que provavelmente estou bastante
influenciada pelo mundo sonoro de Stockhausen. Mas só a esse
nível, sonoramente, nos aspectos que a música de
Stockhausen tem de orgânico, do material que evolui. Não
estamos a falar de técnicas claras, estamos a falar de uma
percepção bastante simples e física e que alimenta
um imaginário para uma pessoa que é muito nova, e que vai
por aí ser influenciada. Eu acredito que sim, que tenha sido
sensível a esse nível.
Em Contornos - no grupo dos Contornos
- eu começo a trabalhar... A minha música, já no Quarteto, tem uma tendência
bastante contrapontística, mas isso surge de forma natural.
Não foi porque eu vim descobrir por não sei quem... ou
porque... Não, foi realmente... É uma qualidade de
expressão, digamos. É uma tendência.
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Untitled Document
O Ciclo "Morphosis"
Essa tendência foi sendo depois
alargada a aspectos como por exemplo os tímbricos. Por isso as Metamorphoses,
as Morphoses e as Anamorphoses... De onde é que o
nome vem? O nome vem, exactamente, de valorizar a questão da morfose.
Nós não sabemos onde estamos, porque foge e se transforma, e
não conseguimos agarrar porque o material é vivo. É uma
das características da minha música. É como se eu criasse
às vezes monstros, outras vezes não... mas o material que está
lá é vivo.
Há uma maneira de trabalhar que é muito orgânica e que
em todo o ciclo de Morphoses está muito presente. A própria
ideia musical está "intelectualizada" para isso. Ao serviço
dessa tendência, desse processo. E, portanto, eu vou trabalhar isso
assumidamente. O material evolui, como se estivesse quase vivo, de uma maneira
muito orgânica - mas, aí sim, já muito estruturado. Depois,
essa constante alteração tímbrica é alargada,
é muito influenciada pelo mundo electrónico que está
presente e não está, e que, quando damos conta, já passou.
Portanto, é alargada para outros parâmetros, e hoje está
presente na minha música, mesmo de orquestra.
Quando olho para a minha música
instrumental, por exemplo, para grupos mais alargados - como a obra Anamorphoses
VII - acho que está bastante presente o imaginário electrónico
no mundo sonoro. Sonoramente, sente-se que na obra há opções
que têm a ver com todo esse trajecto, de influência da electrónica.
Isso até quando nós falamos com um instrumentista, quando dizemos
ao percussionista, que está a tocar o xilofone, "no agudo, não
faça crescendo, não faça nada" - isso é electrónico.
E se fizer um crescendo, isso é como... como um crescendo numa mesa
de mistura, que sai e entra. Tem a ver com aspectos de expressão, do
músico, que vai mexer, vai trabalhar. O músico tira-lhe alguns
aspectos humanos e põe-lhe alguns da máquina, entre aspas. Tem
a ver com a própria escrita. Só que o músico, o intérprete,
tem que perceber, e às vezes não sabe, que da ideia inicial
e da ideia primeira, há essa vontade da minha parte, de que sonoramente
o mundo esteja bastante na fronteira entre o mundo electrónico e o
mundo instrumental.
O material das Anamorphoses, que inicialmente é bastante conciso,
um grupo de intervalos e de ritmos que são aplicados de uma maneira
- agora não vale a pena entrarmos nesses pormenores todos técnicos
- e começam a criar, fragmentos de material, e conforme as Anamorphoses
vão surgindo, eu já trabalho fragmentos que começam a
ter uma identidade própria. Aquela frase já não tem,
aquele material já não tem... É como se fosse outra vez
o "um" dos elementos de trabalho. É claro que a densidade
vai aumentando, porque é uma questão de escala. Eu vou aplicar
um processo de morfose. Vou aplicar uma norma, uma equação de
morfose, que aplica elementos curtos e simples a elementos complexos. E isso
acontece pelas Anamorphoses fora. Tudo isso também vem da electrónica.
Quando eu fui para estúdio, compor, quando eu fui para lá, aquilo
era um mundo completamente diferente. A própria aprendizagem de reagir
ao material, a maneira de estar do compositor é diferente... O tempo
de trabalho é diferente... Eu, durante toda essa fase, sentia-me como
uma escultora de sons. Sentia-me, quando entrava em estúdio, muito
mais como uma escultora do que como uma compositora... que está a esculpir
massas sonoras.
E tive necessidade - independentemente de todos os sons que eu faça
de início, em estúdio, começando pelo oscilador e indo
por aí fora até criar o som que quero, ou os "instrumentos"
que quero - de começar a trabalhar o material das Anamorphoses,
portanto comecei a transformá-lo em material já alargado. Então
comecei a ter uma maneira de trabalhar diferente, que veio influenciar toda
a minha música posterior. Isto é, hoje em dia, quando parto
para uma obra, quando tenho a ideia de uma obra, ou quase uma ideia de uma
obra, eu começo a trabalhar o material. E trabalho imenso material,
paredes de material, a casa cheia de material! É um trabalho que demora
imenso tempo, e que é difícil, é muito difícil.
É, para mim, a fase mais complexa do trabalho. Depois, quando tenho
todo esse material base, começo a escrever a obra. E então percorro,
formo a obra... vou lidar com esse material de uma maneira diferente. E ele
prolonga-se.
Há uma tendência para fazer ciclos. É claro, há
ciclos, porque eu produzo tanto material e depois quero fazer obras com ele!
Tenho que me realizar, realizar esse lado, em que é importante explorar
e potencializar. Daí essa tendência para os ciclos. E aliás,
nunca sei terminar um ciclo. Eu interrompo. A ideia que tenho é que,
para mim, mesmo na própria obra, se me disser assim: "mas como
é que você termina uma obra?"... Não me faça
essa pergunta, que eu não sei. Eu interrompo a obra, e depois é
claro que a minha experiência como compositora e técnica... sabe
como interromper, não é? Interrompe, dando-lhe um fim, naquele
momento. Mas para mim não fechou completamente a obra, a obra podia
continuar. Quando estreei as Anamorphoses VII, a primeira coisa que
eu disse ao Chagas Rosa, que estava ao meu lado, foi: "Bem, isto podia
continuar mais dez minutos..." Quer dizer, podia perfeitamente continuar!
Por vezes são circunstâncias externas ao processo, que não
têm nada a ver, como o tempo da encomenda que se tem que entregar, ou
não sei quê... portanto eu interrompo. Mas eu tenho necessidade
de continuar. E depois logo se vê como é que vai ser!
Vamos então pensar na própria palavra Anamorphoses.
Talvez isso ajude a explicar... Imagine um objecto que está deformado.
Quando se olha para ele, não se tem a certeza exacta do que é.
Ele está desfocado, está deformado... Depois colocamos um espelho,
com um corte, e é esse corte que se faz no espelho, é esse traço,
é esse corte no espelho que nos vai corrigir o objecto e nos vai dar
o objecto perfeito. Isto é o conceito de Anamorphoses.
Eu não sou da Física, portanto explico isto e lido com isto
de uma maneira poética. Mas é esta a ideia das Anamorphoses,
em que a relação entre o instrumento e a electrónica...
Normalmente, quando ouvimos uma peça para electrónica e para
instrumento, temos a tendência para pensar: "Aqui está o
instrumento e aqui está a electrónica que está a contracenar
com este instrumento". Comigo, isso nunca se processou dessa maneira,
a não ser quando não era conseguido, não é? Isto
durante a fase das Anamorphoses, porque depois altera-se, a partir
da sexta obra do ciclo. Mas na maior parte, o que se processou, foi que eu
queria que para o material sonoro, todo ele, não se tivesse uma noção
clara onde é que ele estava - se na electrónica, se no instrumental,
ou na fusão dos dois, e qual o momento. Há momentos com mais
luz, porque o material aparece mais transparente, e momentos em que ele está
como se estivesse a transformar. É aquela noção do "estar
vivo", de que eu lhe falei antes, que é o estar a transformar-se
ali na sua frente. Trata-se de uma verdadeira metamorfose, no sentido de se
estar a transformar de uma coisa para outra. E isso eu obtenho, exactamente
na relação muito próxima entre o que é que o instrumento
acústico e os instrumentos electrónicos dizem. Portanto, o que
é que cada um diz. E está muito próximo, funde-se e por
vezes não se tem noção, não se consegue separar.
Isso está muito presente em todas as Anamorphoses, especialmente
a partir da Anamorphoses VI, para saxofone e electrónica,
que é a primeira obra em que esse processo começa a ser diferente.
Porquê? Porque antes, a fita, ou a electrónica, tinha sempre
uma atitude muito instrumental. Para mim, é como se estivesse a criar
instrumentos imaginários, no sentido em que nós podemos imaginar
o músico a tocá-lo. A partir da Anamorphoses VI, por
vezes, esse aspecto está tão presente, que nós imaginamos:
"Mas isto é quase... Isto não é um violino? Isto
é quase um violino. Isto é o Buchla, isto é um sintetizador
analógico". Só que nós conseguimos imaginar um violinista
a fazer um staccato. Eu pretendo que isso desapareça a partir das Anamorphoses
VI. A peça de saxofone e electrónica é a primeira
que tem outro conceito por trás. Consegue-se perfeitamente perceber
a atitude da electrónica, a atitude do instrumentista e do instrumento
da música escrita. É, portanto, absolutamente diferente. Eles
estão próximos, sim, porque a electrónica é quase
como que uma sombra.
Eu comecei a fascinar-me pela ideia da sombra. Por vezes, aquela ideia do
estar também próximo, mas já não é a mesma
coisa, é uma projecção do objecto principal numa circunstância
em que a luz é diferente, em que isto é assim... Portanto, eu
comecei a trabalhar a electrónica de outra maneira, ainda de uma maneira
muito experimental em Anamorphoses VI. E agora tenho seguido essa
linha.
O discurso instrumental é muito claro. E esse discurso não interfere
com o da electrónica, mas há uma presença desta a envolver,
como se fosse uma pele, a envolver o que é apresentado pelo instrumentista.
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Untitled Document
"Mémoires D'Automne"
As Mémoires aparecem... Eu passo uma fase em que estou em Paris,
em 1997 e 1998, em que estou a escrever em Paris. Quando as Mémoires
são escritas lá - aliás as Inscriptions também
- elas aparecem de um trabalho com a memória. É um jogo... Foi
uma ideia, inicialmente... Estas ideias têm várias fases, à
medida que nós vamos crescendo com a obra que se vai intelectualizando
mais e mais...
Mas eu vou falar da primeira, porque a primeira é aquela que, no fundo,
mais diz... Quando nos questionamos: "Mas porquê esta obra? Porquê
aquela obra? Eu tenho necessidade de escrever, tenho necessidade de o fazer.
Mas, o quê? E porquê? O que é que vai agora aparecer? E de
onde é que vem?" Em Paris, tinha acabado de viver uma fase especial
da minha vida, emocionalmente falando, e da qual só tinha, obviamente,
memórias. Havia uma procura, de recuperar essa emoção,
de recuperar esse sentimento, para não o deixar fugir nem transformar
demasiado. Porque nós temos uma dificuldade enorme em reter o essencial
da memória, porque o cérebro nem sempre o permite. E eu queria
recuperar essa intensidade emocional, essa densidade de toda a experiência
emocional e queria trazer... Então pensei: "Não. Esta vai
ser a minha próxima obra. Vai ser trazer esta experiência emocional,
trazer..." E nós pensamos isto, mas não quer dizer que você
ou outra pessoa que a vá ouvir perceba alguma coisa disto. Não
passa na obra - é só para o próprio, é o estímulo,
digamos. E então, eu tentei criar através de uma elaboração
do material muito específica, e que, principalmente a nível intervalar,
do som, da combinação sonora, em termos de frequências e
também a nível de imagens fosse de uma intimidade muito grande
mas que projectasse memórias, sombras, momentos... Isto é difícil
de explicar, não sei muito bem como explicar, mas é recuperar
essa emoção, que obviamente já aparece de outra maneira.
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Untitled Document
"Inscriptions sur une Peinture"
Em Inscriptions... acontece uma coisa interessante, que é esta
coisa do quadro que condensa, como uma fotografia que condensa, que passa toda
a intensidade emocional, etc. Essa noção na música, é
um pouco estranha, porque a música passa-se no tempo. Portanto, estar
com esta tentativa de congelar momentos, ter quase uma fotografia sonora dessa
ideia musical, é difícil, é uma coisa impossível.
Portanto, passa-se só a certos níveis, não totalmente.
Não podemos fazer isto de uma maneira absoluta. Em Inscriptions...
tento fazer isso. Tento porque é uma obra inspirada num quadro. Obviamente
é um quadro que tem uma leitura diferente da música, e não
se passa propriamente no tempo. É já do tempo de cada um. Na música
não, o tempo impõe-se e implica outros tempos que têm ligação
à nossa memória e à maneira como vivemos o tempo. Mas passa-se...
O discurso desenrola-se no tempo. Em Inscriptions..., tento ter um
momento na obra em que sintetizo todos os esboços do quadro. O quadro
é feito em camadas e eu vi o pintor a fazê-lo. Acompanhei o processo
de criação do quadro. E Inscriptions sur une Peinture
tem os vários esboços, como se fossem sketches. Depois
há o momento em que a densidade é imensa e onde eu tento recuperar
a densidade plástica do quadro naquele momento. Eles cruzam-se... Num
preciso momento os esboços cruzam-se, e portanto todos os materiais passam...
Naquele momento, se se pudesse fazer uma fotografia, estava lá tudo.
E depois continua, porque a música não pára. É uma
relação estranha... É quase autista como o processo da
composição, mas para mim tem sido estimulante.
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Untitled Document
"Un Soir j'ai assis la beauté
sur mes genoux et je l'ai trouveé amère"
Eu vejo sempre essa obra com o poema do Rimbaud, sobre a ira, eu vejo-a sempre...
Não sei porquê, mas vejo sempre essa obra entre parêntesis
ao longo do meu percurso. Talvez porque tenha sido uma encomenda muito específica.
Foi uma encomenda para eu retratar a ira, esse pecado capital, digamos. A ira,
o que condicionou... todo o processo de arranque, não é? E eu
fui buscar o Rimbaud porque considero que não há ninguém
que fale da ira como ele. E a partir daí fui trabalhar esse poema. Obviamente
que é mais directa a relação entre texto, a relação
entre o poema de Rimbaud, o texto e a música, porque ele está
lá. Portanto, uma pessoa está a receber a imagem, e, queira ou
não, está a receber a imagem que o próprio poema lhe traz.
Está a aparecer, conforme vai surgindo - e é suposto o texto aparecer,
porque isso também era uma condicionante. A música, nessa obra,
tem dois aspectos: por um lado acompanha de uma maneira quase descritiva o poema,
por outro tem a sua autonomia em relação ao poema, e cria momentos
em que a sensação de ira aparece como num quadro. São momentos
que também são flashes, que retratam a ira, enfim...
Isso depois é segundo o imaginário de cada um... A ira pode ser
muita coisa, até pode ser bem boa... E portanto nesse aspecto, sim. Aliás
é o início de uma relação com outros meios de expressão
artística.
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Untitled Document
CONSIDERAÇÕES E
CONCLUSÕES
Quando nos perguntam "Mas como é a sua música?", isso
é como se nos perguntassem "Mas como é que você é?
Quem é você?". Quer dizer, não é fácil.
Nós temos uma noção, temos dados que achamos que são
adquiridos. Eu sou assim, a minha música tem isto, e isto e isto... Mas
sempre que há uma estreia, sempre que há a apresentação
de uma obra, nós confrontamo-nos com um novo rosto, quer dizer, há
sempre um lado que a gente não conhece. E o grande salto - no meu caso,
e provavelmente também em mais casos de compositores e autores - é
aí, quando nós nos confrontamos com o lado que não conhecemos
mas que é nosso. É daí que nós damos o salto para
a próxima obra. Para mim, ao contrário do que se imagina - que
é naquele ambiente em que estamos a escrever a obra, em que estamos a
trabalhar - nessa fase, às tantas começamos a dominar. Portanto,
nós trabalhamos, estamos a escrever e a trabalhar a obra, e é
fácil falar dessa fase - o material assim, e faço estas opções
e aquelas... Mas depois, há muitas opções e há muito
de nós que está na obra e que a gente não conhece.
Sim, eu acho que a minha música é bastante visual, eu acho que...
Toda a gente o diz, eu acho que sim. Inicialmente aceitei, agora até
concordo. É bastante visual, portanto pode ser que... Bem, pode ser que
se calhar eu seja essencialmente uma escultora, ou... Eu não sei, a minha
música é visual. As pessoas conseguem ter uma imagem visual, têm
sempre imagens visuais quando ouvem uma obra minha - isso, definitivamente.
Há uma relação extremamente forte. Haveria muito a dizer
sobre isto... Dava quase mais outra hora de conversa!
Tenho a noção que, nas últimas obras, essencialmente nas
últimas duas obras, nós caminhamos... Eu quando escrevo, já
sei o que quero escrever. E aquilo já está, é uma ligação
muito forte entre o que eu quero e como é que está, como é
que se enquadra. As influências não me preocupam, mas sinto-as,
obviamente - interessa-me é que a minha linguagem se fortaleça
cada vez mais, de maneira a que eu possa ir conhecendo melhor o meu potencial.
Sabe, tenho sempre essa dúvida: "mas quando é que eu sou
eu, e deixo de ser os outros?" É uma coisa, é uma questão...
Nós temos que fazer essa conquista, e é nessa conquista que eu
estou a apostar. É analisando o que é que está sempre presente
em toda a minha obra, o que é que traz, o que é que faz parte
de mim, o que é que eu tenho que assumir e tenho que trabalhar, o que
é que ainda não está... Ainda tenho dúvidas... "Será
que isto é meu? Será que isto ainda tem muitas influências?"
Embora isso também não me preocupe, que seja somente meu, mas
que eu esteja a escrever por mim, pela minha ideia, percebe? É uma libertação,
eu estou nesse processo. Finalmente comecei esse processo, ao fim de vinte anos.
Por isso é que eu digo que a gente cresce muito devagar... Depois, vou
encontrando pontos de intersecção, às vezes até
de uma maneira surpreendente, numa obra ou outra que vou ouvindo. Às
vezes penso que, neste momento, muito da minha obra remete para certos compositores
do Sul, de Itália, etc. Quer dizer, há realmente certas opções
estéticas que estão presentes. Mas, talvez por eu ser capricorniana,
a mim o que me preocupa é a coerência, a estrutura formal, forte,
coerente, que me permite libertar em termos poéticos e criar uma obra
que tenha essencialmente a ver comigo.
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Untitled Document
Contemporaneidade na Composição
É uma questão que não me preocupa, neste momento, de todo.
Até lhe vou dizer, mais ou menos, porquê. É claro que há
uma altura em que eu sei perfeitamente onde me situo. Eu sou influenciada pelos
modernistas (para mim o pós-moderno, e por aí, são tudo
"tretas"). Portanto, vamos falar em modernismo, que o resto isso a
gente nem sequer sabe o que é... E depois sei pelo que me influencio,
sei que me influencio por escolas, por Stockhausen, e já anteriormente
fui muito influenciada por Webern, etc, etc. Mas depois há uma certa
altura em que as minhas preocupações começam a ser outras.
Quando nós começamos a saber, começamos a estar no fundo
mais preocupados com o próprio estilo. O que é, como é
que a gente escreve... E aí há uma libertação. Eu
neste momento não estou minimamente preocupada, porque penso que já
fiz vinte anos de tropa.
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