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ENTREVISTA |
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Vítor Rua |
Entrevista a Vítor Rua / Interview with Vítor Rua |
2003/Aug/25 |
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Versão Áudio
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Versão Texto
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Registo Videográfico
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Título do Suporte Entrevista a Vítor Rua / Interview with Vítor Rua |
Realizador Perseu Mandillo |
Produtor Tortoise Movies |
Tipo de Documento Entrevista MMP |
Tipo de Suporte MiniDV |
Data 2003/Aug/25 |
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Edição
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Editora Centro de Informação da Música Portuguesa |
Referência da Edição CIMP_entr_VID_VR |
Data 2003/Aug/25 |
Localidade Parede |
País Portugal |
Email Editor mic@mic.pt |
Página Web Editor Página Web Editor |
Edição Online |
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Observações
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Entrevista conduzida por Teresa Cascudo e realizada em casa do compositor (Lisboa)
Transcrição, redacção, revisão: Miguel Correia, João Carlos Callixto |
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Acesso
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Centro de Informação da Música Portuguesa |
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A Guitarra, As Escolas de Música
e Uma Experiência
Quando tinha oito anos queria muito tocar guitarra. Nessa altura, os meus pais
ofereceram-me uma guitarra acústica – com seis cordas de nylon.
O meu irmão mais velho ouvia boas músicas dentro do rock: os Pink
Floyd da altura, os Beatles, os Rolling Stones, Bob Dylan, entre outros. Isso
foi óptimo para mim, porque no fundo era esse som que eu queria reproduzir.
Tenho a certeza absoluta que quando me deram a guitarra acústica para
a mão, no próprio dia devo ter dito que aquele não era
o instrumento que me iria servir. Por isso, devo ter insistido muito com os
meus pais, que viram da minha parte uma dedicação, e tive a sorte
de eles me terem oferecido uma guitarra eléctrica e, um ano mais tarde,
o meu primeiro sintetizador, que teve de vir de França.
Imediatamente comecei a trabalhar naquilo que queria, na música rock
– com a guitarra eléctrica. Isso foi-me extremamente útil,
não só nessa fase inicial mas também durante toda a década
de 1980. Tive a oportunidade de estar horas e horas, dias e dias, nos melhores
estúdios de Portugal. Foi fantástico para mim o conhecimento de
mesas de mistura, processadores de som, amplificação, manipulação
de fitas – de conhecer a sala e o próprio estúdio como um
instrumento de trabalho. Sempre fui uma pessoa muito curiosa e tive a oportunidade,
através dessa experiência com o rock, de fácil e rapidamente
estar envolvido com cabos, microfones, guitarras, amplificadores e processadores
de efeitos. Isso acabou por me ser bastante útil no meu trabalho posterior
como compositor e improvisador, na medida em que o utilizei esses processadores
e essas amplificações.
Paralelamente, estava a ter aulas de guitarra clássica. Até ter
encontrado o professor José Pina, da Escola Duarte Costa, tinha a tendência
de começar a estudar durante um ano para depois desistir. Às vezes
só ia a uma aula e desistia logo, mesmo que tivesse pago o semestre inteiro
– depois ficava especializado em jogar snooker, porque tinha de cumprir
o tempo das aulas. Facilmente me apercebi que, na altura, os Conservatórios
e as Escolas de Música eram sítios onde as pessoas que gostavam
de música deixavam de gostar. Foi o que me aconteceu, não sei
se acontece a mais pessoas. Felizmente as coisas mudaram e começaram
a surgir coisas fantásticas, como as que se fazem na Universidade de
Aveiro, na Universidade Nova ou na Escola Superior de Música.
Uma vez, convidaram-me a ir à Escola Superior de Música –
eu nunca tinha entrado no edifício – porque iam ser tocadas peças
do Virgílio Melo, do Pinho Vargas e uma minha pelo Manuel Jerónimo,
no Departamento de Clarinetes. Por sinal, ele gostou muito da peça e
até me convidou a escrever uma para o quarteto dele. O ensaio foi no
Salão Nobre. Lembro-me que fiquei à parte, porque me convidaram
como compositor para assistir. Os músicos que iam tocar nem sequer eram
alunos da escola, era já um grupo profissional.
Lembro-me de uma situação caricata. Quando marcaram a hora do
ensaio – tipo 17 h, ou assim – as pessoas de lá consultaram
o livro e disseram: “Mas como é que pode ser? É que às
18h há uma conferência!”. Eu não sabia quem é
que estava a falar, mas depois vim a saber que era a directora da escola. Acho
que fez uma recomendação do género: “Então
vão, mas não sujem nada. Deixem as cadeiras no sítio”.
No dia a seguir, quando o concerto começou, alguém no andar de
cima esteve durante todo o tempo a ensaiar piano, o que me fez pensar que o
que era mais importante era não sujar a sala e deixar as cadeiras no
sítio. Mas ali, perante os alunos, o público, os intérpretes
e os compositores, estava-se a dar aval àquilo! Quando muito, convidavam
o senhor ou a senhora que estava a praticar para vir assistir ao concerto! Mas
esta viagem sobre o ensino não é generalizada, há professores
fantásticos e sítios fantásticos para se aprender música
em Portugal. Por isso, como estava a dizer, acho que tive muita sorte em poder
ter escolhido a determinada altura o meu próprio caminho.
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O Ensino da Música e os
seus problemas
Tive muita sorte em ter apanhado um professor na Escola Duarte Costa que finalmente
motivava a pessoa, como foi o meu caso. O professor José Pina motivou-me
a lá estar, foi a pessoa com quem estive mais tempo a aprender. Os poucos
anos que estive com ele, foi com gosto. Ele motivou-me a ouvir música,
e a ver partituras, enquanto que na maior parte das vezes só ia a uma
aula e desistia logo.
Por outro lado, o ensino também está direccionado – ou esteve
durante muito tempo – a criar intérpretes, até haver agora
estas situações de Composição e Musicologia, como
por exemplo na Universidade de Évora e na Universidade de Aveiro. Uma
pessoa agora pode ir a um sítio e apanhar um bom professor, como acontece
na Escola Superior de Música, na Universidade Nova, ou em Aveiro. Acho
que é uma sorte ter-se aulas ou workshops, por exemplo, com o João
Pedro Oliveira ou com a Isabel Soveral. Mas, regra geral, o ensino está
talhado para sair e ser-se professor – e é óptimo ser-se
professor se se for bom. Sei que na Universidade de Aveiro, e em outras escolas,
se pode abordar o jazz, a música improvisada e a música electrónica
- há universidades que já têm mesmo um estúdio de
música electrónica. Até há bem pouco tempo isso
não acontecia.
O Stockhausen dizia uma coisa engraçada. Ele era contra este sistema
do Conservatório, que separava quase sempre Stravinsky de tudo o que
fosse posterior. Perguntaram-lhe então qual era a concepção
dele, e ele disse qualquer coisa do género “nos primeiros anos
deveriam ouvir muita música, depois numa fase posterior podia ouvir-se
essa música, analisando-a e comentando-a. Depois, a coisa mais importante
era dançar, as pessoas deviam dançar. Mesmo os jovens que à
noite dançam nas discotecas deviam ter aulas de danças de toda
a parte do mundo.” – então perguntavam-lhe de novo: “Mas,
e então a história da música… a notação?”
E ele respondia que para isso já havia muitos livros e CD’s, que
quem quisesse podia estudar isso no último ano. Quer dizer, era quase
tudo ao contrário. Ele dava menos importância àquilo que
no fundo é a história da música. Em todo o caso, são
raras as situações em que se fala das novas notações
musicais. Os intérpretes que saem dessas escolas, do Conservatório,
não estão normalmente preparados para o mínimo dos mínimos
dos sinais, dos métodos e das novas técnicas do seu instrumento.
Muitas vezes, os compositores têm de se informar em livros estrangeiros,
ou através da experiência com os outros músicos. Mas isso
do ensino, seria uma outra história…
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Afastamento do Rock
Eu queria uma guitarra eléctrica, trabalhar com processadores e essas
coisas. Se nessa altura já existisse o que está a acontecer agora
nas escolas, com a electrónica, a computação, se calhar
teria outra motivação. Isto para dizer que, numa primeira fase,
houve um contacto com o rock, paralelamente com as várias desistências
e reatamento das aulas esporádicas de guitarra clássica. Depois
surgiu um grupo rock que tive, com mais nome e mais divulgação,
e com o qual tive oportunidade de entrar em estúdio. Trata-se dos GNR,
o Grupo Novo Rock, que fundei com o Alexandre Soares e com o Tóli César
Machado. Trabalhei nesse grupo entre 1980 e 1983. Em 1982 conheci o Jorge Lima
Barreto, com quem formei, nesse mesmo ano, o Telectu. E o que é que aconteceu?
O Jorge Lima Barreto, deu-me a conhecer um mundo de música que até
ali era quase restrito ao rock e pouco mais. De repente, comecei a ouvir música
etnográfica, jazz, música electrónica, música concreta,
músicas acusmáticas. Em 10 minutos podia estar com os esquimós
e logo a seguir com o jazz norte-americano. Quando isso aconteceu, foi muito
importante para mim. Isso abriu-me as portas a um mundo totalmente novo e imediatamente
vi que era isso que me interessava.
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O Surgimento dos Telectu e as
primeiras experiências de Composição
Com os Telectu, numa primeira fase - entre 1982 e 1985 – abordámos,
de certa maneira, a música minimal repetitiva. Minimal, no sentido de
utilizar às vezes instrumentos simples, frases ou módulos. E repetitiva,
porque se usava a repetição nessas mesmas composições,
que eram escritas em formatos não convencionais de partitura - em coisas
pictográficas ou mesmo em texto. Muitas vezes, como usavam processadores
de efeitos, também tinham as fotografias dos instrumentos e tinham indicado
graficamente e por símbolos os sons que utilizávamos em determinado
instrumento. Mas depois, numa fase que vai de 1985 a 1987, nós dedicámo-nos
quase totalmente à improvisação, à improvisação
total. E aí dá-se uma coisa fantástica, que foi o começarmos
a ter encontros com improvisadores internacionais, músicos que convidávamos
ou que nos convidavam para tocarmos com eles. Isso foi importante, não
só para a actividade como improvisador, minha ou nos Telectu, mas também
posteriormente para o meu trabalho de composição, porque muitos
dos músicos e improvisadores com quem eu estava a tocar e estava a conhecer
nos Telectu eram simultaneamente improvisadores e intérpretes de música
contemporânea. Por exemplo, o trombonista Giancarlo Schiaffini tocou connosco
aí uns dois ou três concertos antes de me pedir e eu lhe escrever
a composição para ele, que foi a A Síndrome de Babel,
em 2001, para trombone solo. Mas antes, tive a oportunidade de conhecer e tocar
com ele como músico – de ouvir o seu som, as suas técnicas
e os métodos que ele usava como improvisador. Depois de conhecer todo
esse mundo sonoro dele, tornei-me mais apto para escrever. Ou seja, já
não era tanto escrever para trombone, mas era escrever para o Giancarlo
Schiaffini, e isso é muito importante em quase todas as obras que fiz
até hoje. Numa outra situação, com o pianista John Tilbury,
lembro-me de lhe ter enviado três ou quatro peças de piano. Quando
as enviei, fi-lo a pensar se ele teria disponibilidade de as interpretar. Enviei-lhe
a partitura e ele não só se prestou imediatamente a gravar e a
interpretar essas obras, como depois acabei por escrever uma obra a pensar nele
próprio, de quem me tornei amigo e com quem colaboro. O Daniel Kientzy,
o saxofonista francês, foi de todas as pessoas aquela com quem mais concertos
demos no contexto da música improvisada, e também foi, não
por acaso, a pessoa que mais encomendas me fez de peças. Vai sair um
disco dele só com peças minhas para saxofone, que vai coincidir
com o Festival de Paris de Música Contemporânea. Num dos dias vai
ser interpretada uma peça minha para dois saxofones contrabaixo, pelo
Daniel Kientzy, que se chama Recette Pour Faire une Souris, e depois
uma para contrabaixo e saxofone contrabaixo, que é Bar Mitzvah à
Trois, onde o contrabaixista também usa a voz.
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Dualidade Improvisador / Compositor
De certo modo, sinto que existe, e é bastante grande, uma ligação,
ou pelo menos uma interacção entre as duas coisas, uma espécie
de um ping-pong entre a improvisação e a composição.
Eu acho que a improvisação me é útil na composição.
A maior parte das composições para piano ou para contrabaixo que
surgem têm a sua origem em improvisações, mesmo até
no próprio instrumento – daí que eu até tenho um
violoncelo, uma viola, um violino, uma flauta, um clarinete, um saxofone, um
piano, etc. Não toco esses instrumentos, mas gosto de os ter, sempre
que posso, à mão...
Por exemplo, eu só consigo tocar na oitava mais grave da flauta, mas
preocupo-me em comprar livros, para além daqueles de orquestração,
em que abordam técnicas avançadas ou diferentes métodos,
tanto para a flauta como para outros instrumentos. Às vezes, consigo
usar essas técnicas, como por exemplo o whistle multifónico,
com sons múltiplos, ou o jet whistle, que é aquele som
de assobio em glissando.
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Os efeitos sonoros podem ser
pontos de partida para a composição?
Às vezes até são a base, são o material da própria
obra. Antes de começar uma peça, antigamente eu era muito meticuloso,
pensava nos instrumentos e nas técnicas que ia usar, nas séries,
nas notas, nas escalas, nos acordes, pensava em tudo. Agora quase tudo nasce
ou do contacto com o instrumento ou de improvisações. Posso estar
um dia, dois dias, ou até quinze dias e de repente surgirem matérias
de sons e efeitos, que depois desenvolvo.
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A Racionalidade na Composição
Na composição, uma pessoa tem que saber sempre quando é
que a obra está terminado ou quando é que ainda se pode corrigir
alguma coisa, mesmo que se componha em tempo real. Digamos que na improvisação,
acho que o melhor que vem da composição é a racionalidade
de uma pessoa estar a improvisar o mais possível em tempo real como se
estivesse a compor. Por outro lado, na composição, todas essas
liberdades intuitivas, espontâneas, e coisas que surgem do contacto com
os instrumentos, foram-me muito úteis no trabalho de compositor. Quando
pego um instrumento, faço-o sempre como uma criança que não
sabe tocar. Isso às vezes é-me útil porque descubro matérias
importantes.
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O fascínio das pautas
Quando viajo, gosto de comprar folhas de pauta. Em todos os países a
que vou, tento saber onde é o melhor sítio para as comprar e trago
sempre imensas folhas. Tenho um amigo que me encaderna tudo muito luxuosamente.
Gosto de me preocupar com isso porque escrevo com lápis, assim quando
uso a borracha não esborrata, daí que eu tente escolher a melhor
partitura. Quando a escolho, às vezes já estou a imaginar para
que instrumentos é que é mais adequada – se para orquestra,
para quarteto de cordas, para trio, ou solo. Às vezes, é a própria
folha da partitura que me dá a ideia da instrumentação
que vou usar.
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Sobre a obra Whistle Piano
Costumo compor sentado ao piano. Uma vez, ao escrever para vários instrumentos
– não me lembro qual a obra, mas era para um ensemble que tinha
uma flauta – estava eu a tocar umas notas no piano e para ter uma ideia
clara do envelope do som, o fade-in e o fade-out do som, assobiava
a nota, em que o assobio era a nota no piano, para tentar ver como é
que eu queria que o som aparecesse. De repente tocaram à campainha, era
um amigo meu músico, e eu abri-lhe a porta e disse-lhe assim qualquer
coisa do género: “se não te importas, sentas-te aqui, é
só dez minutos, estou a terminar uma coisa, venho já”. E
ele ficou sentado a ver televisão sem som durante quinze minutos, e o
que ele ouvia era eu a dar notas agudas no piano, com intervalos de meio-tom,
e a assobiar essas notas para dentro da caixa de ressonância do piano.
Depois parei e disse: “ok, desculpa lá, estava só a terminar
uma coisa”, e ele disse assim uma coisa do género “que ideia
fantástica, que coisa lindíssima, esta composição
para piano e assobio”. E eu, quando ele me disse isso, parei de escrever
a composição que estava a fazer e imediatamente fiz a peça
que realmente devia fazer, que era a de piano e assobio. Ou seja, claro que
depois estive durante imenso tempo a estudar que notas eram mais próprias,
se queria ou não que o som do assobio fosse muito audível ou que
fosse subliminar e estivesse escondido nas ressonâncias. No fundo, era
quase uma ampliação das ressonâncias de certas notas do
piano e depois também ver e reparar que quando era só uma nota,
era um som mais ou menos contínuo. Mas, por exemplo, com intervalos de
meio-tom, as ondas ficavam diferentes. Eram duas ondas, davam-se as duas notas
e o que se ouvia já era uma espécie de sirene rápida. Mas
se o intervalo fosse maior, já sem ser de meio-tom, já podia ser
tipo uma sirene lenta. Tive que estudar a velocidade, o tempo, etc. A partir
daí, é preciso estudar. Mas, digamos, a chave foi o momento em
que a pessoa me disse o que eu estava a fazer e eu não sabia o que estava
a fazer.
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Sobre as Partituras
Durante muito tempo fez-me confusão aquela pausa de semínima do
Luigi Nono, ele fazia uma espécie de um “n” e depois vi que
era uma tradição e que vinha de trás, se calhar já
do professor dele. Por exemplo, a escola holandesa, o Andriessen e outras pessoas
também usaram isso durante um período. Cá, por exemplo,
só o Joly Braga Santos usava esse traço assim a verde.
Gosto de observar a própria caligrafia, de ver. É quase como olhar
para uma pintura, gosto de ver… Há pessoas, por exemplo o Pascal
Dusapin, um compositor francês recente, que é tudo a régua…
Aliás, até creio que ele tem coisas editadas relacionadas com
pintura – uma exposição das próprias partituras.
Outros compositores já fizeram isso. O Ligeti, por exemplo, tem coisas
em que chega a fazer o traço da semínima de uma determinada forma
para não interferir com outros sinais que estão por cima e por
baixo. E aquilo, a determinada altura, fica com um certo humor. Mas funciona,
e agrada-me ver esse lado. Mas quer dizer, isto são coisas que, não
sei bem porquê, prefiro a ver o impresso. Aliás, talvez também
por isso é que mesmo tendo os computadores e os programas mais sofisticados,
nunca escrevi neles – ou se às vezes escrevo qualquer coisa é
para dar um exemplo rápido…
Quase que prefiro o acto de repetir, aqueles sinais tradicionais de repetição.
Mesmo que tenha que repetir a nota cinquenta vezes, prefiro pôr cinquenta
notas porque posso pôr nuances diferentes para cada uma, de articulações,
dinâmicas, ou assim. E gosto do lápis, da borracha, da régua,
de uma boa folha, e depois se é na vertical, se é na horizontal.
Mas o Arbeit French Fries foi para mim uma peça muito importante,
foi uma encomenda da OrchestrUtopica, e é importante porque me permite
explicar também imensas coisas do início, para ver como é
que às vezes coisas simples podem gerar aparentemente coisas mais complexas
– pelo menos para mim são complexas.
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Evolução dos Métodos
de Composição
Como comecei a escrever para pessoas que conhecia, como foi o caso do John Tilbury,
do Daniel Kientzy, do Peter Bowman e da Kathryn Bennets, comecei por escrever
solos. Cheguei a escrever duas ou três peças para orquesta, mas
era naquele sentido de escrever porque tinha de escrever. Queria ver o que acontecia
ao escrever para orquestra.
Então comecei por escrever, por exemplo, uma peça para piano,
depois outra para clarinete solo, e outra para flauta solo. Nessa altura achava
que já podia escrever para um trio de piano, clarinete e flauta. Depois
podia escrever um quarteto de cordas, e um outra peça para flauta. Aí
já me sentia encorajado a escrever para flauta e quarteto de cordas.
Fui conquistando assim… Primeiro os solos, depois os duos, os trios, os
quartetos. Até que, finalmente, tive a oportunidade e a honra de escrever
para a OrchestrUtopica. Foi bestial, porque pude finalmente pôr em prática
uma teoria que, até à altura, não tinha sido ainda desenvolvida,
que era a de imaginar uma situação. Por isso, essa obra foi importante
porque foi o concretizar de uma coisa que vinha há quase dez anos a tentar
concretizar musicalmente. Eu achava que podia utilizar um som, ou um conjunto
de sons, módulos de sons, ou eventos sonoros de instrumentos musicais
ou não, por si só, se forem belos, se forem bonitos, se forem
agradáveis – por exemplo, um harpejo de harpa, uma raspagem com
um objecto de metal como um gong, ou então um flätterzunge
ou um fluttertongue.
Agora imaginemos que eu queria fazer uma composição e resolvia
começá-la com uma raspagem no gong de metal. A sua reverberação
iria dar origem a uma nota grave na flauta e depois haveria finalmente um harpejo
de harpa. Eu imaginei essas três situações – os sons
isolados, se forem belos, podem ser o início de uma composição
que me pode interessar. Mas se em vez da raspagem do gong eu começar
por um harpejo da harpa, depois fizer um flätterzunge da flauta
e depois a raspagem, eu, em princípio, posso começar uma outra
composição. Depois, posso ainda pensar em termos verticais e horizontais
– talvez se ouvirmos os três sons em simultâneo se possa obter
coisas interessantes. Por essa razão, comecei a trabalhar essencialmente
em computador, porque podia fazer essas misturas por pistas e experimentar.
Por norma, achava que as coisas resultavam se houvesse um grau mais ou menos
grande de abstracção. Não costumo trabalho com escalas,
ou modos específicos – lido com notas graves, médias e agudas,
mas sem grande preocupação. Às vezes as pessoas perguntam-me:
“Que escala utilizaste?” – e eu nem faço ideia se usei
ou não usei uma escala, porque fui usando notas graves ou notas agudas
à medida que ia precisando delas, o que não quer dizer que tenha
que ser sempre assim. Mas, nesta peça, finalmente pude concretizar essa
ideia. Não é uma collage – não foi pegar
no solo de flauta, no solo de clarinete, no solo de trombone, no solo de piano
e pô-los todos numa horizontalidade. Não, foi algo mais que isso.
Foi ter essa experiência de poder escrever solos para flauta, trombone,
trompete e clarinete e, de repente, torná-los abstractos. No fundo, era
como se estivesse a escrever uma peça para orquestra – neste caso,
para piano e orquestra – em que o piano era a espinha dorsal da peça.
Por vezes, surgem coincidências, e algumas partes acabam por ter uma verticalidade
e uma certa importância. Mas, na maior parte das vezes são apenas
linhas horizontais de coisas independentes, que eu junto numa só, embora
com uma pequena diferença – e é por isso que digo que não
e bem collage, porque isso seria pegar exactamente nessas peças
e juntá-las. Aqui não foi o caso, porque mesmo que eu quisesse
fazer isso seria extremamente difícil. Posso escrever para os vários
instrumentos com velocidades diferentes, posso escrever notas, escalas, modos,
o que for, diferentes de quando escrevo para outros instrumentos, em que posso
utilizar outros métodos e técnicas. Eu costumo alterar a velocidade
ou o tempo de compasso para compasso, mas o piano tem sido o instrumento que
uniformizou, digamos assim, todos os outros instrumentos que vão surgindo.
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Untitled Document
A necessidade de combinar instrumentos
Não tenho a necessidade de misturar os instrumentos no sentido tradicional,
como se estivesse a escrever uma peça para orquestra. No entanto, fui
buscar muita informação a tratados de orquestração
e a livros específicos sobre técnicas instrumentais. Peguei nas
minhas experiências musicais das peças que fiz para flauta solo,
clarinete solo, ou trio de clarinetes, na peça que fiz para piano e assobio,
e utilizei aquilo que fui conquistando. Por exemplo, n’ A Síndrome
de Babel, para o Schiaffini, há um momento em que ele utiliza o
assobio. Nas peças Aerofonia I, II e III para
solo, trio e quarteto de cordas, compostas em 2001, 2002 e 2003, respectivamente,
isso também acontece. As pequenas coisas que eu conquisto num instrumento
por vezes são repetidas ou aplicadas a outro instrumento.
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Untitled Document
O problema da forma em Arbeit
French Fries
Arbeit French Fries foi uma peça bastante difícil para
mim, porque tive de resolver tudo em muito pouco tempo – talvez por isso
eu tenha adoptado esse processo. Quando me encomendaram a peça, deram-me
o prazo de vinte e tal dias para a compor. Eu posso agora escrever outra e usar
o mesmo processo sem estar condicionado pelo tempo. Isso não prejudica
o processo, mas ao escolher esse método o que é mais difícil
de resolver é a forma. Por vezes, as pessoas quando observam a partitura
ou quando a ouvem – porque eu recriei em computador, com alguns dos próprios
músicos a tocar, o Tilbury, o Kientzy, etc – o que costumam dizer,
curiosamente, é que estão a seguir a partitura e quando a peça
chega ao fim sentem que estiveram a ouvir uma improvisação. De
certa maneira, isso para mim é um elogio, porque no fundo era isso que
eu pretendia. É como que se nesta sala, ou numa maior, estivesse alguém
ao fundo a tocar a minha peça para flauta solo e no outro lado estivesse
alguém a tocar a minha peça para piano solo. Só que realmente
quando se põe isso em prática não é assim tão
simples, porque foram escritas em tempos diferentes. Por outro lado, tem de
se arranjar uma forma. Neste caso, a peça de piano serviu, como eu digo,
de base para introduzir outras coisas. Como a peça estava delineada em
três partes distintas, eu também descobri três partes distintas
para a orquestra. A partir daí, tudo funcionava quase em tempo real.
Eu olhava para o piano e procurava nos instrumentos que tinha à minha
disposição as técnicas e as coisas que empregava noutras
peças que até aí tinha feito.
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Untitled Document
Construção orgânica
das obras
Se pensar nas minhas peças solo – e estou a pensar nas peças
para piano, flauta, clarinete, trombone, etc – sinto que, ao nível
da forma, poderia pegar na parte final e começar pelo fim. Por exemplo,
se sentirmos que a peça tem quatro partes distintas, quase que se podia
em todas elas começar pela última, depois pela do meio e assim
por diante. Eu estou a exagerar, mas em quase todas elas sinto que há
uma grande liberdade. As peças não têm início nem
fim, começam e acabam por elas próprias, e quase que é
mais ou menos irrelevante a forma como estão organizadas. Agora, uma
coisa é eu ter consciência disso, na peça para instrumento
solo, outra coisa é ver se isso resultava com mais instrumentos. Eu não
estou a dizer que é irrelevante – em princípio não
quero nem desejo que um intérprete da minha peça de trombone comece
pelo fim. Ela tem uma ordem. Agora, a determinada altura eu notei que podia
jogar com isso, e para mim a forma está mais subordinada aos efeitos
de som, a coisas conceptuais e a matérias que eu escolho para desenvolver
numa peça. Por exemplo, a reverberação de um acorde no
piano, a maneira como eu retiro os dedos depois de dar esse acorde, pode influenciar-me
ao ponto de estudar e desenvolver durante bastante tempo essa técnica,
que será a única razão de ser, ou quase, dessa peça.
Numa peça que escrevi para flautas de bisel, Duplicator, mais
de 70% do som é quase ar em vez de pitch definido, em vez de
notas. Por isso é que eu digo que são mais essas situações.
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Untitled Document
A escrita para voz
A peça A Vaca de Aço, de 2000, para piano e voz, foi
muito importante para mim – não é que eu não tivesse
escrito antes muitos exercícios, estudos e coisas para voz, mas digamos
que é a minha primeira peça no lied, neste caso piano
e voz soprano. Estava sempre a adiar escrever para voz, e escrevia só
para instrumentos, mas uma das razões era não encontrar um texto.
Não é que não haja textos fantásticos à disposição,
mas eu precisava de receber assim um choque. E então estava à
procura, já há bastante tempo, em poetas portugueses, claro, como
o Pessoa, e em poetas de poesia concreta, e eram sempre situações
fantásticas, mas aquelas coisas tipo a flor, com o jardim e o céu.
Até que de repente, estou a folhear o Herberto Helder, e de repente encontro
os 16 Poemas Zen. Li as duas linhas do primeiro poema, e é qualquer
coisa como: “Para poder caminhar no infinito vazio / a vaca de aço
deve transpirar”. Mal vi esse poema, disse “é isto que eu
quero musicar!”. E depois, ainda por cima, tive a sorte de serem dezasseis
poemas, todos fantásticos e dentro deste espírito quase de haiku.
Finalmente, tinha a matéria prima da parte do texto e comecei a compor
para voz. Quando comecei, foi quase tão importante como quando comecei
a compor no piano. Eu até ali compunha muito na guitarra – era
guitarrista, era normal – depois comecei a compor no piano, que também
foi muito importante. Mas quando compus para voz, neste caso particular, foi
inacreditável o avanço para mim, como compositor. Eu pensei assim:
pronto, vou escrever para voz, como pensei que ia escrever para flauta ou para
trombone. E de repente tinha um instrumento em que, por muito má que
seja a minha voz, que é, eu podia estar a sentir as situações.
Por exemplo, a voz pode aparecer do Zen. E articulações,
ritmos, uma pessoa pode notar que as palavras podem SER com acentuaÇÕES.
Eu notava isso nos instrumentos, mas na voz foi muito mais claro. Até
aí, eu usava muito poucos sinais de articulação, porque
não sentia necessidade, e de repente com a voz comecei a sentir, e não
só na dinâmica. Por exemplo, posso sentir que estou sempre a pôr
pianissimo, mezzo-forte, mezzo-piano, há uma obsessão quase de
controlar toda a parte e não aquele género de deixar assim tipo
mezzo-piano, de estar uma frase inteira igual e só duas folhas depois
é que mudo. Depois, também o tempo e a dinâmica interferiram,
quase de compasso para compasso, ou de quatro em quatro, ou de três em
três – alterava-se, e a semínima ficava igual a x, para acompanhar
a respiração. Há também toda uma série de
coisas, de articulações dinâmicas, e tudo isso fez com que
eu aprendesse imenso. Quando eu voltei a escrever para piano, trompete, flauta
e assim, já vim com essa carga e esse conhecimento. E, a partir daí,
escrevi as duas peças que saíram agora no disco Works 1,
com poemas de Herberto Helder, A Vaca de Aço e Os Galos
de Madeira, ambos de 2000, e o poema de Mário Cesariny, Tocata
2, também para piano e voz. Depois daí foi uma sucessão
de flauta e voz, com os poemas do Herberto Helder, para guitarra e voz, também
com os poemas dele. Depois, finalmente, uma obra para orquestra de cordas e
voz soprano, do Fernando Echevarría, Nachtmusik, que é
um poema dele mesmo com esse nome. E depois também para barítono,
do poeta concreto Melo e Castro. A partir daí descobri também
uma série de poemas que me interessavam bastante. O do Fernando Echevarría
foi fantástico, e o do Melo e Castro também foi bestial, porque
era só números. Era o Soneto = 14 x. Era só números
mesmo, com um barítono a dizer “um, dois, quatro”. Era um
poema também bastante interessante dele, porque somado dá sempre
catorze. Mas usou a forma tradicional do soneto.
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Untitled Document
O Estado actual da Música
Portuguesa
Podia dizer-se, no fundo, e como expliquei no princípio, que sou quase
autodidacta, com todas as coisas positivas e negativas que isso traz. Positivas,
porque eu posso escolher os livros que quero ler na altura que quero ler, ou
os discos que quero ouvir na altura que quero ouvir, ou as partituras que quero
consultar na altura e quando me interessa, e quando quero desenvolver determinadas
composições ou assim posso recorrer a elas. Por outro lado, o
não ter tido, ou ter abandonado cedo os estudos normais de Conservatório
e essas coisas todas – se calhar também fugi um bocado àquele
mundo… Por exemplo, eu fui ver um concerto de música de jovens
compositores portugueses que acho que de jovens só tinham a idade, porque
não vi nada que ultrapassasse, nem sequer chegasse – talvez um
– ao Messiaen. E isso sempre num processo imitativo, o que também
não é grande coisa. Mas pronto, isto foi um aparte. É mais
no sentido de dizer assim: de certa maneira, ao não ter tudo isso, não
estou a competir com aquelas coisas de clichés de música
contemporânea que eu vejo. Há um academismo de algumas pessoas
que conheço, parece que o intuito é produzir gente de que depois
se diz assim nos intervalos: “ai, que bonito, é tal e qual Messiaen”
ou “ai, que bonito, está muito bem escrito”. Mas muito bem
escrito deve dizer-se a um aluno que faz um exame qualquer, o último
ano de violoncelo, ou alguém que compõe uma coisa, mas nunca num
sítio de concerto. Não interessa estar a dizer: “que bonito,
é igualzinho ao Stockhausen”. E eu não tenho esse problema,
nunca vou nem conseguiria escrever tipo Stockhausen ou tipo Boulez e assim.
Eu vejo essas coisas como uma vantagem de ter o meu mundo, que nunca vai interferir
nem competir com os outros. Alguém uma vez me perguntou se eu tinha,
por vir do rock, algum tipo de problemas, se ia ser difícil para mim
entrar no mundo da música contemporânea. E eu disse: “e quem
é que te disse a ti que eu queria entrar no mundo da música contemporânea?”.
Pelo menos naquele mundo negativo da música contemporânea não
quero mesmo entrar. Agora num mundo que está a acontecer agora, sim.
Já agora, e para terminar com uma coisa positivíssima, é
lógico que nestes últimos dez anos estão a editar-se livros
do Pinho Vargas, do João Pedro Oliveira, do Emmanuel Nunes, este lá
fora, do Sérgio Azevedo. Há livros a sair, há partituras
finalmente a serem editadas. Quer dizer, o Peixinho só deve ter uma partitura
editada, para guitarra, acho eu. É uma coisa inacreditável, e
depois muitas delas com erros, bem mas isso era outra história…
Mas positivo é edições de partituras fantásticas,
livros, organizações, associações, divulgação,
editoras a editar a nova música portuguesa. Isso é que é
importante, para finalmente poder acontecer como acontece em França ou
em Inglaterra, que é de repente haver edições de compositores,
e com intérpretes portugueses, se for possível, a interpretar.
E livros, não só como o do João Pedro Oliveira, pedagógicos,
mas também a própria música, como o livro do Pinho Vargas,
que é a experiência musical dele. Temos que ver as coisas pelo
lado positivo.
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