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ENTREVISTA |
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António Ferreira |
Entrevista a António Ferreira / Interview with António Ferreira |
2003/Aug/21 |
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Versão Áudio
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Versão Texto
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Registo Videográfico
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Título do Suporte Entrevista a António Ferreira / Interview with António Ferreira |
Realizador Perseu Mandillo |
Produtor Tortoise Movies |
Tipo de Documento Entrevista MMP |
Tipo de Suporte MiniDV |
Data 2003/Aug/21 |
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Edição
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Editora Centro de Informação da Música Portuguesa |
Referência da Edição CIMP_entr_VID_AF |
Data 2003/Aug/21 |
Localidade Parede |
País Portugal |
Email Editor mic@mic.pt |
Página Web Editor Página Web Editor |
Edição Online |
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Observações
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Entrevista conduzida por Teresa Cascudo e realizada na Miso Music Portugal (Parede)
Transcrição, redacção, revisão: Miguel Correia, João Carlos Callixto |
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Acesso
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Centro de Informação da Música Portuguesal |
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Untitled Document
Como se deu a sua aproximação à
Composição?
Não sei quando é que me tornei compositor.
O processo foi surgindo, não direi naturalmente, mas ao sabor da vida.
Posso dizer, muito claramente, que por alturas de 1981, senti uma vontade,
aliada a uma grande curiosidade, em avançar para uma ideia de composição.
Eu costumava ir de férias com amigos à Holanda, e em 81 adquiri
um disco editado pela INA-GRM do Bernard Parmegiani, o De Natura Sonorum,
ainda em vinil. Lembro-me que quando vim para Portugal e o ouvi, não
percebi nada do que era aquilo. Não fiquei irritado, fiquei completamente
intrigado e provocado, a perguntar-me sobre o que aquilo era.
Havia uma intuição de que havia ali uma ordem, uma ordenação,
uma vontade de composição, mas aquilo era completamente diferente
daquilo que eu achava que era a música. Pretensiosamente, como todos
os jovens com 19 ou 20 anos, achava que já tinha ouvido muita coisa
e que já conhecia as coisas mais avançadas e mais "fora".
Só que aquilo era completamente diferente. Foi a partir daí,
que se iniciou o difícil começo: buscando os livros nos cantos
mais esconsos da Buchholz; ou tentando, cada vez que alguém ia ao exterior
de Portugal, pedir um ou outro livro; lendo bibliografias de livros, como
um pequeno livrinho de Michel Chion: La Musique Électroacoustique,
que surgiu na colecção Que sais-je? da Presse Universitaire
de France em 1982. Esse livro ajudou-me imenso, porque tinha recensões
de muitas peças que se fizeram até 1980. Tinha bibliografia,
tinha indicações discográficas, e então comecei
lentamente a achar "que engraçado, há aqui uns senhores
que utilizam um conjunto de maquinaria, ou um conjunto de objectos que eu
pensava que tinham uma utilidade um pouco mais funcional, ou um pouco mais
reprodutiva". Porque o que eu conhecia da música, de facto, era
da música mais de cariz popular, rock, ou então da música
dita mais académico-clássica, mas supostamente essa tinha outra
maneira de ser executada mas que depois utilizava as técnicas do pop
e do rock para fazer gravações e discos. Aqui havia um campo
em que parecia que os meios utilizados, não eram simplesmente os de
reprodução, mas sim meios de geração ou criação.
Este foi o meu primeiro salto paradigmático.
Tive um choque ao perceber que havia ali uma estrutura, e que ela não
era um coisa antiga. A estrutura existe sempre, eu acho isso inescapável,
de uma maneira ou de outra. Evidentemente, mudam-se as regras e mudam-se as
maneiras expressivas da música, e essa é que é a questão.
Ali, o que eu sentia, era que havia estrutura, havia regras que eu não
conseguia ouvir porque a superfície da música era completamente
opaca para mim. Foi esse salto que a pessoa que tinha feito o disco, neste
caso o Bernard Parmegiani, já tinha feito, e eu sentia que também
podia fazer. E ao fazer esse salto, talvez eu alargasse a minha maneira de
ouvir e de escutar, e melhorasse. É que eu tenho um certo conceito
do perfeccionismo individual da pessoa, em termos individuais, não
em termos sociais, que acho que só dá desastres e chatices.
Portanto, pensava que podia talvez avançar mais, alargar mais.
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Porquê este especial interesse
pela música electrónica?
Eu posso dar duas indicações, uma mais prosaica, outra mais elaborada.
A mais prosaica é que como homem, "rapazola" que sou, acho
que há uma tendência, não direi inata, mas uma grande tendência
para gostar de maquinarias e objectos. De uma maneira ou de outra, e tirando
um ou outro caso, seja com máquinas fotográficas - os carros são
o caso mais óbvio - seja com tudo, como coleccionar ossos, os homens
gostam de mexer em objectos e criar coisas. Há depois quem diga, como
alguns "criadores" (entre aspas porque é outra palavra polémica),
que as obras que fazem são os seus filhos. Isto não é bem
correcto, porque ao contrário de uma mulher que, quando faz um filho,
além de ter dores de parto reais, tem depois pelo menos dez, quinze ou
vinte anos para cuidar do filho, um criador masculino faz a sua peça
e depois pode simplesmente esquecer-se dela. Ela vai depois para o circuito
e ele fica depois livre para ser fecundado pelas "musas" para fazer
outras peças. Portanto, a coisa não é assim tão
clara. Esta é uma parte prosaica, outra parte é que por questões,
eu não sei bem por que questões, talvez por questões de
família, visto o meu pai ser engenheiro - e isso talvez possa ter influenciado
de maneira não consciente - acabei por ir para Engenharia Química.
A minha ideia de ir para esse curso passava pelo facto de que eu gostava imenso
de perfumes, e ainda gosto. Eu gostava de ir para a parte químico-orgânica,
bioquímica, ou a química de terras raras como eles chamam, que
é a que lida com essas áreas. Quando estava no Instituto Superior
Técnico - entrei em 1979-80 - uma das cadeiras que nós tínhamos
no primeiro ano tinha de facto computador. E eu, que nunca tinha lidado com
computadores até à altura, lá tive que fazer uns programas
para fazer isto ou aquilo. Havia um outro programa em que tinha que simular
um jogo de xadrez, e achei muito engraçado uma pessoa poder dar um conjunto
de informações. Era uma linguagem codificada, mas de qualquer
maneira era uma linguagem com uma sintaxe, não tinha uma semântica
por assim dizer, mas tinha uma sintaxe, e isso provocava determinadas acções
num sistema, num circuito electrónico, ou seja o que for, e havia um
resultado. Essa era a curiosidade. Quando mais tarde descobri que havia uns
outros senhores que já utilizavam - não computadores nessa altura,
que eram máquinas dispendiosas e muito caras - essa ideia de uma máquina,
de haver uma sintaxe, para depois produzir um resultado em música, começaram
a fundir-se os dois interesses, com a parte prosaica aqui por cima a servir
de cobertura de açúcar.
Por outro lado há pessoas que defendem que a música electrónica
está de acordo com os tempos. Devido às outras máquinas
que existem desde o princípio do séc. XX, todas as máquinas
mecânicas, a existência da electricidade, que permite o aparecimento
de sons contínuos, com aquilo que em inglês se chama os drones
e que na música tradicional ocidental, podemos ligar ás notas
pedais, aos sons que perduram, contínuos. Portanto, a nossa sociedade
ganhou, acho eu, um ruído de fundo contínuo devido a motores que
estão sempre a funcionar, reóstatos, lâmpadas, os 50 ou
60 Hz da electricidade. Há sempre um ruído contínuo. Aliás,
quando há uma falta de luz grande, que acontece cá em Portugal
de vez em quando, é incrível o silêncio que surge, quer
no exterior, quer no interior. As dezenas de pequenos reóstatos, dimmers
e motores que estão sempre a trabalhar continuamente provocam este ruído.
Ora, este som contínuo não é propriamente um som natural
porque todos os sons têm uma tendência a ter uma evolução
temporal e, por questões físicas, não se conseguem manter
durante muito tempo. Aparecem e desaparecem. Talvez isso seja uma das razões.
Quanto às razões da sonoridade no aspecto tímbrico, isso
aí já não sei bem... se terá a ver com a parte actual
ou não. Pode ser que sim...
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Que reacções houve
relativamente aos dois CD's editados?
Isto é assim, como dizem todas as pessoas que escrevem, pintam, ou que
fazem seja lá o que for, quando atiram as obras para o público,
perdem a partir desse instante o controlo sobre elas. E isso faz parte da minha
tal pesquisa pessoal, ver o que as outras pessoas pensam em relação
a isso. É quase como... não são questões, não
são interrogações, não são provocações,
porque eu não sou uma pessoa que goste de provocar, mas é entre
a questão e a provocação. Gosto de ver de facto as reacções
das outras pessoas. Sou um ser humano, posso falar com educação
com as outras pessoas. De um CD, as pessoas dizem: "Isto é horrível,
isto é incrível, isto é isto, é aquilo", e
eu vou tomando notas e tentando estabelecer um padrão, e devo dizer que
até agora ainda não encontrei padrão absolutamente nenhum.
Por exemplo, a maior parte das pessoas que eu conhecia nos anos 80, num outro
campo que veio muito do rock e do pop, e que depois continuou a fazer música
depois daquele hiato em que estive parado, entraram muito agora nas tendências
do glitch e do ruído, de fazer coisas como o Rafael Toral, o
Nuno Rebelo, que também era dos outros campos. Essas pessoas gostam muito
mais do primeiro CD do que do segundo. Dizem "o teu primeiro CD é
único, excedeste-te, continua actualíssimo". No ponto de
vista deles, é actualíssimo, funciona perfeitamente. Este segundo
CD é bom, como dizia o Rafael Toral, mas é mais música,
por assim dizer. Eu disse-lhe: "Óptimo, para mim, o primeiro CD
foi uma obra de juventude, e neste segundo CD já houve muito mais vontade
minha de me estruturar e de querer fazer". Portanto, eu consegui fazer
isso, agora nas expectativas das outras pessoas, dos que têm quase acções
políticas contra isto, e ainda contra o sistema e a academia, de facto
o outro CD, com o nome que teve - que não tinha nada a ver com o que
foi feito até agora - eu compreendo que caiba muito mais no espírito
dessas pessoas. Para mim, são essas pessoas que estão dez anos
atrás. Quando quero entrar em polémica, digo: "Estão
dez anos atrás, por isso daqui a dez anos vão gostar do meu CD
actual". Mas aí espero já estar noutra fase completamente
diferente, se conseguir, não sei...
Em relação ao primeiro CD, gostava ainda de falar sobre uma coisa
que tem a ver com o que eu falei ainda há um bocado. Por exemplo, em
Dezembro, o João Paulo Feliciano falou para minha casa, para me convidar
a pôr uma música minha dentro dum habitáculo, no âmbito
da Experimenta Design, que neste caso consiste num camião TIR que contém
uma espécie de expositor do design português e que depois vai andando
pela Europa. Portanto, havia um habitáculo pequeno que eles reservaram,
que era com a minha peça. Uma pessoa entrava lá dentro e aquilo
tinha um sistema de luz controlado pelo som, onde uma pessoa ficava num sistema
imersivo e ouvia. A peça que eles queriam, era a peça do primeiro
CD, o This Is Music As It Was Expected. Mais uma vez disseram: "Muito
bom, CD muito não-sei-que-mais, ainda bem que o reeditaste, tem um som
não-sei-que-mais"; e eu disse "Pronto, mais uma coisa que eu
fiz há 15 anos, quando tenho coisas actuais!", mas as coisas actuais
não entram. Para um determinado grupo de pessoas mais fora do... - isto
é muito difícil estar a separar as pessoas em isto ou naquilo
- mas às vezes as pessoas gostam mais de determinadas coisas, e para
uma pessoa gostar de determinadas coisas talvez mais elaboradas, uma pessoa
tem que aprender, infelizmente! Agora acho que o público tem que aprender,
porque não consegue, de uma maneira fácil e intuitiva, ouvir como
se ouvia uma obra de Palestrina e depois uma obra de Wagner. A estrutura tonal
é muito diferente, mas havia coisas muito comuns em que as pessoas podiam
entrar sem ter de estar a aprender - agora quase que é pedido ao público
para aprender. Eu acho um bocado pesado, mas não vejo outra maneira de
poder fazer isso. Mas isto é só para dizer que nesta peça,
eu depois consegui falar com eles, e então foi só aproveitada
a voz do meu amigo compositor Rodney Waschka II, que diz um texto que eu fiz,
Do Princípio e do Fim, e consegui fazer uma ponte, a ligar entre
as duas. Uma coisa nova, com novos materiais e devo dizer que pelo que eu sei
- porque já foi a Barcelona e a Paris e outras cidades se seguirão
- que tem sido um sucesso bastante grande. As pessoas gostaram imenso e tem
funcionado bastante bem.. As coisas actuais, o disco "Músicas Fictícias",
que para mim já está ultrapassado, as coisas que eu faço
actualmente estão perfeitamente sincronizadas com o que eu quero fazer,
embora, mais uma vez, eu esteja agora a pensar que tenho que avançar
para outros casos, ou seja, já de certa maneira descobri uma forma de
fazer peças que até são aceites no exterior. Em festivais
até funcionam bastante bem, e agora podia continuar a fazer isto, mas
a minha vida é sempre muito ecléctica. Eu, a partir do instante
em que crio um hábito, depois tento quebrá-lo. Agora estou a tentar
quebrá-lo, o que está a ser um pouco difícil porque não
estou a ver ainda bem claramente para que lado hei-de avançar.
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Como surgem as ideias para a Composição?
Pois, se eu soubesse... Isso agora, é essa mesmo a minha questão.
Vamos fazer assim: quando em 1998 eu pude relançar-me novamente na
composição, foi precisamente por uma questão técnica.
Os computadores Macintosh tornaram-se suficientemente rápidos para
eu poder de certa maneira recriar o estúdio da Holanda em casa, tal
como eu o imaginava. E de facto foi isso que eu fiz, e as minhas primeiras
peças, que não existem, ninguém ainda as ouviu, desapareceram,
e têm o tal sabor dos anos 80. Depois fiz o que achei que devia fazer,
foi ouvir o que se fazia actualmente, em vários campos, e descobri
que estava um pouco mudado em termos de sonoridades e atitudes. As coisas
estão mais elásticas, mais frescas. Então, foi um certo
tempo de reaproveitar, porque neste campo da electroacústica a única
maneira que eu vejo de uma pessoa aprender é ouvindo, ou então
por exposição. Não há nenhuma maneira formal,
podem fazer-se descrições, com melhores ou piores metáforas,
mas é simplesmente por audição. Não há
outra maneira. É ouvir, dezenas e centenas e centenas de CD's até
começar a entender como se faz o encadeamento dos sons. Como é
que fazem a transformação de A para B, quais são as ligações
entre um som e outro, como é um som com uma imagem-metáfora
e outro som com outra imagem-metáfora passam de um lado para o outro...
Comecei aí a perceber, a aplicar novamente as técnicas, e essa
é a minha situação actual. Vejo agora que é um
processo que eu podia ter continuado, mas estando eu numa situação
precária - não estou ligado a nenhuma instituição,
infelizmente não tenho encomendas... Porque quando uma pessoa tem encomendas
regulares acaba por entrar num sistema para produzir material - eu posso arriscar,
porque não tenho nada a perder. Portanto, não vou ficar simplesmente
onde estou. Já tinha o meu sistema montado e poderia fazer agora a
minha carreira, mas não.
Há também um contributo fundamental de uma reflexão técnica
e estética que nos marca e que aponta caminhos. Há um conjunto
de textos que eu gostei bastante de ler, do compositor neo-zelandês
Denis Smalley, em que ele elabora um pouco as teorias do Pierre Schaeffer
e de outros, às quais ele dá o nome de espectromorfologia. Ou
seja: morfologia é a forma, e os espectros são os sons. Portanto,
ele achava que os sons têm uma forma dada pelo seu espectro, pela sua
composição. E essa forma, essa transformação de
forma, é uma das maneiras de dar progressão a uma estrutura
(neste caso da música electroacústica ou acusmática)
de maneira a poder fazer a progressão, de modo a fazer contrastes,
de ter pontos de paragem. Portanto, dar uma estrutura e, de facto, criar uma
forma. Esse foi um campo que vem já desde os finais dos anos 80 mas
que tem sido, não direi validado, que não é bem assim,
mas que tem sido elaborado por um conjunto de compositores. Começaram
pelo Jonty Harrison, que também era contemporâneo e colega de
Denis Smalley e, posteriormente, pelos alunos deles - principalmente os ingleses:
Peter Stollery, Natasha Barrett, Andrew Lewis, que agora já estão
todos bem estabelecidos. Todos eles criaram um conjunto de peças electroacústicas,
que eu acho que têm uma poética e uma força que eu ainda
não tinha ouvido desde que ouvi o primeiro disco do Bernard Parmegiani
em 1980. De certa maneira, esse tem sido o campo onde eu me tenho concentrado
para reaprender e ver como é que eu poderia fazer isso. Acho que isso
eu já consegui, quer no aspecto técnico, quer até no
aspecto estético, de como ligar os sons e de como os ordenar, acho
que mais ou menos consegui. Agora, por mim, acho que devia ultrapassar um
pouco esse aspecto.
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Sobre Canções
Cativas
Por exemplo, a minha obra Canções Cativas, que levou
esse nome precisamente porque me deu bastante trabalho a fazer a estrutura.
Não sei porquê, ou porque estava preocupado com outras coisas,
outros problemas, mas custou-me muito retirar uma estrutura tal como eu gostava
dos materiais que eu tinha. Daí o nome de Canções Cativas,
porque as canções estavam cativas, lá dentro dos materiais.
Deu-me bastante trabalho reordená-las, repô-las e refazê-las.
Essa foi uma composição que me custou bastante a reordenar porque
acabava por construir uns complexos sonoros, às vezes com a duração
de alguns segundos, às vezes 30 segundos e depois não conseguia
encadeá-los uns nos outros. Ainda pensei fazer uma montagem contrastante,
mas a estética surrealista já não é o que eu quero.
Não vou assumir novamente isso, portanto tive de facto que ouvir novamente
outras coisas, pensar mais, e depois olhar bem para os materiais. Descobri,
por exemplo, que determinados sons graves podiam fundir-se num drone
de um motor, que poderia dar origem a um pedal point de um agregado
de notas que filtrava outra coisa. Então, a partir daí, consegui
mais ou menos fazer a estrutura. Foi a primeira peça em que eu senti
todos os problemas estéticos ou todas as questões ou prescrições
propostas por Denis Smalley num artigo de 1986. Portanto essa é uma peça
que eu ressalvaria.
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O conceito de metáfora
sonora
A metáfora é uma figura de estilo. Não sei se foi definida
pela primeira vez por Aristóteles, ou alguém assim do género.
Como figura de estilo, é uma pessoa falar uma coisa utilizando termos
retirados a outra. É uma trasladação. Logo aqui, há
a ideia da progressão de A para B, esta é uma primeira coisa.
A segunda coisa, é que na música, tal como nós a concebemos
(com instrumentos tonais) há uma grande separação entre
os sons do dia-a-dia e os sons da música. Essa separação
foi feita muito claramente a partir dos séculos XVIII e XIX. Logo, quando
uma pessoa fala de música instrumental obrigatoriamente tem de falar
sempre em metáforas. Já se tentou escapar a isso, mas quando se
quer falar, acaba-se sempre por falar de metáforas. Fala-se das metáforas
de densidade, de massas, de, como eu disse, estrutura, clareza, progressão,
de movimento. Ora a ideia de movimento em música é uma metáfora.
A ideia de altura, de subida e descida de tons é outra metáfora.
Portanto, a música dita tradicional vive à conta das metáforas.
Na música electroacústica, o campo é mais curioso, porque
uma pessoa ao fazer uma composição, em vez de dizer que "soa
como os pássaros" pode pôr a gravação directa
dos pássaros. Pode jogar com um aspecto literal dos sons mas também,
pelas transformações, pode jogar com o aspecto metafórico
dos sons. Acho que enquanto que na música tradicional uma pessoa pode
jogar com o aspecto metafórico dos sons - mas ela própria como
música é sempre manipulada em termos de metáfora - na música
electroacústica uma pessoa pode jogar com o aspecto literal e também
com o aspecto metafórico, que vem da parte de trás. Isto dá
mais um campo de tensão, um campo de diferenciação que
uma pessoa pode usar criativamente.
Quando eu falei em termos de metáfora, e dei esses exemplos de estrutura,
forma, etc, isso são só as metáforas para descrever a música
em termos técnicos, eu devia ter dito que para descrever a música
quer em termos técnicos, quer em termos poéticos, utilizamos sempre
metáforas. Portanto, a linguagem dita técnica da música
é uma linguagem metafórica, embora já convencionalizada.
Depois, no topo disso, se uma pessoa quiser dizer qualquer coisa mais, tem de
facto que recorrer a umas metáforas, com um cariz muito mais poético.
Ou seja, a pessoa que está a descrever tem de puxar um pouco mais pelas
ideias e pelo que vai dizer, tem de utilizar outras palavras em vez de utilizar
um vocabulário que já está realmente estabelecido. Mas,
de facto, o vocabulário técnico é um vocabulário
metafórico e o outro ficou um vocabulário mais poético.
No campo da electroacústica, a parte técnica não tem nada
de metáfora, a parte técnica é uma descrição
mesmo técnica. Uma pessoa diz: "fiz isto, liguei estes fios, utilizei
este programa, fiz esta história". Isso é uma coisa, agora
a transformação destas estruturas... Estas estruturas fazem som
e estes sons transformam-se em qualquer outra coisa: chamemos-lhe música,
decidi chamar-lhe música. E é esta transformação,
esta passagem, em que há a parte poética, e aí, como dizia,
as metáforas... Há sons que uma pessoa retira e que aparecem com
o aspecto literal, como os sons dos pássaros. Em vez de uma pessoa usar,
por exemplo, o som da flauta para fazer trinados e imitar um pássaro,
põe o som dos pássaros. Simplesmente, o som dos pássaros
gravados numa sala de concertos está a recontextualizar completamente
a sala de concertos. E cria-se ali um espaço que vem do exterior que
não existe, logo a metáfora aí ficou duplamente poética.
Ou seja, a realidade, o literal da realidade, transforma-se em poética
por meio da acção do compositor e por meio da música. Isto
para mim, é a música sempre a funcionar.
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Untitled Document
Aplicações da
metáfora musical nas obras de António Ferreira
Acho que todas as minhas obras, exceptuando a última que já não
tem, mas quer as Canções Cativas, quer A Horizontal
do Vento, de 2002 e 2001, respectivamente, têm sempre uma parte,
uma zona no interior delas, que é uma zona mais sonofotográfica,
ou fonográfica. É que agora há um conjunto de senhores
que são muito activos na internet que se dedicam à fonografia.
Quando ouvi essa palavra, pensei que eram discos de vinil de 78 rpm, mas eles
dizem que são fotografias com sons. Portanto, vão com um gravador,
fazem gravações e apresentam-nas tal como são. Eles dizem
que é sem edits, mas não é bem assim, porque o
momento em que uma pessoa vai gravar é automaticamente um ponto de vista.
Há sempre o ponto de vista da pessoa, por menor que seja. Mas é
certo também que não fazem transformações, que já
não querem usar sistemas nem grandes maquinarias...
Eu, na maioria dessas composições, utilizo uma parte sono-fotográfica,
para contrastar com estruturas mais abstractas e mais elaboradas, com mais piruetas
técnicas, que vêm antes e depois. Essa estrutura, de facto, surge
aí, e, às vezes, surge com sons que vêm de trás,
transformados, mas também com sons não transformados directamente.
Numa peça que era para ser apresentada em Évora em 2002, mas que
não foi, chamada Les Femmes Harmoniques, que tinha 13 minutos,
que continha uma longa estrutura. Aparecia um gesto feito com um piano sintético,
mas perfeitamente tonal, que se fundia com uma estrutura que demorava cinco
ou seis minutos, quase no limite da audibilidade, mas onde havia dezenas de
pequenos sons, naturais ou não. Isto, imaginava eu, era para ser apresentado
ao vivo, num espaço grande, no templo de Diana em Évora, com um
grande exterior, numa noite de Verão, para recontextualizar todo aquele
espaço. Havia sons de água, havia sons de animais, de insectos
que eu imaginaria que viviam lá, mas depois haveria sons de carros que
passavam lentamente de um lado para outro e sons de humanos, de pessoas a falar,
mas tudo muito baixinho. Isto era a minha ideia de fazer ver a realidade, a
partir de uma aparência, que é de facto a questão da metáfora.
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Untitled Document
Influências da actividade
profissional na composição musical
Especificamente cá em Portugal, no aspecto em que durante esse hiato
trabalhei de facto com o controlo do ruído e na poluição
sonora, durante seis ou sete anos. É uma questão profilática
e uma questão puramente de pôr os níveis, tal como são
ditos por máquinas como são os sonómetros, dentro de valores
legais. Não há mais nenhuma reflexão para além disto,
porque aliás nem praticamente pode ser isto, mas nos Congressos Internacionais
a que eu depois tive acesso, e que fui vendo, tanto quanto sei actualmente há
uma preocupação de repensar um pouco até essa atitude um
pouco legalista e um bocado reduzida e de entrar na ideia da ecologia sonora.
Ou seja, achar que nem todos os sons serão maus, nem que os ruídos,
mesmo os produzidos artificialmente, serão obrigatoriamente maus, e que
se deve tentar talvez equilibrar um conjunto de uma paisagem. Eu acho um bocado
difícil, mas isso é uma lufada de ar fresco, para além
da ideia de simplesmente ver níveis e controlá-los. Mas, em termos
legais, quando há uma queixa e se entra nestes processos uma pessoa não
pode fazer grandes elucubrações.
Nós temos pálpebras e podemos seleccionar as imagens, e os ouvidos
ouvem a 360º sem pálpebras, continuamente. Se estão a ouvir continuamente,
a nossa atenção acaba por se desligar. É natural que só
notemos um ruído se ele ficar muito forte, ou se surgir atrás
de nós como se fosse um perigo. Enquanto, de facto, nas imagens, como
temos pálpebras e uma visão bi-ocular, bifocal, focada para a
frente como todos os predadores, temos tendência a focar. Talvez por isso
notemos mais a profusão de imagens, mas eu acho que para além
de ser a civilização da imagem, isto é também muito
uma civilização do som. Acho que a pessoa perde metade da história
não ligando à parte sonora. É como no cinema, em que eu
vejo imensas entrevistas de directores e depois vejo os compositores ou os desenhadores
de som sempre a dizerem que a parte do som no cinema é tratada como um
parente pobre. Mesmo nas grandes produções, têm cerca de
uma semana para fazer as coisas e tudo é feito para a questão
da imagem, do enquadramento, que tem muita importância. Mas é a
parte sonora que dá todo o contexto ao filme, para uma pessoa poder ver
as coisas que não está a ver, o contexto todo à volta,
o ambiente todo. Sem isso, grande parte das produções caíam
por terra, ficava apenas uma historiazinha, tudo muito bem...
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Untitled Document
Como encara, actualmente, a
sua composição?
As peças tal como estão agora, dão para fazer uma síntese
bem equilibrada e com vida e expressão entre o meu conhecimento técnico
e as minhas capacidades como compositor tout court, de ordenação
de estruturas e de escolhas de sons, dinâmicas, processos e desenvolvimento.
Durante algum tempo, a minha capacidade técnica era, regra geral, maior
do que a minha capacidade compositora. Demorei algum tempo a pôr essa
capacidade ao nível da habilidade técnica. Acho que agora estão
equilibradas. O que eu ando a pensar é que talvez tenha que puxar um
pouco mais a minha capacidade compositora e deixar a minha capacidade técnica
tal como está, porque também não pode ir muito mais além.
Uma pessoa já sabe programar, as máquinas vão sendo as
mesmas. Agora é preciso, como compositor, ter mais ideias para aplicar
e até repescar coisas que eu possa fazer.
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