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ENTREVISTA A ANTÓNIO
PINHO VARGAS (Versão Integral)
Como vê a sua primeira experiência profissional, como músico,
tão diferente da da música erudita, agora, em 2003?
Se "profissional" quer dizer trabalho pago, comecei por aí
em 1969 a tocar em grupos de música pop - não era rock, era pop
- e foi a primeira vez que fui pago para tocar. Mas, de facto, só a partir
de 1975 ou de 1976 é que passei a encarar o trabalho no jazz - já
nessa altura não era música pop - de uma forma séria. Acontece
que eu estava a estudar música clássica numa escola, e havia uma
espécie de curiosidade dirigida nos dois sentidos. Eu aprendi a viver
as divisões nos dois campos. Aquilo que era num sítio tido como
interessante e rico, noutro sítio, pelo contrário, era visto como
uma fragilidade. Ou seja, foram cerca de dez anos em que eu passava dos meus
colegas do conservatório, os meus colegas de piano ou de composição,
para os músicos de jazz com quem tocava. E eu apercebi-me que não
só havia visões de música diferentes mas visões
do mundo associadas a essa visão da música, e isso enriqueceu
a minha perspectiva sobre as fragilidades de cada um dos campos e também
as riquezas.
Devo dizer que, agora, numa perspectiva individual, acho que o facto de ter
subido aos palcos muitas vezes para tocar música improvisada de acordo
com regras que entretanto eu ia conhecendo - e elas próprias também
iam sendo diferentes ao longo dos anos - me permitiu ter uma visao da música
como coisa que se faz, que é feita naquele momento em que se está
no palco, e essa é uma perspectiva que às vezes não existe
nas pessoas que têm apenas uma relação com a partitura como
sendo um objecto que é necessário realizar. Passei a encarar o
acto de tocar como sendo ele próprio criativo em si. E, por isso, o que
existe hoje na minha vida como resultado directo desses longos anos de experiência
disso é uma espécie de pouca confiança na partitura.
A partitura é um suporte fundamental. É necessário estar
bem escrita e não ter ambiguidades, mas acho que vivemos numa fase em
que é necessário voltar a falar com os músicos para recuperar
essa dimensão oral, esse contacto oral que às vezes é muito
rico. Eu tenho essa experiência com partituras escritas. A pessoa começa
a tocar, e vejo também que cada intérprete tem uma história,
a sua história como estudante da música. Olha para a partitura,
olha por exemplo para um sinal de "com pedal", "legato",
e aquilo, para ele, conforme estudou mais ou menos Debussy - por exemplo - quer
dizer mais isto ou menos aquilo. E, mesmo nesses casos, é necessário
dizer: "Não, este sinal aqui de legato quer dizer isto, não
é exactamente o que estás a pensar".
Portanto, eu acho que o encontro entre um compositor e músicos é
uma coisa que é mediada por uma partitura, mas essa partitura, e a sua
leitura, pode ser influenciada pelas histórias de vida de cada um. E
o facto de eu ter tocado e ter estado em contacto com universos muito diferentes
durante muitos anos, permite-me, talvez, tornar menos dramático o momento
em que a partitura tem de ser explicada ou, para assim dizer, traduzida em linguagem
gestual - porque às vezes um gesto é suficiente, a pessoa percebe
imediatamente. E pôr isto numa partitura nem sempre é óbvio...
Estava a falar da experiência das fraquezas e dos pontos fortes
de duas práticas musicais muito diferentes... Imagino que a sua formação,
em termos musicais, foi bastante tradicional. Essa experiência do Conservatório,
do ensino tradicional, ficou no António Pinho Vargas de hoje?
Ficou, ficou. Eu posso falar de duas coisas diferentes, porque fiz o curso superior
de piano do Conservatório e há um lado de experiência que
tinha a ver com a maneira de tocar... Às vezes pediam-me coisas e eu
dizia "Mas porque é que me dizem que tem que ser assim?". Percebi
que também aí há história, no sentido de que, se
o professor de piano estiver ligado à corrente que vem do Fischer, diz
umas coisas, e se estiver ligado à corrente que vem do Vianna da Motta
e do Liszt diz outras. É interessante ver que também a maneira
de tocar piano tem em si uma história, e como eu também tenho
o curso de história, às vezes pensava: "É engraçado,
estes estão numa corrente e, portanto, dizem que se toca assim, que só
se pode tocar Beethoven desta maneira, ou Debussy não se toca assim,
etc". Foi muito interessante poder manter uma espécie de distância,
como se eu fosse simultaneamente actor a estudar e, por outro lado, observador
da historicidade do saber que me estava a ser transmitido, a princípio
de uma forma muito intuitiva.
Enquanto compositor, é evidente que tenho que colocar a coisa na sua
cronologia. Comecei a estudar música seriamente já no princípio
da década de 1970, com mais de vinte anos. Portanto, o que apanhava era
naturalmente o ensino na altura dominante em Portugal, e que era em si próprio
contraditório. Os programas dos conservatórios eram os velhos
programas tradicionais do Conservatório de Paris de vinte anos antes,
com contraponto, harmonia, fuga, sonata e essas coisas. Ao mesmo tempo, os professores
tinham aderido, todos em massa, ao modernismo serial e pós-serial. Procuravam
adequar e subverter aquela estrutura tradicional fazendo com que, por assim
dizer, penetrasse nesta estrutura de ensino tradicional, já um pouco
obsoleta, o ensino da música moderna. E aí começaram alguns
problemas, porque, por um lado, eu queria saber muito, de facto... Lembro-me
perfeitamente de uma viagem a Paris em 1974, em que vim carregado com discos
das peças para piano do Stockhausen, da obra completa do Schoenberg,
de uma das sonatas do Boulez, das sonatas do Bartók, do Stravinsky e
do Webern, naturalmente, as Variações, Op.27. Nós
- estou a falar de uma geração - queríamos saber como aquela
música era feita. Por outro lado, eu, ao mesmo tempo, tinha uma prática
de improvisação, ligada aos pianistas do free jazz - Cecil Taylor,
Chick Corea, etc - e reconheci que eles estudaram e tocaram seguramente Webern
ou ouviram Stockhausen. Era uma espécie de pegar naquilo a que chamávamos
na altura a música de vanguarda, e, pela via auditiva, retirar alguns
vocábulos, alguns gestos pianísticos, e usar aquilo na improvisação.
Portanto, por um lado, nesse aspecto avancei muito depressa, mas, no conhecimento
das regras internas da composição, estava perante um ensino que
era lento e pesado na transmissão desse saber. Todo este período
foi um período de assimilação de coisas muito diferentes,
e ao mesmo tempo sempre plural. A mão esquerda aprendia coisas mais depressa
do que a mão direita e ficava um pouco perplexa. Sobretudo, e acho que
devo dizer isto com total clareza, esse ensino do modernismo na década
de 1970 - que internacionalmente era um período já de fase descendente
dos dogmas - surge um pouco deslocado. Repare que a Sinfonia de Berio,
que é uma sinfonia com citações de música e sobreposições
de níveis muito diversos, é de 1968. Pouco tempo depois, as pessoas
admiravam essa peça, mas não conseguiam transmitir uma visão
estética e técnica que relacionasse aquilo correctamente com a
noção de estricto que estava associado à maneira de trabalhar
com uma série dodecafónica, à maneira de Webern. Os professores
não conseguiam transmitir as coisas e diziam: "Aqui temos uma série.
Webern faz assim. Componha uma peça." A maior parte das pessoas
ficava numa perplexidade e numa impotência. Eu, aliás, disse no
meu livro que esta situação começou a mudar com a vinda
para Portugal do professor Christopher Bochmann, que teve grandes consequências
em Lisboa, e com o início dos seminários do Emmanuel Nunes, dos
quais tomei conhecimento a partir de 1982. Antes, havia uma figura individual
muito rica, que era o Jorge Peixinho. Compunha peças muito boas, mas
tinha um carácter individual muito indisciplinado, ao qual eu achava
imensa piada - era um homem, por assim dizer, louco e genial, o que corresponde
muito a esse paradigma do génio distraído. Enquanto professor,
tive muito pouco contacto com ele, e portanto não sei avaliar o trabalho
dele.
A ida à Holanda serviu, até certo ponto, para encontrar
essa união entre a receita e o desenvolvimento da receita?
Sim, serviu para várias coisas. Por um lado, para perceber que o ensino
que me estava a ser transmitido era um ensino muito marcado do ponto de vista
ideológico, ou seja, fundamentalmente representava, sem dúvida,
a visão mais dogmática do segundo modernismo - aquele que começa
nas décadas de 1950 e 1960. Quando chego à Holanda e apresento
ao meu professor um projecto de peça cheio de números e de tabelas
de acordes, ele olha para aquilo e diz: "Mas isto não é uma
ideia duma peça. Isto é material técnico e eu não
estou interessado nisso para já. Eu quero que me fales da ideia da peça".
Percebi então que em Portugal se procurava transmitir muitos conhecimentos
associados a manipulações que eu agora sei que eram derivadas
do tipo de manipulações que Boulez e Stockhausen, cada um à
sua maneira, tinham lançado. Portanto, era uma linguagem musical muito
particular, e aquilo era transmitido como sendo "é assim que se
compõe hoje". Foi aí que percebi que as minhas perplexidades
anteriores - muitas delas derivadas do facto de eu ter a prática de músico
de jazz e, portanto, ter um contacto físico e, naturalmente, intelectual,
com outra maneira de pensar a música - eram partilhadas por muitas outras
razões por muita gente pela Europa fora. Não só o meu professor
me coloca essa questão - que à partida destabiliza o edifício
todo com a sua dicotomia mais ou menos esquizofrénica - como pouco depois
eu percebo que muito colegas na Holanda e outros jovens compositores - uns da
minha idade, outros mais novos - na Holanda, Alemanha, em Inglaterra, e mesmo
alguns em França, por causa da poderosa influência de Boulez, questionavam,
cada um deles à sua maneira mas de uma forma crítica, o ensino
anteriormente recebido. Eu gosto de contar esta história porque, do ponto
de vista simbólico, para mim foi importante.
Quando oiço o Wolfgang Rihm dizer "Quando começo uma peça,
não sei quanto tempo vai demorar, em quantas partes se vai dividir, se
a meio vai aparecer uma música que à partida não estava
prevista, etc..." Ele, por assim dizer, proclama como ponto de partida
uma espontaneidade associada ao acto criativo, o que estava nos antípodas
do ensino que eu tinha recebido anteriormente - em que, pelo contrário,
se dizia que antes de começar a peça já estava tudo fortemente
estruturado. Portanto, o papel da Holanda foi fundamentalmente o papel de um
ensino e de uma vivência... Isto porque quando fui para lá, já
tinha 36 anos - não tinha tempo a perder e tinha consciência disso.
Ou seja, eu ia a tudo o que podia. Fazia viagens, ia a Bruxelas, ia à
Alemanha, e na Holanda ia a todos os sítios. Passava a vida entre Haia,
Roterdão e Amesterdão - lá é muito fácil
viajar, são três quartos de hora de Amesterdão para Haia,
um quarto de hora para Roterdão. Portanto, passava a vida a ir de um
lado para outro permanentemente e a ouvir o máximo número de concertos
que podia ouvir. Lembro-me de ter tomado, por exemplo, conhecimento de peças
de Messiaen em concerto... Lembro-me da extraordinária impressão
que me fez quando ouvi pela primeira vez ao vivo Et Exspecto Resurrectionem
Mortuorum, uma peça de que nunca tinha ouvido falar! Porquê?
Porque de Messiaen, falava-se só do Modo de Valores e Intensidades.
Tive a oportunidade, pouco depois, de ouvir o próprio Messiaen a dizer:
"Porque é que só falam dessa minha peça? Há
outras". Percebi que, evidentemente, a sobrevalorização dessa
obra de Messiaen se dava na perspectiva da obra que deu origem a Structures,
para dois pianos, de Boulez, e era uma parte importante da legitimação
de uma determinada visão da música.
O que é que o seu professor queria dizer com essa observação?
Qual foi o resultado desse desafio?
O resultado foi relativamente catastrófico... Estive seis meses sem conseguir
fazer nada... Eu guardo os apontamentos de quase todos os seminários
e conferências - tenho um papel ao lado onde de vez em quando escrevo
coisas. Descobri, depois, num dos papéis de um dos seminários
do Emmanuel Nunes, escondido discretamente no meio de folhas com imensas coisas
técnicas - como os exercícios dos pares rítmicos e outras
coisas que ele na altura considerava importantes, e eram importantes - que havia
umas linhas que diziam que é importante ter uma ideia estética
do que se vai fazer. Pode não saber-se ainda que notas é que se
vai usar, mas é importante ter uma ideia estética. Ou seja, este
problema estava lá, já colocado pelo Emmanuel. Mas, no fundo,
digamos que o ensino era predominantemente técnico. Não digo que
a questão estivesse completamente ausente, estava apenas em segundo plano.
O professor holandês, Klaas de Vries, colocou isso em primeiro plano,
e de uma forma radical - disse que nem queria ver os papéis que eu tinha...
Não, primeiro eu ia dizer que tipo de peça iria compôr,
que música, que som queria ouvir. Portanto, era claramente colocada a
ideia estética da peça. E isto poderia ser, por exemplo, colocar
uma coisa que eu, mais tarde, vinha a perceber que era útil - que é
ter uma ideia metafórica do que se vai fazer. Ninguém começa
a escrever um romance sem ter uma ideia do que vai fazer, da história
que vai contar. E, duma certa maneira, tratava-se de saber isso mesmo, de poder
dizer "esta peça é sobre isto" ou "é sobre
aquilo". Demorei imenso tempo a descobrir isso.
Se calhar, essa exigência faz com que o compositor se disponha
muito mais. O compositor não se esconde atrás do material, que
é uma coisa histórica muito importante - antes pelo contrario,
está a pedir a exposição do próprio...
Sim, é uma outra coisa, uma coisa em princípio muito mais profunda
e essencial à partida. E eu agora, enquanto professor, muitas vezes peço
aos alunos que me falem da ideia. Porque eles chegam e dizem "Professor,
agora quero fazer um quarteto de cordas." Mas isto não é
a ideia de uma peça, é uma ideia de um grupo de instrumentos.
Percebo que essa questão é muito difícil para alunos, e,
portanto, vou gerindo essas dificuldades da forma que me parece, intuitivamente,
mais correcta. Em alguns casos, a resposta é logo muito positiva. Noutros,
pelo contrário, só dois ou três anos depois é que
alguém consegue perceber que trabalhar sobre uma série de Fibonacci
e uma rede de intervalos a partir daí, pode servir para esta ideia mas
já não serve para outra ideia - isto porque a estética
e a técnica são uma e a mesma coisa. Ou seja, não há
nenhuma técnica separada de uma ideia estética, mas às
vezes há que tentar separar colagens artificais entre uma coisa e outra.
Certas ideias sobre a técnica fazem automaticamente com que seja desnecessário
prescindir de qualquer reflexão de carácter estético. Isto
é um bocado complicado... No meu caso, todo esse período foi um
período de fortíssima interrogação, em que frequentemente
se recolocava a pergunta "Mas afinal, o que é a música?"
E o que é um compositor, não é?
Sim, e se calhar, quem sou eu?... No meu caso, o facto de eu não ter
resposta para as outras perguntas queria dizer que eu não sabia responder
à pergunta fundamental - "Quem sou eu? O que é que quero
fazer?". Portanto, sinto que as minhas peças - e gosto até
bastante de algumas das que fiz nesse período - são peças
de combate, por assim dizer.
Poderia dar um exemplo de uma?
"Poetica dell'Estinzione, por exemplo, é uma peça
em que escolho o material pré-existente, que tento trabalhar à
procura de um determinado grau de predominância de terceiras maiores.
Tudo isto numa espécie de linguagem esbatida, difusa... Chama-se assim
porque estou a trabalhar com duas consciências - estou a tentar dominar
o material com a consciência de que ele já acabou. Neste caso,
percebi que os títulos e as metáforas que eu próprio associo
aos títulos eram muito importantes para me orientar nesse combate. Por
um lado, eu estava a usar técnicas que precisava de dominar... Aqui havia
uma questão interessante - eu precisava de tentar dominar coisas, tecnicamente,
enquanto que, por um lado, suspeitava da sua ineficácia... Ou seja, eu
precisava de tentar dominá-las enquanto duvidava da necessidade de tentar
dominar. Sei que pareço um daqueles filósofos herméticos
de quem ninguém percebe nada, mas a coisa não é muito fácil
de explicar. Eu tinha dúvidas sobre muitas coisas, e ao mesmo tempo achava
que, tecnicamente, estava relativamente atrasado. Achava que a minha preparação
musical estava em planos diversos - nalgumas coisas muito adiantada, noutras
menos adiantada, noutras ainda até quase atrasada - e tratava-se de pôr
tudo no mesmo nível. Ora, não era fácil para mim saber
onde traçar a fronteira entre a posição estética
e o domínio técnico.
Falou de uma fase de combate - refere-se ao combate contra esses materiais
que supostamente vinham impostos, com um discurso muito prestigioso, e que então
eram materiais que não serviam para exprimir o que queria exprimir?
De alguma maneira, sim. Eu disse há bocado que gosto das peças
dessa fase de combate - a Poetica dell'Estinzione, da qual já
falei, Mirrors, para piano... De uma certa maneira, o facto de eu próprio
ser pianista deu à peça um carácter físico que não
estava em muitas das outras. E, sem eu dar conta, na primeira peça em
que disse que iria escrever para piano, de repente apareceu ali um lado que
é o lado da minha relação com o instrumento. É evidente
que eu tenho os meus apontamentos sobre o que quero fazer com as notas, e depois
o gesto instrumental é inventado por mim no próprio acto de tocar.
Ou seja, parece que foi à maneira de Stravinsky - como é sabido,
ele compunha ao piano, ao contrário de Schoenberg, que compunha à
secretária. Naquele momento, o acto de poder regressar ao piano permitiu
que uma parte do gesto que me era próprio enquanto músico - quer
como músico de jazz, quer como estudante de música clássica
e contemporânea - aparecesse aí aliado à autenticidade que
eu estava a tentar encontrar.
No seu livro, identifica em meados da década de 1990 um ponto
de viragem. Queria que reflectisse um pouco sobre isso e, eventualmente, que
indicasse uma peça que ilustre essa viragem.
Desse ponto de vista, a peça mais importante para mim, e que marca a
viragem na minha maneira de trabalhar, é o quarteto de cordas Monodia
- Quasi un Requiem. Estas coisas não se decidem por decreto, acontecem.
Quis escrever um quarteto de cordas, e quis que fosse sobre a morte. É
quase como se tivesse dito que ia fazer um requiem, e, portanto, precisava de
uma orquestra, de um coro, do texto litúrgico em latim... Não,
mas é quase um requiem. Neste caso, a tradição
dá-nos alguns elementos - há coisas, há ideias que já
estão formadas tradicionalmente. Um requiem, toda a gente sabe
o que é. Há o de Mozart, e há milhares de outros: há
o de Brahms, o de Verdi, etc. Mas eu não queria fazer um requiem
desses. Portanto, estava com um quarteto de cordas e queria fazer uma peça
sobre a morte. Antes de começar a compor, escrevi imensas coisas sobre
o som e a sua extinção, uma espécie de expressividade máxima
com o mínimo de elementos possível. Fui fazendo uma espécie
de romance por palavras sobre o que queria fazer na peça - isto do ponto
de vista da ideia. Portanto, antes de começar, escrevi várias
páginas de coisas para minha própria orientação.
Foi em termos do próprio material musical que se deu a tal junção.
Eu comecei e decidi logo algumas coisas. Ia escrever uma melodia muito simples,
quase como se escrevesse a peça a uma voz, mas depois percebi que não
era a uma voz e sim a duas. A partir deste pequeno núcleo inicial - que
era uma melodia muito lenta de três ou quatro notas, com um grande espaço
entre cada nota - o acto de o tentar continuar foi um momento de imensa felicidade
paradoxal. Isto porque estava a escrever uma peça sobre a morte e, ao
mesmo tempo, a fazer uma obra que, a posteriori, era um nascimento
meu, e em que era capaz de trabalhar espontaneamente a partir de um material
muito simples. A peça foi-se compondo a si própria, e eu acho
que, no acto de compor, me ia surgindo o passo seguinte. Neste caso, não
precisei, de facto, de grande trabalho pré-composicional. Na verdade,
não houve nenhum trabalho pré-composicional, nem em termos de
ritmos, nem de notas ou das suas associações. Em cada momento,
e uma vez escrita uma página, uma pequena análise do que lá
estava permitia-me escrever a segunda e a terceira, e depois uma análise
do que estava para trás instalava uma narrativa que para mim foi relativamente
fácil de continuar. Eu percebi que a minha maneira de trabalhar era de
facto espontânea, e pela primeira vez consegui ser espontâneo nessa
dupla vertente, que era manter-me agarrado à ideia da peça e escrever
música que se reproduzisse a si própria. Era uma espécie
de continuação nada constrangida, com um controlo relativamente
distante sobre a forma da peça...
É uma peça que se reproduz a si própria mas que, ao mesmo
tempo, não recupera aquela ideia de desenvolvimento orgânico. Há
um movimento, um impulso inicial, mas não tem nada a ver com esse tipo
de descrições narrativas, não é?
Sim. Eu tenho as maiores dúvidas sobre essa ideologia, que posso chamar
de ideologia da organicidade. Acho que há peças maravilhosas que
foram feitas, e que servem de modelo, como a Arte da Fuga ou a Oferenda
Musical, mas prefiro a Paixão de São Mateus - que
já não é uma peça da qual seja possível fazer
uma teoria organicista, porque não tem um núcleo único
como as outras. No entanto, é uma peça tão genial como
as outras duas, diria.
Portanto, aqui, a narrativa é minha, privada. Não há nenhum
desenvolvimento no sentido tradicional do termo do material, e, aliás,
a peça é bastante estática. Digamos que a sua continuação
é a reaparição do mesmo - mas já não é
o mesmo, porque apareceu outra coisa - e é nesse sentido do ir indo mas
não desenvolver da maneira que ainda é tradicional, por exemplo,
num Schoenberg. Foi uma peça muito importante.
A resposta das pessoas é importante. Em relação
a esta peça, tem tido respostas ou ecos?
A peça foi estreada por um grupo alemão, o Musikfabrik, no Teatro
Rivoli. Eles estavam a fazer esse festival, as Jornadas da Arte Contemporânea,
e eu fui assistir ao ensaio. Os músicos tinham estudado muito bem a peça,
e isso pôs-me logo de bem com ela - praticamente, tive de dizer só
duas ou três coisas muito pequenas. No concerto, aconteceu uma coisa extraordinária.
O programa estava mal feito e tinha chegado em cima da hora - o que fez com
que metade das pessoas da sala não soubesse qual era a peça que
se estava a tocar, porque no programa que circulava estava escrito o nome dum
compositor japonês. Algumas pessoas minhas amigas, que estavam na sala,
viram no programa a estreia de um japonês, e acharam estranho. Uma pessoa
que conhecia muito bem o meu trabalho, enquanto músico de jazz, disse-me
depois que mal a peça começou sabia que aquilo era meu. Outras
pessoas não sabiam, não conheciam tão bem a minha música.
Mas, às vezes, há coisas minúsculas como esta, ou seja,
alguém descobrir imediatamente a minha assinatura numa música
que à partida não tinha nenhuma razão para reconhecer como
tal... E, a partir daí, a peça foi tocada por vários quartetos
de cordas, e foi até gravada. O quarteto de cordas de Viena, o Artis,
quando fez a peça, estudou-a em Viena em 1998 - já, portanto,
cinco anos depois da estreia. Eu vou ouvi-los tocar no concerto às sete
horas da noite, e só tenho de dizer que está absolutamente bem
- não tenho nada mais a dizer. O primeiro violino diz-me "It´s
a fantastic piece". Depois, numa conversa com o segundo violino sobre a
atitude que eles tinham, oiço "Nós tínhamos feito
muita música do século XX - we tried to play it like normal music!".
Ou seja, eles tocam Beethoven, Schubert, etc - é um grupo mesmo vienense
- e dizem "nós tocamos muita música clássica, desse
período, e tocamos também música vienense do início
do século - Schoenberg, Berg, naturalmente, Webern". Mas de repente
saltam para as décadas de 1980 e 1990 e dizem que, seja qual for a peça
que lhes apareça, "tentam tocá-la como música normal".
Portanto, não são especialistas na música contemporânea,
que é um conceito um bocado perigoso. Digamos que, tecnicamente, um especialista
na música contemporânea é uma pessoa que, às vezes,
já não sabe fazer um crescendo ou um legato, porque se especializou
em gestos excessivos, que estão adequadamente feitos noutro tipo de música.
De repente, vêm aqueles músicos ligados à tradição
vienense, tocam a minha peça - que não conheciam de lado nenhum
- e dizem-me "it´s a great piece". Eu fico muito contente, evidentemente,
e isto tem acontecido várias vezes.
Se calhar poderia falar das obras de grande formato, que são
importantes para um compositor... as óperas, por exemplo.
Bem, pouco depois de Monodia, que foi composta em 1993 e estreada em
1994, sei que vou ter uma ópera para fazer, que vai ser o Édipo,
e tenho uma encomenda que eu próprio proponho que seja um ciclo de canções
para canto e piano, as canções de António Ramos Rosa. Eu
próprio escolhi a poesia do livro A Intacta Ferida, e foi o
meu primeiro contacto com texto, porque sabia que a seguir ia ter de trabalhar
numa ópera - com texto, naturalmente, que seria o libreto. Portanto,
decidi fazer essa peça para me confrontar com um texto pré-existente,
pois ia ter o grande desafio das operas a seguir. E, por outro lado, como era
canto e piano, podia de alguma maneira estar aberto um caminho para regressar
à tal gestualidade minha, que me é própria. Logo há
a seguir a Monodia, acho que essa peça - o ciclo de canções
- é também muito importante. Acaba por demorar vinte e cinco minutos
- são nove canções, portanto cada uma terá à
volta de três minutos.
A peça que para mim é fundamental é Os Dias Levantados.
Tem um libreto excepcional do ponto de vista literário, feito pelo Manuel
Gusmão. É um libreto que, por outro lado, põe alguns problemas
em termos operáticos, porque, por ser literariamente excepcional, se
calhar não é tão manuseável do ponto de vista operático
naquela perspectiva do século XIX - da história, da grande morte
em cena, etc. E, ao mesmo tempo, era um libreto que levou o encenador alemão
Lukas Hemleb a fazer o seguinte comentário: "Bom, vais ter de compor
o Parsifal!". Era de tal maneira grande! E então, eu tinha relativamente
pouco tempo para compor a peça, e, de facto, foi durante dois anos um
trabalho de manhã, tarde e noite sem parar, porque havia o prazo que
era restrito - tinha de ser naquele dia, o 25 de Abril de 1998 - e a peça
tinha que estar pronta. É uma situação que muitos compositores
conhecem no quotidano, mas eu nunca tinha tido uma situação tão
extrema de necessidade de trabalhar com tantas dificuldades ao mesmo tempo.
O facto de estar o texto à frente... é diverso, é plural,
e tem vários registos literários. Por exemplo, num dado momento,
para representar a alegria do povo depois do 25 Abril, é o texto de Fernão
Lopes, do século XIV. Noutros momentos, há bocadinhos de textos
de Sá de Miranda. Pouco depois, há outros registos de linguagem
chã, quotidiana, tipo "Tens aí o teu relógio? Empresta-me,
porque eu perdi o meu". Surgem até mesmo partes de metáforas
do ponto de vista literário extrememente sofisticadas - ou seja, o registo
absolutamente oposto. Há simbologia do género "a boneca veneziana
com o vestido turco jaz desarticulada" É uma coisa que nem mesmo
lida as pessoas percebem exactamente o que quer dizer. Portanto, estava com
um libreto que era um desafio enorme, conhecia bem a experiência vivida
que era necessário transpor, e, agora, cinco anos depois da estreia,
estou a trabalhar neste momento na mistura do disco - portanto, tenho estado
muito em contacto com aquela peça. Na altura achava "Ah, com esta
peça ninguem vai saber nada sobre o que foi o 25 de Abril"... Isso
também porque os jornalistas às vezes me vinham perguntar "Mas
não vai aparecer o cantor de Abril, que é tão importante?",
e eu dizia "Não, não, não vai lá estar o cantor
de Abril". Isto é importante, porque estávamos numa perspectiva
realista. Por outro lado, as pessoas das artes e da música de vanguarda
iam achar que alguma da minha música naquela peça era completamente
impura, porque parecia música popular. Digamos que é a mesma questão
vista de duas perspectivas completamente opostas.
O que tem piada é que eu agora, cinco anos depois, acho que aquela história
conta o 25 de Abril, se calhar com mais profundidade do que tudo o que foi feito
até agora desse ponto de vista. Quer dizer, há vários romances
do António Lobo Antunes que nos aproximam muito daquilo, mas acho que
é curioso como o tempo exerce o seu poder, e, neste caso, parece-me que
o tempo deu àquela peça uma relação com os acontecimentos
que eu não pretendi contar. Não era essa a ideia, era mais o captar
forças essenciais daquele momento. Esta é a minha opinião
- pode ser que, daqui a dois anos, eu tenha outra.
O facto do texto ser ele próprio já diverso e plural fez com que
a minha peça fosse mais ecléctica. E também a pressão
do tempo... Eu não podia recusar nada, todas as ideias que me vinham
à cabeça eram boas. E portanto aceitei tudo excepto duas ou três
coisas, de que depois disse "não, isto não pode ser".
Em relação às partes que não me satisfizeram na
estreia, fiz uma revisão e mudei duas secções. Portanto,
eu estou neste momento fundamentalmente satisfeito, confesso. E posso dizer
que percebi, com a minha experiência individual, aquela questão
que se contava nas nossas aulas de História da Música - que no
período da perda da tonalidade e antes de se ter inventado o dodecafonismo,
Schoenberg utilizava o texto para lhe organizar a forma. Eu percebi isso no
meu trabalho com música sobre um texto pré-existente - ou seja,
quer nas canções, quer nas óperas, o texto organiza-me
a forma, mas não me organiza a música. A música sou eu
que a tenho de fazer. Mas o facto de ter de dizer "de aqui até ali
é Cena I", isso organiza-me a forma, quer eu queira, quer não.
Nessa medida, como estamos simetricamente numa posição - eu, pelo
menos sinto as coisas dessa forma - já não temos a tonalidade,
tal como Schoenberg, mas também já não temos aquela visão
fechada do que é a música contemporânea - onde, em princípio,
uma série de respostas estava dada à partida, e também
uma série de exclusões estava incluída nessas respostas.
Não se podia usar um acorde perfeito porque historicamente estava datado,
não se podia usar um ritmo pulsado porque era Stravinsky, não
se podia usar uma série de coisas. Portanto, era uma espécie de
música que se afirmava mais pela negativa - ou seja, pela quantidade
de exclusões que impunha - do que propriamente pela afirmação
de uma linguagem. Aliás, acho que, se há coisa que define o século
XX, é a tentativa de dar resposta ao fim da tonalidade. Por examplo,
o Britten dá uma resposta, que é usar uma tonalidade mais ou menos
indisciplinada, o Shostakovich faz o mesmo, e depois há outros que recusam,
e inventam sistemas alternativos - e esses sistemas alternativos mostram as
suas limitações ao fim de dez ou quinze anos...
Isso leva, também, a pelo menos duas questões que resultam,
por um lado, do conceito da forma, a tonalidade sendo, no fundo princípio
organizador da própria forma, e a outra questão, que acho que
então em Os Dias Levantados colocou de forma claríssima,
que é a relação dos compositores do século XXI com
o que o António Pinho Vargas, e não só, chama objectos
sonoros - e até que ponto essa relação não é
uma tentativa de resolver determinados problemas.
Gostaria de pegar nestas questões da seguinte forma: para mim, compor
é estar lançado num processo, isto para me exprimir em termos
heideggerianos. Estou lançado num processo do qual não conheço
o fim. E aí devo dizer que oiço muito pouco as pessoas falarem
da sorte, a propósito da sua actividade artística. Eu acho que
a sorte é um elemento fulcral da actividade artística... É
preciso ter sorte, partindo do princípio que existe talento ou qualidade
nos compositores. No entanto, há algumas peças que são
melhores que outras. Isto em todos os compositores, mesmo no Bach - é
preciso ter sorte...
Sorte e, se calhar, usá-la sem vergonha.
Sim, sim. Mas nesta altura, digamos, de 1993 em diante, percebi que teria de
ter os meus próprios critérios. O ponto onde estabeleço
fronteiras entre "isto posso fazer, isto não posso fazer".
Sou eu que tenho que decidir, de acordo com critérios que são
os meus. Não posso tomá-los como universais e dizer: "a minha
fronteira está aqui, e esta deve ser a fronteira para todos os outros".
Desse ponto de vista, eu acho que deve existir uma articulação
entre as relações dos diferentes objectos que eu, num dado momento,
aceito como existentes. Portanto, estamos num processo, no qual estou lançado.
Durante o processo, eu faço determinadas associações que,
num dado momento, podem passar por dizer " aqui entra este acorde perfeito"
ou "aqui entra esta música" - e eu posso relacionar isso com
uma certa música do passado. Estar neste processo é muito diferente
de ter à partida outra vez uma decisão prévia, como "a
minha música vai ser poliestilística". É que não
tem nada a ver, porque estou no processo, e pode aparecer uma mudança
súbita e quase inexplicável de registo - e eu reconheço
"Ah, isto parece um recitativo do século XVIII. Porque eu estou
no processo, e apareceu-me essa ideia, e eu aceitei-a como possível.
Mas ter uma atitude poliestilística, como Alfred Schnittke, que teorizou
isso, ou Sofia Gubaidulina - de quem gosto muito como compositora - não
quer dizer que todas as obras sejam igualmente assim.
Portanto, chegado a este ponto na descrição que eu estava a fazer,
posso dizer que a diferença com o que se passava antes é que eu
não poderia, de acordo com essa ideologia, aceitar certos objectos. Tinha
de os afastar absolutamente, porque tinham conotações estilísticas
negativas com a música do passado, e portanto enfraqueceriam a obra pela
sua simples presença. No entanto, eu recuso essa interdição,
e aceito o objecto - mas aceito-o com as conotações estilísticas
negativas. Faço-o de acordo com os meus critérios, ou seja, quando,
num dado momento, as tais associações do processo em que estou
lançado me aparecem à frente e me aparece uma determinada ideia
musical com as ditas conotações, é, em cada momento e em
cada peça, que eu tenho de tomar a decisão de sim ou não,
se vai para aqui ou se vai para ali, se tenho que procurar outro caminho.
Eu de facto sublinho que, ao estar num processo, não estou numa posição
em que aceito tudo - aceito aquilo que quero aceitar. Essa decisão é
que passou para mim, enquanto que, no passado, essa decisão não
era minha. Eu tinha que estar ajustado a um determinado lugar ou a uma determinada
análise sobre a questão de qual é o estado actual da linguagem
musical.
Para passar a uma coisa que tem a ver com isso e que ao mesmo tempo
não tem a ver, no início falou sobre a importância da experiência
do jazz na relevância que tem o gesto do intérprete. Queria que
falasse um pouco sobre isso - já não a importância do gesto,
mas a importância que tem o corpo do intérprete. É uma coisa
da qual raramente se fala, mas que imagino que tendo a experiência de
palco que tem, deve ser algo a que dá importância. Os músicos
têm muito medo de falar do corpo. Estava a pensar nas suas peças
instrumentais, como a que escreveu para o Miguel Henriques.
Ia justamente falar dessa peça. O Miguel Henriques foi meu colega na
Escola de Música, e somos amigos há quase trinta anos. Umas vezes
ele tocou para mim, outras vezes toquei eu para ele - ajudámo-nos mutuamente
ao longo dos anos. Mesmo na altura em que ele esteve em Moscovo e nos Estados
Unidos, quando vinha de férias encontrávamo-nos e às vezes
passávamos uma tarde inteira a tocar. Acho que o momento mais maravilhoso,
na minha perspectiva, da actividade de compositor, e uma vez terminada a peça
e saber que ela vai ser tocada, é o momento do contacto com os músicos
que a vão fazer. Eu adoro os ensaios das peças, especialmente
quando não há pressa, quando não há aquela atitude
institucional - "já são oito horas, acabou o ensaio"
- coisa que acontece às vezes antes do momento em que deveria considerar-se
o ensaio terminado. Portanto, eu gosto de trabalhar com os músicos, e
as peças são escritas para serem tocadas por músicos. Quando
eu, no início da conversa, falei do tal excesso de confiança na
partitura e da necessidade de voltar a falar, é porque gradualmente reconheci
o prazer de voltar a falar com músicos. Tomo quase como paradigma aquela
história que conta uma grande cantora húngara, que faz muitas
peças do Kurtág, e que diz que estava uma vez já vestida
para subir para o palco e cantar, e ele aparece atrás dela a dizer "olhe,
naquele sítio, se pudesse fazer piano em vez de mezzo-piano...".
Já sei que isto não se pode fazer, mas o que eu gosto é
de considerar que, no momento em que vou tocar e que vou entregar a peça
ao músico, a peça ainda não está acabada - ou seja,
está aberta às sugestões que ele pode fazer. É um
quadro geral, fundamentalmente feito do que é mais importante, mas que
está apto a receber sugestões. Falo de sugestões de tempo
e de sugestões de "olha, experimentamos este solo" - como no
caso dos instrumentos de percussão, que são os músicos
com quem eu gosto mais de falar, e eles também gostam mais de falar com
os compositores. Isto porque dizem "ah, se eu tocar aqui tem um som, se
tocar ali tem outro" - e aí parece que estamos todos envolvidos
numa coisa que afinal é a criação da obra, e que passa
a ser minha e deles. Quando eles assumem que a obra é assim, que precisa
do seu contributo, e naturalmente do contributo do seu corpo... Porque é
com o corpo que se faz música, é uma actividade física,
que consiste em tocar o instrumento que se tem. Nessas alturas, sinto-me em
casa, no sentido que sinto que estou outra vez a poder falar com os músicos
sobre a música que vai existir - e, portanto, deixou de haver aquela
relação quase hierática em que o compositor é um
personagem relativamente sinistro, que está lá ao fundo com um
papel à frente e com um ar ameaçador, e os músicos estão
a tremer porque não conseguem tocar aquela dose incrível de quialteras,
cuja necessidade não compreendem. Eu não quero este paradigma
na minha vida.
Há compositores que dizem: "Quando ponho a barra dupla,
acabou..."
Está feito, é para fazer exactamente como está escrito.
Pois... Isto é interessante, porque muitas vezes também aqui há
uma fronteira que sou eu que traço. E, sobretudo as questões do
tempo, por exemplo - que à partida é a coisa mais flexível
do mundo - porque senão, não havia versões de Sinfonias
de Beethoven que demorassem mais um minuto ou dois ou quatro do que outras versões.
Portanto, o tempo, à partida, é onde a música tem lugar,
e, por natureza, não é rígido, não é cronológico,
não é mecânico no sentido do relógio. Por vezes,
no entanto, pequenas diferenças de tempo podem destruir uma passagem
e a sua eficácia. Quando tenho discussões com os músicos,
normalmente é sobre questões de tempo. Eu digo "não,
aqui não percebeste bem, porque se for um bocadinho mais rápido,
já deixa de ser o que é, tens de voltar atrás". Quando
é um ou dois ou três músicos, essa conversa é rica.
Quando é com cem pessoas, tem de ser com o maestro, e torna-se uma espécie
de bola gigantesca, às vezes quase imparável, e depois no concerto
um tipo está a ouvir aquilo demasiado lento e não pode fazer nada.
É esse o momento em que tenho nostalgia de estar no palco enquanto músico
- porque aí, eu sei que bastava tocar uma nota ou duas um bocadinho antes,
e esse pequeno gesto meu poderia eventualmente colocar o tempo no lugar. O facto
de eu saber isto, enquanto músico executante, de certa forma atribui
aos músicos aquela que eu sei que é a sua importância. A
grande vantagem, por exemplo, daquele ciclo de concertos da Culturgest para
mim foi ter-me dado a oportunidade de ouvir as peças duas vezes. Porque
às vezes as pessoas, e em Portugal isso era corrente durante muitos anos,
viam a peça e a estreia como uma e a mesma coisa. A peça e a primeira
interpretação colavam-se como uma entidade única. Isto
é falso. Quando há duas interpretações percebe-se
imediatamente que a peça e a primeira interpretação não
são uma e a mesma coisa, e por isso a crítica feita a uma primeira
audição deve ser sempre relativa, porque não se sabe ainda
o que é que aquela peça poderá vir a ser numa segunda e
numa terceira interpretações.
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