|
|
|
ENTREVISTA |
|
Luís Bragança Gil |
Entrevista a Luís Bragança Gil / Interview with Luís Bragança Gil |
2005/May/27 |
|
Versão Áudio
|
Versão Texto
|
|
Registo Videográfico
|
Título do Suporte Entrevista a Luís Bragança Gil / Interview with Luís Bragança Gil |
Realizador Perseu Mandillo |
Produtor Tortoise Movies |
Tipo de Documento Entrevista MMP |
Tipo de Suporte MiniDV |
Data 2005/May/27 |
|
|
Edição
|
Editora Centro de Informação da Música Portuguesa |
Referência da Edição CIMP_entr_VID_LBG |
Data 2005/May |
Localidade Parede |
País Portugal |
Email Editor mic@mic.pt |
Página Web Editor Página Web Editor |
Edição Online |
|
|
Observações
|
Entrevista conduzida por Miguel Azguime na Miso Music Portugal (Parede)
Transcrição, redacção, revisão: António Ferreira, Marta Catana |
|
|
Acesso
|
Centro de Informação da Música Portuguesa |
|
|
1 |
Untitled Document
Etapas e pontos de viragem no
percurso formativo
A música começou mesmo de uma forma muito epidérmica. Desde
que me lembro, e também segundo o que os meus pais contavam, desde pequenino…
desde os meus dois anos, que a música era a única coisa que me
fazia realmente parar. Tenho uma memória muito longínqua dos serões
que os meus pais faziam com amigos… serões inteiros a ouvir música…
O que é uma coisa que hoje já nem acreditamos que possam ter existido!…
Beethoven, Mozart, Haydn e por aí fora mexiam mesmo comigo! Entretanto,
os meus pais só me puseram a estudar música aos 8 anos, apesar
de eu já andar a pedir há muito tempo… Nessa altura, comecei
a estudar piano na Academia de Amadores de Música. Logo aí comecei
a perceber que havia algo curioso e estranho com o ensino da música para
mim! É que eu adorava tocar tudo quanto era peças, mas tinha uma
certa relutância para conseguir aquele lado trabalhoso, dedicado, técnico.
Mais tarde, julgo que foi quando passei para o Conservatório, comecei
a ter um outro gozo que consistia em deturpar as peças. Ou seja, “agarrava”
nas peças e de tanto tocá-las, acabava por modular por cima daquilo,
modular o ritmo, fazer variações… etc. Variações
essas de que obviamente os professores nunca sabiam! Eu limitava-me a tocar
as peças nas aulas. Mas digamos que foi aí que comecei a perceber
que me interessava mesmo o material mesmo em termos de criação.
A partir daí surgiu aquela fase – que provavelmente aconteceu a
todos nós, compositores – que foi começar de facto a compor
as primeiras peças. Sem escrever, sem nada, mas tendo o gozo puro e simples
de começar a criar uma peça. E pouco a pouco começas a
criar uma peça inteira com um princípio, um meio e um fim e começas
a ter uma noção realmente do que é a peça, ainda
sem a escrever.
Depois lembro-me de começar a registar – sobretudo porque me acontecia
frequentemente perceber que já não me lembrava de peças
antigas, que as esquecia – mas sem a mínima pretensão de
ser um compositor! Aliás, ainda hoje não tenho essa pretensão…
do lugar do ”compositor” no sentido da figura em si. Não
me levo assim tão a sério!…
A partir daí e em termos de formação musical, fiz o Conservatório
– a Elisa Lamas foi a minha professora não só de formação
musical, mas também acabou por ser mais tarde a minha Professora de piano.
Ficava completamente desesperada comigo porque, mais uma vez, eu continuava
sem paciência nenhuma para os estudos e só queria devorar peças…
Já tinha devorado as peças todas e ainda não tinha preparado
nada para fazer o 4º ano de piano! Era uma guerra!
Às tantas dei por mim a interessar-me e descobri que no Conservatório
havia uma coisa chamada “Curso Geral de Composição”.
Tinha 15 anos e inscrevi-me. Na altura, a professora desse “Curso Geral
de Composição” era a Constança Capdeville. E foi
nessa altura que tive uma espécie de “baque” porque percebi
que aquilo era estudo de Harmonia . Por um lado, era interessante, porque toda
a gente sabe que é importante… sobretudo a harmonia do ponto de
vista da tradição de Bach e por aí fora.
Mas o que eu queria de facto era o lado do processo criativo, não sabendo
muito bem o que isso era. Simplesmente tinha curiosidade por fazê-lo.
Entretanto, apesar de os meus pais serem pessoas bastante cultas e interessadas,
ainda faziam parte de uma geração que dizia que ser músico
não é vida, ou seja, que a música é um interesse
e não uma profissão ou uma actividade. E daí que na altura
tive de fazer uma espécie de escolha por exclusão de partes, ou
seja… “sem ser música, o que é que eu poderei fazer?…”
e cheguei à Arquitectura. Ao acabar o 7º ano de liceu e o propedêutico,
inscrevi-me no único curso de Arquitectura que havia aqui em Lisboa,
na ESBAL (nem cheguei a inscrever-me no Porto como alternativa). Entrei, fiz
o curso de Arquitectura, e digamos que foi mais um processo complicado de luta
interior porque entretanto estava a descobrir muitas outras coisas como apaixonar-me
pela Música Coral. Mais tarde, vim a descobrir a Direcção
Coral, outro mundo que ainda hoje partilho. No fundo, vivia várias vidas
ao mesmo tempo: fazia o meu curso de Arquitectura, ao mesmo tempo que andava
nas noitadas a cantar; e cantava em vários coros, dos quais o coro de
Câmara do Conservatório era talvez o mais importante.
Depois… a Direcção Coral foi outro mundo que vim a descobrir
através do Francisco d’Orey, no primeiro curso de Direcção
Coral organizado pela ACAL - Associação de Coros de Amadores de
Lisboa. Já lá tinha feito um curso de animação musical
e tinha gostado imenso do Francisco e então fui com vários amigos
que na altura eram colegas de animação musical, assistir a uma
sessão do tal Curso de Direcção. Nem sequer me inscrevi
porque inicialmente achei que não tinha muito a ver comigo ou que não
era de com certeza terreno para mim… mas acabei por achar imensa piada
àquilo, de tal forma que o Francisco convidou-me para experimentar. Fui
experimentar logo ali, na hora naquele mesmo dia e ele achou que eu podia continuar
e foi óptimo, fiz o curso todo. tive a sorte e o privilégio de
o próprio Francisco me convidar para assistente dele como director adjunto
do coro da Universidade de Lisboa, que ele dirigia na altura – e depois
em relação à direcção Coral comecei por aí
a dirigir uma série de coros.
Mas de facto a composição foi sempre uma coisa muito intestina
e muito interior. Ou seja, durante uma série de anos, foi algo que eu
fazia para mim e sobre a qual não tinha qualquer tipo de pretensão.
A relação com o que ainda se chama música pura, foi acontecendo,
mais uma vez, com imenso pudor. Nomeadamente depois constituiu-se um grupo,
o Quadrivium, que eram supostamente quatro compositores… porque eu era
a ovelha negra da família e só os outros três é que
estavam realmente a estudar composição; eram o César Viana,
o Carlos Fernandes e o Paulo Pontes. Formámos assim esse grupo, o Quadrivium,
com o propósito de tocar as nossas próprias obras; convidávamos
também alguns amigos, outros músicos que queriam trabalhar connosco
e ainda fizemos algumas apresentações de certas obras, e aí
obviamente tive o espaço para escrever algumas obras apenas musicais.
Foi óptimo tê-lo feito.
|
|
|
2 |
Untitled Document
Compositor e Arquitecto:
O papel das Artes Plásticas e o espaço cénico no desenvolvimento
do processo criativo
Acontece que quando acabei o curso de Arquitectura – e estava perfeitamente
consciente de que não queria ser arquitecto (apesar de ainda estar a
viver o “drama” de não saber muito bem o que é que
queria) - já estava profissionalmente ligado à direcção
Coral. Dirigia uma série de coros na altura e, do ponto de vista da composição,
a apresentação pública surgiu um pouco por acaso. Um grande
amigo meu, o Miguel Branco, que também ia fazer a sua primeira exposição,
perguntou-me se eu queria escrever alguma coisa para a abertura. Na altura eu
andava fascinadíssimo com o clarinete baixo – e escrevi uma peça
para clarinete baixo solo. Digamos que se pode considerar a minha primeira peça
como tal.
O instrumento dessa peça já tem um pouco essa linguagem –
que não era apenas uma peça para clarinete-baixo solo, mas que
se relacionava de alguma forma com a pintura do Miguel Branco e do António
Marques (que iam expor); e relacionava-se sobretudo com o espaço dessa
exposição. O espaço da apresentação era uma
sala muitíssimo comprida e bastante estreita com uma acústica
muito particular. A peça foi mesmo feita para aquela acústica
e para aquele espaço. Aí comecei a perceber que isso me interessava
muito porque não era apenas escrever para o instrumento. Na altura estava
fascinadíssimo com o clarinete baixo e com a sonoridade do clarinete
– mas também com essa relação do espaço, a
relação do próprio intérprete com o público.
Digamos que toda a peça foi escrita com essa base – eu a ouvi-lo
tocar na sala e a tentar perceber o que é que funcionava ou não,
as notas que reverberavam ou não, e tudo isso acabou por ser estrutural
para essa peça.
A partir daí comecei a trabalhar em colaboração com o escultor
Sérgio Taborda que me convidou para escrever uma primeira peça.
Curiosamente na altura eu não sabia muito bem o que chamar em termos
de género e acabei por lhe chamar instalação musical. Nem
fazia ideia que havia instalações do ponto de vista de som! Aliás,
tenho a impressão de que em Portugal ainda não havia muita gente
a trabalhar nessa área. No fundo, percebemos que estávamos em
grande empatia um com outro porque também ele concebia a escultura não
só como a apresentação de objectos escultóricos
mas sim de objectos em relação com o espaço, criando percursos
em que as pessoas fossem descobrindo a escultura. E isso tinha muito a ver comigo,
com a relação que eu queria que as pessoas tivessem com o meu
universo sonoro.
Nasceu então essa primeira instalação em 1992, na Mãe
d’Água, uma peça com seis dispositivos sonoros; era uma
coisa muito simples e muito pobre no bom sentido da palavra, com 6 gravadores
que consegui através do patrocínio da empresa que os cedeu; os
seis gravadores estavam em cima de placas sobre a água, na Mãe
d’Água, e estavam dispostos de uma forma muito particular, que
obrigava o visitante a entrar no espaço e a percorrê-lo, tentando
relacionar-se com cada um daqueles objectos de uma forma diferente.
E eu acho que foi determinante em termos de perceber como é que devia
conceber as minhas instalações a partir daí… Eu tive
de perceber, primeiro que tudo, a acústica do lugar – aliás
levei uma série de cassetes de várias coisas para perceber um
bocado a acústica daquele espaço, completamente desastroso do
ponto de vista sonoro com cerca de oito segundos de reverberação,
se bem me lembro.
E serviu um bocado para perceber quais os sons que realmente se espalhavam por
todo o espaço; perceber as frequências agudas, as frequências
graves, perceber que as frequências médias, pelo contrário,
não se espalhavam e tinha de me aproximar… Nessa altura até
lhe chamei uma collage porque fiz uma samplagem de várias coisas…
uma reunião de vários universos sonoros.
Entretanto houve várias colaborações a partir de 1992.
A última que fizemos foi a de 1997, e depois voltámos a fazer
uma peça em 2001. Mas aqui, em termos interiores digamos assim, foi a
minha forma de poder casar o lado de “arquitecto” que tinha nascido,
da relação com o espaço, com o meu lado de músico;
era mesmo a melhor forma de eu poder ser arquitecto e de alguma forma também
sentir-me como músico, enquanto actividade criativa.
|
|
|
3 |
Untitled Document
A experiência de Direcção
Coral:
Influência nas opções técnico-artísticas
e a aproximação ao Teatro Musical
A minha experiência em Direcção Coral levou-me a compor
para música vocal e escrevi mesmo algumas coisas para coro. Mas digamos
que ganhei mas à-vontade e espaço com o nascimento da Cantata
sobre o Vulcão em 1995 quando fui convidado para participar num
simpósio de artes multimédia nos Açores. E enquanto lá
estive, trabalhei sempre imbuído do espírito de tentar apreender
o máximo do espaço onde estávamos, aliás como
todos no simpósio. Do ponto de vista interior, a experiência
da ida aos Capelinhos e das caminhadas que aí fiz, por exemplo, foram
uma revelação muito forte e apercebi-me de que teria de fazer
uma peça para aquele espaço. Assim, fiz uma peça electrónica,
baseada em algum arsenal electrónico doméstico que tinha levado
para lá. Durante o dia caminhava pela ilha “que nem um doido”
e à noite então trabalhava no quarto com esse material. Concretamente,
aproveitei para fazer muitas captações de várias coisas
e algumas manipulações dessas mesmas captações,
acrescentar outras coisas, etc.
Entretanto também me auto-propus ao Conservatório local, podendo
trabalhar com quem quisesse… houve portanto um pouco de arrojo da minha
parte em apresentar-me, dizendo:,“eu estou a fazer este trabalho, quem
quiser de alguma forma colaborar comigo e participar terei muito gosto nisso”.
Na altura também estava muito empenhado em termos de pesquisa, do ponto
de vista vocal, de outras sonoridades e de outras técnicas (estava
a trabalhar bastante nessa área sozinho) e com muita vontade de experimentar
isso com outras pessoas. Já tinha criado um grupo com o Paulo Brandão,
em que estávamos a fazer esse tipo de pesquisa, não só
peças do século XX, que era uma coisa que pouca gente fazia,
mas em termos de pesquisa da linguagem e em termos de técnica vocal.
Por acaso nessa altura tive a felicidade de que as pessoas que quiseram trabalhar
comigo eram essencialmente cantores – além dos cantores. só
houve um flautista que era a professora de flauta que lá estava. Todos
os dias dedicava uma hora e meia a duas horas a trabalhar com eles –
eles nunca tinham trabalhado nada do ponto de vista destas novas linguagens.
Aconteceu que uma das pessoas que lá estava a trabalhar temporariamente
connosco era a Luísa Costa Gomes. Na altura pediu-me para ir ver o
que é que eu estava a fazer com estes cantores e um dia aparece-me
com um texto, dizendo-me “Faz o que quiseres com este texto, fi-lo com
base no que me apercebi que estavas a fazer”. Eu estava aliás
muito próximo das datas de apresentação desse trabalho
que tinha de ser feita no fim do simpósio mas falei com a Luísa,
que não conhecia bem e fiz a proposta: “Olhe, gosto imenso do
texto, mas, se bem percebeu, o que eu estou a fazer em termos de trabalho
vocal é de desconstrução do texto. Portanto, o que vou
fazer é agarrar no seu texto e assassiná-lo. Posso?” Ela
disse-me que sim, que podia fazer o que quisesse – e no fundo foi o
que fizemos – agarrámos no texto e foi todo um trabalho de desmanchar
o texto, de sonorizar o texto de uma forma não narrativa.
Entretanto, uma das pessoas desse simpósio tinha feito uma filmagem
do trabalho – e a coisa nasceu tão simples quanto isto –
a Luísa Costa Gomes viu aquilo e disse: “Bom, e que tal agora
fazermos uma coisa que fosse narrativa, em que o texto tivesse outro tipo
de linguagem?” Nessa altura também me atrevi a dizer: “Ok,
então desta vez também me proponho fazer uma coisa em que as
vozes tenham um papel preponderante, em que toda a electrónica desapareça
e em que sejam realmente os instrumentos ali ao vivo de uma forma muito material.”
Isto também pode parecer um bocadinho novelesco para certas pessoas,
mas de facto esse lado físico, esse lado de ter os músicos ali,
de criar uma relação muito próxima com o público
era uma coisa que me estava a interessar muito.
E de facto a Cantata nasceu assim… nasceu de apropriar-me de
um texto que ainda teve várias versões. Aliás, ela chegou
a apresentar-me dois ou três modelos de textos completamente distintos
até que agarrei naquele texto. Foi então aí a primeira
vez que tentei casar tudo isto: a pesquisa vocal que estava a fazer até
ali, o trabalho Coral, se assim se pode dizer, e o à-vontade de escrita
ou de leitura ou de interpretação vocal que eu estava a ter.
E, por sua vez, tinha o desafio de agarrar na instrumentação
e trabalhá-la com o mesmo tipo de espírito e de liberdade com
que eu trabalhava a electrónica, mas sabendo que estou a escrever para
músicos. Talvez também pelo próprio texto ser uma tragédia
(se assim se pode chamar) que para mim, acabou por funcionar como uma tragicomédia,
houve neste processo uma leitura e uma vontade de trabalhar o género,
de brincar um pouco com o que é uma Cantata; A Luísa
Costa Gomes queria mesmo fazer uma cantata e eu acabei por agarrar no modelo
da cantata barroca, recitativo do ponto de vista formal, que justamente me
dizia muito enquanto intérprete e basicamente tentei ver o que era
possível fazer em termos da liberdade criativa dos dias de hoje.
De repente, passei a confrontar-me com outra problemática: “Ok,
mas então o que é exactamente isto de ter músicos e nomeadamente
cantores ao vivo? O que é esta relação física
com o espectador, com o público e também entre eles, claro?
Aí comecei a interessar-me muito pelo Teatro. Quer dizer, comecei a
fazer algum trabalho de música para teatro e nasceu um novo e grande
interesse – compreender como é que se monta uma peça de
teatro e todo o lado da encenação; ou como é que um actor
veste uma personagem e a constrói. No fundo, comecei a relacioná-lo
com o meu mundo e com a música. Sendo assim, não é por
acaso que a partir daí começou a ser mais ou menos determinante
para mim haver sempre uma relação com o teatro musical, o que
implicou resolver algo que funcionava como uma problemática minha:
de facto, sempre fugi a recitais de canto e piano e a sessões de leitura
de poesia porque não tinha paciência (ainda que seja um grande
amante de poesia). Para que se perceba o trabalho que talvez tenha sido mais
significativo, em 1999 acabei por fazer o Elegantíssimo, assumidamente
um recital de teatro musical. O Elegantíssimo nasceu justamente
deste ponto de partida: “Como é que eu posso começar a
gostar?” Uma outra problemática está ligada ao facto de
eu querer perceber como é que um actor chega a determinado “sítio”
e como é que um músico lá chega… perceber finalmente
que são verdadeiramente mundos e abordagens quase antagónicas…
e descobrir como é que eu poderia confrontá-las.
E mais uma vez fi-lo de uma forma que começa a ser bem recorrente em
mim e que é introduzir algum humor nesse processo. Daí que muitas
vezes pus actores a ter um papel muitíssimo musical, fazendo uma abordagem
completamente musical e, ao mesmo tempo, pôr os cantores a ter uma abordagem
teatral, o que é normalmente um problema. Ou seja, os cantores são
técnicos do ponto de vista vocal e têm uma má relação
com o palco, com a experiência “ao vivo”, precisam da segurança
que a leitura do que está escrito e tende a ser repetido e igual ao
espectáculo anterior, lhes dá. Os actores, pelo contrário,
querem essa insegurança, querem justamente que a coisa viva no momento.
E no fundo, também eu nunca abandonei completamente a improvisação…
Ou seja, a improvisação sempre foi para mim um motor para começar
a escrever. O que eu tentei então foi que tornasse possível
este diálogo, pegando em poetas surrealistas e poetas satíricos
que, em termos de inspiração, me ajudaram muito a pôr
isso tudo em ordem.
|
|
|
4 |
Untitled Document
A Voz como elemento de definição
de Linguagens e a relação com a Electrónica
Eu assumo perfeitamente a tonalidade e a harmonia e é óbvio
que existe essa relação entre as minhas opções
e o trabalho com a voz; se de alguma forma enquanto director coral, esse é
um mundo que me fascina, assumo sem problema nenhum essa opção
que sei que está ligada a uma certa tradição e não
a vanguardas. O que é de facto, verdade é que a pesquisa da
voz e do que é possível fazer em termos vocais sempre me fascinou.
Há todo um mundo de sonoridades por descobrir e está na nossa
mão (ou do cantor, neste caso) descobrir tudo que se pode fazer em
termos de voz… tímbrico… físico… é
sempre possível. E embora não me assuma como cantor, assumo-me
como pesquisador de todos esses meios.
Eu procuro de alguma forma misturar as coisas, mas também não
me faz confusão nenhuma fazê-lo… um certo experimentalismo
vocal ou mais ou menos alheado da tonalidade… E isso está presente
em certas peças…, se calhar muito mais em termos estruturais
do que em termos sonoros. É provável que não se dê
por isso mas esses novos mundos sonoros deram-me ideias e liberdade para a
escrita da peça, e mesmo do ponto de vista da estrutura da peça,
permite não haver qualquer necessidade harmónica de suster a
peça ou de a estruturar. E eu assumo-me de facto como um auto-didacta,
uma pessoa que tem vindo a tentar a aprender alguma coisa por si. Claro que
com todas as falhas e todos os problemas que isso traz, mas também
ao mesmo tempo traz uma certa ingenuidade - atirar-me para coisas um bocado
sem estar demasiado assustado com o que isso pode representar em termos de
passado histórico-musical ou qualquer coisa desse tipo.
Relativamente ao uso da electrónica, para mim, ela é mesmo um
espaço de liberdade quase plástica… é uma coisa
muito sensorial, também, se se preferir e, à partida, nunca
vou pegar em opções formais. Parte realmente muito do som, da
vivência com o som, exactamente como um pintor provavelmente fará
com a pose ou fará com a cor. É portanto uma coisa muito abstracta…
é de facto uma coisa altamente dialogante… E se eu acho que é
muito bom quando se está a escrever uma obra, sentir perfeitamente
que a obra toma conta de mim e que às tantas já não sei
muito bem se sou eu que estou a escrever ou se é a obra que me “escreve”
e que há esse “tomar conta” um do outro…(o que felizmente
já me aconteceu algumas vezes), com a electrónica isso é
perfeitamente evidente porque é uma relação em que tu
tens um feedback imediato. E sobretudo no meu caso, porque nunca
me pus e não me ponho com grandes questões realmente formais;
a electrónica o lado em que eu me divirto, por um lado, ou em que me
envolvo por outro. É de facto uma coisa de envolvimento… e saboreio-a
de uma forma muito plástica.
|
|
|
|
|
|