Começo a estudar
guitarra clássica – a chamada guitarra clássica – com cerca de 13 anos. Antes
disso, na escola, tinha feito flautas e coisas assim, mais para miúdos, mas
quando começo a estudar guitarra, antes de conseguir tocar a primeira peça fiz
uma peça minha que achei que era mais fácil tocar do que aquela que me tinha
sido dada para eu aprender e portanto pode-se chamar logo aí um embrião de
compositor, mas durante muito tempo nunca pensei nisso, não é? Estudei guitarra
clássica, ia fazendo umas músicas mas sem levar muito a sério o que estava a
fazer. Estudei guitarra clássica numa escola em Lagos, com o professor Luís
Robert, e estudei piano também. Comecei a gostar mesmo de música mas sempre
numa perspectiva de intérprete. Fazia composição mas não pensava muito no
assunto. Depois fui para o conservatório nacional, aqui em Lisboa, e
curiosamente aí tive a primeira abordagem de composiçãocom o professor António Sousa Dias e
depois, no segundo ano, com o Jorge Peixinho. Fiquei 2 anos com o professor
Jorge Peixinho, e curiosamente o meu gosto pela composição desapareceu.
Deixei de ter
qualquer interesse em compor e dediquei-me muito à interpretação. Estudava
piano a sério e pronto era essa a minha ambição. E depois, por uma série de
razões privadas não acabei o conservatório e fiquei em Lagos e ao deixar de
estudar no conservatório, voltei a compor. Sempre de uma maneira mais ou menos
lúdica sem pensar muito seriamente no assunto. E fui continuando a estudar a
guitarra clássica. Começar a pensar seriamente na composição só talvez aí na
casa dos 22, 23 anos. Comecei a achar curioso aquilo que eu fazia quando
compunha, a reflectir sobre aquilo que eu próprio fazia e a entusiasmar-me um
pouco com aquilo e, aos poucos, a deixar de estudar guitarra – que era na
altura o instrumento que eu estava a tocar – e a fazer só praticamente só
composição. Depois, quando me dou conta disto, de estar completamente
embrenhado na composição tenho o primeiro curso do professor Emmanuel Nunes na
Gulbenkian e pronto, a partir daí começo a levar mesmo a sério a ideia.
Praticamente deixo de tocar porque, de certa forma, considero que sempre teve
um efeito de uma certa castração da veia de compor, o estudar interpretação.
A tocar toco
coisas minhas, se começo a debruçar-me muito sobre outros compositores perco a
vontade de ser eu a fazer as coisas. E portanto, em termos de figuras, o
Emmanuel Nunes teve aí muita importância. Entretanto já tinha feito uns cursos
com um professor que é guitarrista mas também compositor, Leo Brouwer, também
já tinha levado, eu próprio, peças – sempre para guitarra – para esse curso e
que tinham sido vistas pelo professor Leo Brouwer. E portanto é uma passagem
muito progressiva de guitarrista para compositor. Finalmente neste percurso, -
e tendo em conta a abertura das licenciaturas em música em Portugal, neste
caso, em Évora que era para mim muito mais prático – estava com dois filhos – e
já tinha aberto a licenciatura em Aveiro mas era impraticável - resolvi fazer a
licenciatura em composição em Évora e fiz a licenciatura lá com o professor
Amílcar Vasques Dias. Basicamente este é o percurso. Depois, obviamente, fiz
cursos, workshops de composição, mas que me tenha marcado mesmo parece-me –
além dos workshops do Emmanuel Nunes, obviamente – foi todo este percurso.
Eu peças para
guitarra as Forças de Bloqueio e o Lego, para
guitarra solo, e são as duas únicas peças. Foi um esforço enorme para as compor
e fiz a composição mesmo porque considerava necessário para mim realizar essas
2 peças. Depois as outras é um facto que elas aparecem por eu ter sido
guitarrista, mas são aquelas coincidências, quer dizer, eu por ter sido
guitarrista conheci muitos guitarristas e, obviamente, prefiro compor para
pessoas que depois vão tocar, não é?
Não tenho grande
entusiasmo em compor no papel. Tinha pessoas – e continuo a ter pessoas – que
me pedem para fazer músicas para guitarra. E eu conheço muitos guitarristas mas
é uma grande dificuldade que eu tenho em compor para guitarra, prefiro compor
para conjuntos com guitarra.
Há uma tendência
para agarrar no instrumento e tentar compor ao instrumento e eu, por várias
razões, habituei-me a compor sem instrumento, quer dizer, em cima de uma
secretária imaginando as coisas, mas sem ter aquela coisa de estar… O piano
sim, o piano acho muito útil para entender melhor as harmonias que estou a
fazer, para ver como é que resultam certas coisas mas sempre como um
instrumento abstracto, que está no fundo a tocar o que outros instrumentos vão
tocar.
A guitarra é um
instrumento muito específico e,portanto, compor ao piano para guitarra é complicado porque pode-se
fazer asneiras, pode-se fazer coisas impraticáveis e portanto a tendência é
agarrar na guitarra e ver como é que aquilo é possível. E ao agarrar na
guitarra os dedos vão para os sítios do costume e começa a soar outra coisa que
não é aquilo que eu gosto de fazer.
Composição de processos musicais:
ciclo de peças MMC
São umas peças em
que eu procuro obter uma dada sonoridade através de um processo. É a primeira
vez que eu componho com processos musicais, e fiquei fascinado com isso. Desde
então continuo ainda hoje a compor com processos musicais, processos de
composição musical. Digamos que a outra, a composição que eu fazia até esse MMC era umacomposição intuitiva, em que ia acumulando sons conformeachava que ficava melhor ou não. Uma
espécie de composição livre, mesmo no verdadeiro sentido, livre de processos
que eu tivesse engendrado. Eu tinha uma ideia dessa questão que eram os
processos musicais, já o Jorge Peixinho me tinha falado sobre isso, mas era uma
ideia algo negativa, era a ideia que, no fundo, os processos musicais serviam
para não se compor, ou seja, aquilo que saía era qualquer coisa que me escapava
completamente das mãos. E nos MMC - um pouco por acaso, estava a brincar um pouco ao computador e a
fazer as coisas e queria obter um determinado tipo de som, que ainda hoje é
muito característico das minhas músicas - sons muito longos, a utilização de
manchas sonoras muito longas durante muito tempo- e queria obter esse som com um processo, ou seja, o
processo não me fez a música - eu é que fiz o processo para dar a música que eu
queria. E a partir daí… Portanto essas peças são mesmo marcantes nesse sentido.
É uma operação
sobre o material e, portanto, trata-se de arranjar uma forma de os sons
entrarem e saírem. Inclusivamente mais tarde cheguei mesmo à própria escolha
desses sons, mas nesta fase os sons estavam mais ou menos escolhidos mas eu
queria arranjar uma forma de fazer os sons aparecerem e desaparecerem sem eu
estar constantemente a optar pelo melhor sítio onde esses sons podem ficar,
porque a minha ideia era que aquilo que hoje, quando estou a compor,me parece o melhor sítio para iniciar
uma nota, pode amanhã… Eu posso chegar à partitura e, quer dizer, ontem
parecia-me bem aqui mas se eu puser um bocadinho antes a nota, ou um bocadinho
depois, não fará grande diferença! Isto tem a ver um pouco com o tipo de música
que eu faço, não é? Porque se estamos a falar de notas muito longas, que se
sobrepõem umas às outras com váriosinstrumentos, a tapar as respirações dos outros - quando se fala neste
tipo de música o momento exacto onde entra uma nota torna-se relativamente
irrelevante, ao contrário de uma música muito pontiística, onde de facto quando
se altera o sítio onde as notas ficam, o contorno daquilo tudo fica diferente.
Aqui era mais ou menos irrelevante e, perante essa irrelevância, eu tinha que
escolher um processo matemático ou aleatório ou qualquer coisa, que me
permitisse pôr as notas no sítio sem que eu tivesse que estar constantemente a
dizer: “Não, aqui fica melhor, ali fica…” Chegar à conclusão de que de facto
tanto faz, podia ser um bocadinho antes, podia ser um bocado depois, e a
concepção do processo elimina-me este problema, portanto eu realizo um processo
que obtém o resultado que quero, em termos sonoros, e não me põe perante esta
constante opção de ter que estar a escolher exactamente o sítio, quando há
muitos sítios onde aquilo pode ficar.
O Steve Reich usa mesmo a expressão process music, e considera processos as
fórmulas de repetição matemática que ele escolhe e que, de facto, também lhe
fogem das mãos. Ele escolhe um processo e a música acaba quando o processo
acaba, e esse tipo de atitude na composição é parecida com a minha, aí sim.
Depois em termos de som, aquilo que normalmente as pessoas associam ao
minimalismo americano - não esta ideia de processo que, se calhar, é aquilo que
deveria ser a essência – acaba por ser aquela ideia de uma certa consonância,
um trabalho à base da consonância, por causa do tipo de notas e do tipo de
material musical que é utilizado. E aí, basta não utilizar isso e é difícil
associar a minha música ao minimalismo americano, mas o processo que está por
trás, então nesse caso dos MMC, é extremamente parecido. Curiosamente vim depois a
saber - porque esses MMC são feitos antes dos primeiros cursos que eu tive com o
Emmanuel Nunes - que o MMC (processo Mínimo Múltiplo Comum) tem a ver com a utilização
de notas com durações diferentes e portanto que vão produzindo um desfasamento
entre uma polifonia. Pode ser várias partes que vão produzindo um desfasamento
e que mais tarde ou mais cedo, por haver Mínimos Múltiplos Comuns, voltam a
encontrar-se . Mais tarde vim a saber com o Emmanuel Nunes que isso é a teoria
dos pares rítmicos, que o Emmanuel Nunes aplica e que sai um som completamente
diferente, porque ele trabalha de uma maneira completamente diferente o
processo. Eu trabalho isso de uma maneira muito primária mesmo, gosto que se
note que isso acontece, enquanto o Emmanuel Nunes precisamente prefere
disfarçar o que está a acontecer e usa isso como um processo.
O Lego também é uma música feita por processos e,
voltando àquela questão de que falámos sobre a minha dificuldade em escrever
para guitarra, esta coisa de fazer o processo permitiu-me fazer uma peça para
guitarra sem tocar na guitarra, sem tocar no instrumento. A partir daí a minha
maneira de compor mudou radicalmente, passou a ser à base de uma pesquisa sobre
as diversas formas de encaixe de processos, e as músicas praticamente deixam de
ser idiomáticas, não precisam de ser para um determinado instrumento.
Esses MMC, na altura, compu-los especificamente para
certos instrumentos porque uma boa parte deles eu tinha disponíveis grupos que
podiam tocar mas o que é facto é que, se um quarteto ou um quinteto de outro
conjunto de instrumentos me pedir uma música, posso facilmente utilizar essa
mesma música para esses outros instrumentos desde que tenham características
idênticas. Por exemplo o primeiro MMC é para um quarteto de trompas mas pode perfeitamente
ser tocado por um quarteto de violoncelos, têm é que ser instrumentos com
sonoridades idênticas.
Uma das coisas que
mais uso nesse tipo de trabalho, é fazer duas flautas fazerem sons que um só
flautista não consegue fazer, fazer o mesmo som durar imenso tempo, enquanto um
respira o outro sobrepõe, portanto, em que pareça mesmo que é só uma flauta mas
com alguém que tem uma respiração circular, perfeita. Faço isso com uma boa
quantidade de instrumentos, a tal ideia de ter notas muito longas com uma
espécie de atmosfera, uma massa de som e não à base do fraseado, da articulação
de pequenas notas.
Esses MMC têm umas características curiosas.
O primeiro MMC tem inclusivamente uma armação de clave, não me lembro agora se
está em Mi bemol maior ou em Lá bemol maior - obviamente não uso funções tonais
mas acaba por soar diatónico. A sonoridade das peças, e todos os MMC são mais ou
menos diatónicos, e todo o trabalho que eu fazia antes dos MMC eram modais,
eram obras modais, tonais – não no sentido de utilizar a tonalidade como função
tonal, mas com a utilização de algumas harmonias que são características da
música tonal. E o último MMC, a que dei o subtítulo The painfull pathway – que é mais ou menos A
dolorosa via,
ou uma coisa assim deste género – eu finalmente escolho um material sonoro que
na sobreposição produz dissonâncias cromáticas mesmo, e portanto aquele
ambiente diatónico que outros MMC produziam desaparece. E eu começo a gostar
cada vez mais da dissonância rude, cromática, e a partir do último MMC as
coisas mudam nesse aspecto. A ideia de massa sonora, a ideia de pasta sonora,
tudo isso continua a manter-se – ainda hoje trabalho dessa maneira – mas a
harmonia já não tem nada a ver com o diatónico.
Composição de
processos musicais: ciclo de peças XC
Os XC’s são acabam por ser peças importantes também.
Aí começo a utilizar processos aleatórios que ainda hoje utilizo. Essa coisa
dos sons poderem surgir sem ser por um processo matemático, mas por um acaso,
agradou-me imenso e produziu sobretudo – quando transposto para interpretação
instrumental – uma ideia de uma certa facilitação do processo do intérprete.
Se tenho a tal
mancha sonora - em que tenho uma flauta que é suposto entrar dois tempos depois
do clarinete e tenho portanto o maestro a dirigir, e o flautista tem que estar
com muita atenção dado que 2 tempos a seguir ao clarinete ele tem que entrar -
e isto tudo foi decidido porque um processo musical, um processo matemático,
indicou que a flauta deveria começar naquele ponto mas, como eu já disse antes,
a flauta de facto pode entrar um pouco depois ou um pouco antes que não vai
danificar o efeito sonoro que eu quero. E portanto, se eu em vez de eu dizer ao
flautista para entrar 2 tempos a seguir ao clarinete disser para entrar mais ou
menos 2 tempos a seguir ao clarinete, o flautista não tem uma tensão de
interpretação e, antes pelo contrário, não se engana. Pode começar um bocadinho
antes, um bocadinho depois, enganar-se – pode também enganar-se e pode tocar
mal porque todas as músicas podem ser mal tocadas – mas teoricamente ele está
relaxado porque se não entrar exactamente naquele momento e entrar um bocadinho
depois corre tudo bem à mesma. E isso, quanto a mim, é muito mais lógico, com a
música que eu faço, do que o contrário. Se a música que eu faço é um som
constante com pequenas alterações mas que de certa forma cria, ou é suposta
criar, um certo apaziguamento, não me parece coerente que a orquestra que está
a tocar isto, ou o conjunto que esteja a tocar isto, estejam todos cheios de
tensão para não falharem a entrada daquela nota ou da outra nota. E de facto o
ideal para mim é que o instrumentista saiba que tem realmente que tocar aquela
nota mas o sítio exacto onde vai entrar não é muito grave. E portanto, depois
de descobrir isso com o XC8, começo
a procurar escrever partituras - porque muitas vezes é difícil a concepção de
uma forma de escrita que seja clara para que o intérprete perceba que é isso
que se quer – que libertem o músico dessa tensão de entrar exactamente no mesmo
sítio. Portanto nessas peças surgem notações do tipo: “Entrar mais ou menos 30
segundos depois.” Mas não peço relógio, o intérprete não tem o cronómetro à
frente e portanto é o tempo psicológico - ele espera e entra quando achar que
passaram os 30 segundos. E resulta – para aquilo que eu quero – resulta
bastante bem. Portanto essas peças, sobretudo o XC9, também é importante porque começo a encontrar
maneiras de escrever com processos mas – aleatórios.
O ponto de partida
destes trabalhos – destes últimos trabalhos – é a harmonia, precisamente. Eu
começo por escolher primeiro um conjunto de acordes – vamos chamar assim –
agregados de notas, que me interessam para aquilo que eu quero ouvir. E aí há
uma escolha mesmo, continua a haver a tal escolha do compositor que se senta ao
piano a ver o que é que soa melhor ou que é que não soa: ”Esta nota não quero
neste contexto, esta quero neste contexto…” e, por exemplo,se eu estou a trabalhar um acorde de 4
notas e sei que aquilo vai entrar em desfasamento com outro acorde de 4 notas
que virá depois, eu experimento todas as possibilidades de 2 notas que sobram
deste acorde, mais 2 notas que sobram do outro, vejo se aquilo também me
agrada, se vou ter que alterar o acorde seguinte. Portanto, é neste aspecto de
encadeamento de acordes – com alguma aleatoriedade, porque as notas que passam
de um para o outro podem sobrar ou não – que, digamos, há certas harmoniasque eu não quero que saiam e por isso elimino as
possibilidades de isso vir a acontecer.
Quando estou a
fazer o trabalho apenas em electrónica, aí utilizo harmonia micro-intervalar
sem problemas absolutamente nenhuns. Quando trabalho com instrumentos prefiro a
utilização de diversas possibilidades de ruído do instrumento – o chamado ruído
do instrumento – do que estar a utilizar harmonia micro-intervalar.
Por exemplo, o
vento da flauta, o friccionar da corda sem obter som, portanto a utilização de
ruído interessa-me, até porque as tais manchas de som podem ser feitas só com
ruído, sem haver uma só frequência identificável.
Se tenho um
pianista que me pede uma peça e eu faço a peça para piano, ele vai tocá-la onde
quiser. Mas se eu fizer uma peça para um piano e electrónica, geralmente, eu
vou ter que ir atrás porque ele não conseguirá arranjar pessoas que façam as
coisas e portanto isso torna complicado o processo. Mas agrada-me muito a ideia
da utilização da electrónica com os instrumentos, não só a deformação do som
através da electrónica - a utilização do próprio som que os instrumentos estão
a fazer, que é o que eu faço nessas peças, - mas também a utilização de sons
pré-gravados, portanto sons que não pertencem geralmente aquele ambiente do
concerto ou à peça. Isso também já utilizei numa ou noutra peça - pôr uma fita
- a utilização não de electrónica ao nível do tratamento do som que terá de
fazer cada instrumento mas como se fosse mais um instrumento, mais um som a
sair. Agrada-me isso, sobretudo a perspectiva de que fossem mesmo 2
instrumentos.
Estou neste momento a fazer uma peça
para piano e electrónica em que a minha ideia da electrónica é a electrónica
agarrar aquilo que está a ser tocado pelo piano e fazer como um concerto! De
vez em quando acabo o piano e a electrónica fica sozinha, não a fazer registos
gravados anteriormente, mas sim a trabalhar o som que o pianista esteve a fazer
até àquele momento.O que pode ser
uma longa parte da música. Por exemplo, o pianista tocar 5 minutos e depois
haver um interlúdio só de electrónica de outros 5 minutos, que foi o que o
pianista tocou, mas trabalhado de uma outra maneira ou inclusivamente estendido
ainda mais do que 5 minutos.
Recusa da narrativa musical: do todo para o
particular
Tem a ver se
calhar com uma coisa que eu rejeito praticamente em todas as minhas peças a
partir dos tais MMC que é
a ideia de discurso musical, a ideia de que a música está a tomar uma direcção,
que vai daqui para ali. Uma espécie de narrativa musical que eu rejeito
completamente e portanto ao fazer isto, ao rejeitar a narrativa, de facto não
faz sentido começar no princípio e acabar no fim, porque se não há narrativa eu
tenho é que ver o todo e trabalhar o todo sempre vendo de cima. Costumo
comparar com o visionamento de um quadro – fazendo o paralelismo com as artes
plásticas –, se eu vejo o quadro no todo, ou se eu estou a ver o quadro, vejo o
princípio do quadro e vou levá-lo até ao fim. Se eu fizer essa visão parcial do
quadro não consigo perceber nada. Eu tenho que ver o quadro no todo. E eu,
quando componho, tenho que ver o tempo – o quadro neste caso é o tempo – no
todo e ver o que é que vou meter naquilo. Trabalhar sempre numa visão global da
coisa.
Estética e “trabalho” do som: a composição pela
negação
Há uma questão
estética que me tem preocupado e que segue um pouco o meu trabalho, que é a
ideia de que duvido constantemente de que aquilo que estou a fazer seja música.
De facto começo a pôr sérias questões de como é que se pode associar aquilo que
eu estou a fazer, por exemplo ao repertório, àquilo que as pessoas normalmente
identificam como música. Digamos de outra maneira, aquilo que as pessoas que
negam a música contemporânea costumam dizer: “É pá, isso não é música!”. Em
relação à minha música, eu começo a achar que eles se calhar têm razão e que
aquilo que eu estou a fazer seria um sentido extremamente abrangente para a
palavra música ou então se calhar aquilo que eu estou a fazer já não é mesmo
música, porque falta lá realmente um conjunto de coisas que é comum em toda a
história da música até aos nossos dias. O meu gosto pelo trabalho do som é tal
que acabo por de facto negligenciar a esmagadora maioria das coisas que as
pessoas normalmente consideram música, ou que fazem parte da música. E portanto
não sei se daqui a uns tempos não fará sentido procurar um outro termo.
Hoje em dia essas
questões dos intervalos já não me preocupam tanto, realmente. Se eu tenho algum
cuidado, por exemplo, com as harmonias como falámos há um bocado, em não obter
demasiadas harmonias, acaba por ser, precisamente, para evitar que apareçam
harmonias daquelas que as pessoas dizem: “Ah! Isto é música!” E portanto, até
esse trabalho, é um trabalho de negação da música.