Subtítulo Música de cena para a peça de teatro "O Bobo e a Sua Mulher Esta Noite na Pancomédia"
Data de Composição 2003/Jun · 2003/Oct
Núm. Catálogo Op. 46
Observações
Música para a peça de Botho Strauss
Instrumentação Detalhada
Categoria Musical Outros
Música para teatro
Estreia
Data 2003/Oct/16
Local Teatro Nacional de São João
Localidade Porto
País Portugal
Observações
João Lourenço (encenação)
Notas Sobre a Obra
1> "Abcesso de loucura", o título da partitura, é uma metáfora daquilo que senti após a leitura do texto de Botho Strauss: um texto que canta, num registo de bronze, os encontros e desencontros da vida moderna, a laicização dos costumes, a impessoalidade das relações.
Esta comédia da vida encontra a sua matriz natural num hall de hotel; o lugar por excelência transitório, o lugar de passagem, onde os clientes afectam ares de fria dignidade, e onde os empregados de balcão esperam sorrindo num registo de gesso, recortados em luminescência de néon.
2 > Ora, não há timbre mais próximo à luminescência alvar do néon que o timbre hard-core de uma placa de som de um computador. Esta é a primeira vez que uma partitura minha é executada pela infame, contudo infalível, "Microsoft Symphony Orchestra", uma espécie de orquestra virtual sem consciência sindical.
3 > Os sons seguem-se uns aos outros como baratas tontas, ora frenéticos, ora acutilantes, ora cínicos, ora sinistros, ora oníricos, ora grotescos (aquele timbre de organeta farfisa debruado a vibrato-lesley que aparece na cena das nove candidatas dá-me ganas de rir; esse som de boquinha desdentada projectada em lábios bicudinhos de quelónio, é um achado). Foi, curiosamente, através desses sons próprios de um cenário pós-nuclear (afinal de contas trata-se, muito coincidentemente, de lixo informático norte-americano) que logrei a metáfora sonora apropriada àquele local onde triunfa o carácter transitório do mundo: o Hotel Confidence. Num certo sentido, estes timbres inexpressivos como o olhar vazio de um tubarão, têm qualquer coisa de escatológico. É isso: por vezes sinto nestes sons um
anjo antiquíssimo de espada refulgente em riste. Um anjo rampante do apocalipse.
4> O perigo iminente de fracasso que o desafio de usar um suporte informático coloca. cristaliza-se num par de perguntas: o que é mais
importante? A ideia musical ou o suporte que a veicula? Sobrevive uma obra a um suporte risível. a um veículo inadequado, impróprio? Na minha opinião, comparar a obra ao suporte, em termos de importância, é como comparar o cérebro aos intestinos. Todos estamos de acordo quanto à importância de ambos, mas não há comparação possível. Não há machado que corte a raiz ao pensamento.
Nalguns casos, a proeza da obra varia mesmo na razão directa da periclitância do suporte. Olhemos para Bartolomeu Dias, para Vasco da Gama, para Fernão de Magalhães, evoluindo com desassombro por mares lendários em casquinhas ridículas com nomes de santos.
Que grande obra! Que péssimo suporte! Olhemos para a "Cabeça de Touro" que Picasso adivinhou em 1943 num selim e num guiador de uma biciclete abandonada (e a obra não se esgota ali: projecta-se num tempo imemorial que é o tempo do mito, o tempo da identidade de um povo). Que grande obra! Que péssimo suporte! Olhemos para o "Quarteto para o fim do tempo" de Olivier Messiaen, escrito em 1942 num campo de concentração nazi, estreado em cativeiro com instrumentos estragados, sem algumas cordas, sem algumas chaves, sem algumas teclas. Que grande obra! Que péssimo suporte!
A audácia do pensamento é capaz de tanto que até sabe transformar lixo em símbolos.
5> Não voo tão alto como aqueles mestres. Mas o seu exemplo inspira-me na desdramatização do suporte, e na concentração naquilo que realmente interessa: mal ou bem, a ideia. Finalmente, aquele famoso comentário de Stravinsky a propósito da qualidade de uma dada orquestra: "Que músicos excelentes! Que inexpressivos!", foi um consolo, um bálsamo, que me ajudou a vencer a tarefa de atender num telefone imaginário, em plena canícula (tal como a Jodie e a Jeniffer na última cena), cachos de colcheias, semi-colcheias, fusas e até garrapateias.
Encomenda
Data 2003
Entidade Teatro Nacional de São João / Teatro Aberto