Compositor e investigador doutorando na FCSH/ Kunstuniversität Graz/ Fondazionne Archivio Luigi Nono e membro do Concrète [Lab] Ensemble, João Quinteiro está Em Foco no MIC.PT em março.
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Categoria Musical Solista(s) e Orq./Ens. e/ou Coro/Conjunto Vocal
Instrumentação Sintética vozes e orquestra de câmara
Estreia
Data 2010/Apr/25
Intérpretes
Carla Caramujo (voz), Ângela Alves (voz), Sara Braga Simões (voz), Jorge Vaz de Carvalho (voz), Mário Redondo (voz), Armando Possante (voz);
Otelo Lapa (actor); London Sinfonietta; Pedro Amaral (direcção)
Local The Place
Localidade Londres
País Reino Unido
Texto
Autor do Texto Maria José
Título do Poema ou Texto Salomé
Notas Sobre a Obra
Salomé, de Fernando Pessoa, é um sonho. É a história de um sonho, antes de mais. A protagonista tece o seu sonho, em alta voz, fazendo nascer realidades físicas e temporais. A realidade dos seres e dos factos transforma-se pela alquimia deste sonho:
"Quero que homens morram, que povos sofram, que multidões rujam ou tremam, porque eu tive este sonho."
É assim que a cabeça de um "bandido que matava das aldeias" , separada do seu corpo pela ordem do tetrarca, é tomada por Salomé como simples objecto circunstancial. Pega nela, com as suas mãos, e quer que esta cabeça se torne a de um santo que cria deuses.
Quando os que a rodeiam a chamam à realidade objectiva desta cabeça, Salomé manda-os executar - mata o que contradiz o seu universo onírico. No entanto, este último acaba, de facto, por transformar a realidade passada, presente e futura: depois do sonho, a cabeça não é mais a de um bandido: tornou-se a cabeça de um santo. Salomé como que a purificou, como que a divinizou.
A derradeira etapa seria o aniquilamento físico da própria Salomé. O que acaba por acontecer nas ultimas linhas, quando fala, no vazio da sua ausência, ao João Baptista de antes do seu sonho (porque o santo que ela sonhara e se tornara real deixa de lhe interessar):
"Vou fazer como se estivesse num festim. Vou bailar à roda da tua cabeça até cair sem vida. Vou dançar no funeral das coisas que morreram com a tua vida. Vê, vou fazer um bailado ao luar, para dizer tudo."
* * *
A "mise en abîme" é própria ao labirinto do sonho: Salomé sonha um profeta que sonha um deus. Por outras palavras: Pessoa sonha uma personagem (Salomé) que sonha uma segunda (João Baptista) que sonha um deus. Nas extremidades encontramos o criador e a criatura - é o deus que sonha o poeta ou o poeta que sonha o deus?...
Salomé, de Fernando Pessoa, é portanto a história de um labirinto de sonhos; e a protagonista é ela própria uma figura sonhada. É-o não apenas no sentido metafórico imediato - uma personagem "sonhada" pelo seu autor - mas é a própria incarnação do ideal da mulher, da beleza, da sensualidade sonhada por todos os homens. Paradoxalmente, ela tem perfeita consciência da sua (quase?) inexistência física, da sua realidade puramente alegórica:
"Sou o perfume que, uma vez sonhado, lhes faz aura à imaginação [...] ."
...da mesma forma que poderíamos imaginar que um heterónimo de Pessoa tivesse consciência da sua existência imaterial, da sua substância como sonho de outro:
"Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. [...] Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que não se escreveu."
"Eu sou o que sempre quer partir / E fica sempre [...] / Torna-me humano, ó noite [...] ."
Como personagem, Salomé é portanto um "sonho que sonha", poder-se-ia dizer. O que reforça, de resto, a natureza narcísica própria a qualquer forma de sonho - porque, notemos, ela sonha João Baptista inteiramente à sua própria imagem. Salomé cria santos, como João baptista cria deuses. O sonho é, para ambos, o seu modo de sobreviver numa realidade física que lhes é perpetuamente estranha. São ambos... "cabeças separadas dos seus corpos" - se pensarmos no corpo como realidade tangível e na cabeça como única escapatória possível. Eles sonham para sobreviver, para tentar existir. Poderiam dizer, como Bernardo Soares no Livro do desassossego :
"Sou [uma pessoa] para quem o mundo exterior é uma realidade interior."
* * *
É assim que Pessoa cria uma personagem que cria outra, como um jogo de espelhos que, no fundo, reflecte sempre a sua própria imagem. Porque Pessoa é ele próprio a imagem de uma cabeça sem corpo! Uma cabeça estranha à realidade física que o envolve; uma cabeça que, para sobreviver, brinca a criar deuses, e profetas, e personagens que não cessam, elas próprias, de sonhar outras e criá-las.
"Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas."
Do mesmo modo que João Baptista e o seu deus se tornam uma realidade física pelo sonho de Salomé, também os poetas criados por Pessoa, os seus "heterónimos", ganham uma existência real - tão real que escrevem livros, inventam estilos e literaturas. Como no sonho de Salomé, Álvaro de Campos e Ricardo Reis aparecem na pele de profetas; como no sonho de João Baptista, criam um deus, um deus literário que é uma espécie de poeta ideal, Alberto Caeiro - que, segundo Pessoa, compôs, no seu Guardador de Rebanhos , o melhor de ele próprio, de todo o ele próprio.
Assim, João Baptista é criado à imagem de Salomé que é, ela, desde logo, criada à imagem de Pessoa - três manifestações ou reflexos desta mesma " única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas."
* * *
Como transmitir tudo isto em música?
O conjunto do texto é, desde logo, marcado por uma "sonoridade" extremamente particular, que incita à criação de um universo musical próprio. Procuro construí-lo a partir de uma configuração instrumental assaz singular, com três flautas, duas trompas, três percussionistas, uma harpa, cinco violoncelos (que, em grande parte da peça, tocam no extremo agudo do registo) e um contrabaixo.
No interior desta configuração, cada subgrupo terá uma função própria. As percussões e a harpa formam uma espécie de contexto, sobre o qual pousa o plano da "enunciação" - o plano narrativo cantado pelas Salomés (queria dizer: por Salomé e as suas Aias). Este contexto é como que um pano de fundo, vivo. Por vezes, esse fundo partilha da realidade harmónica da enunciação, outras vezes diverge - como a realidade objectiva em relação ao sonho de Salomé.
Entre o plano da enunciação e aquilo a que chamo o "contexto", situam-se dois graus de convergência: as três flautas seguem as vozes de Salomé, parafraseando-as (delas falaremos mais abaixo); os cinco violoncelos, no extremo agudo (como uma voz que se afasta do seu corpo acústico real), proliferam os elementos do "contexto".
As duas trompas [ cors , em francês, foneticamente equivalente a corps , corpo ou corpos], discretas, neste aniquilar alegórico da realidade física, e o contrabaixo - corpos sem voz, complementando todas estas vozes sem corpo - dão como que uma base harmónica objectiva que sustém todo o edifício musical.
* * *
Quanto às vozes, elas são em número de seis: três sopranos (cantoras com vozes e silhuetas muito semelhantes), e três barítonos.
Um deles canta a breve personagem do Escravo. É a única personagem que desmente o sonho de Salomé, por isso é executado. E porque desmente o sonho de Salomé, porque pertence a uma realidade diferente de toda a realidade da peça, o seu modo de expressão é também absolutamente diverso do de Salomé: onde a personagem feminina prolifera continuamente linhas melódicas incessantes, o escravo é caracterizado por uma escrita absolutamente silábica, seguindo um ritmo "rude", espécie de âncora à realidade física.
Os dois outros barítonos correspondem às personagens do Capitão da guarda, que executa o Escravo, e de Herodes, o pai de Salomé, que intervém no fim, anunciando que a realidade foi transformada pelo sonho. A linha do Capitão será ligeiramente mais melódica que a do Escravo. O Capitão, diz Salomé, é "louro e triste". Pergunto-me por que razão será ele triste. Em relação à observação de Salomé sobre a cor dos seus cabelos, podemos aceitar que a personagem feminina, na sua frieza, na sua realidade puramente alegórica, não desdenha uma apreciação estética sobre o homem de armas. Mas, insisto, por que será ele triste?... Parece-me defensável que a tristeza do Capitão lhe advenha de uma profunda e inevitável melancolia ligada a um amor platónico por Salomé (ela que é "a princesa que um dia [lhe] foi toda a vida" ). Neste sentido, a personagem do Capitão estaria dramaturgicamente próxima da de Narraboth, jovem Capitão da guarda, sírio, em Salome de Wilde/Strauss. Esta última seduz o seu Capitão para que lhe tragam o profeta, que mais tarde ela mandará executar; Salomé de Pessoa seduz o seu Capitão para que lhe mate o escravo. Considero assim esta cena de Salomé com o Capitão como uma cena de sedução e manipulação: a exuberante Salomé diante do Capitão, debilitado por uma incurável melancolia amorosa, fá-lo-á executar uma ordem que possivelmente só o Tetrarca poderia dar.
Quanto ao Tetrarca, que aqui aparece como "pai" (e não padrasto) de Salomé, as suas palavras são veiculadas por uma escrita musical lírica embora sem a exuberância que caracteriza a personagem da filha. Ao contrário desta, aliás, o fundo musical sobre o qual repousará o seu canto, será exclusivamente constituída por cordas - os violoncelos e o contrabaixo que assim, neste ponto da dramaturgia, alteram as suas funções.
As três vozes femininas poderiam representar directamente Salomé e as suas duas aias, mas eu opero uma transformação dramatúrgica: se tudo é sonho neste universo, as duas aias podem ser vistas como extensões do sonho de Salomé. A protagonista fala a duas mulheres, que, inicialmente, apenas lhe respondem com meditações sobre a natureza do sonho e a sua oportunidade. Meditações que são como que um magro contraponto racional ao onirismo de Salomé.
Na minha leitura musical do texto, a voz de Salomé é cantada pelo conjunto das três sopranos, sem que consigamos distinguir quem canta o quê, qual corpo enuncia qual parte do sonho. Por isso as três cantoras devem ter vozes que se confundam entre elas, estando vestidas e maquilhadas de modo a que se possam distinguir o menos possível.
Musicalmente, a composição desta linha nevrálgica, inteiramente una mas, ao mesmo tempo, inteiramente múltipla, explora todos os graus intermédios entre a monodia mais elementar e a polifonia mais arborescente. Esta voz, una e múltipla, cantada pelas três sopranos, sombreada pelas três flautas que a seguem e a "desfocam", constitui o elemento fundamental de toda esta dramaturgia musical, de todo este universo sonoro.
(texto escrito como projecto, anterior à composição da ópera)
por Pedro Amaral