Entrevista

Entrevista a Amílcar Vasques Dias / Interview with Amílcar Vasques Dias
2003/Jul/29
Versão Áudio | Versão Texto
Registo Videográfico
Edição
Observações
Acesso
1
Untitled Document
ENTREVISTA A AMÍLCAR VASQUES DIAS (versão integral)

Formação e primeiro percurso

A minha formação inicial foi no seminário. Aí pude aprender piano e harmónio, um instrumento utilizado nas cerimónias litúrgicas. Posteriormente - e estou a falar no meu período de Filosofia, dos 16, 18 anos, e depois, no de Teologia - comecei uma formação tradicional de escrita harmónica e recebi a influência concreta do Cónego Dr. Manuel Faria (a quem dediquei a peça Pranto, ainda antes de regressar da Holanda). Aos 20 ou 21 anos, apesar de algumas hesitações, a minha vida estava já demasiado apegada à música para poder prescindir dela... E então fui para o Conservatório do Porto onde, antes do serviço militar, fiz os primeiros anos curriculares do curso de piano. Tudo o que eu sabia até essa data era "não oficial". Tirei então o diploma de piano depois de ter concluído o serviço militar, em 1974, e isso coincidiu também com o 25 de Abril e com o desejo de uma certa liberdade vivida noutras paragens. E então, com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, fui para a Holanda, onde me foi possível prolongar a estadia com uma outra bolsa da Secretaria de Estado da Cultura (SEC), até me estabelecer de forma permanente. Fiquei lá 14 anos. Estive no conservatório mesmo depois de ter começado a trabalhar. Fui professor efectivo na Escola de Música de Roterdão, durante 8 anos. Vivi em várias cidades da Holanda: em Nijmegen, na fronteira da Alemanha, em Haia, em Roterdão e em Amesterdão nos dois últimos anos, antes de regressar.

A estadia na Holanda constituiu um forte impulso para a composição. Como a recorda, passados já alguns anos?

De facto é um ambiente muito estimulante, passa-se de tudo em todo o lado. O facto de, a pouco e pouco, nos envolverem no sistema de encomendas também dá um certo estímulo... E depois, quanto aos professores que tive, tive a sorte de não serem pessoas com visões curtas. Tudo era possível, houvesse ou não influências da música jazz, da música rock, do serialismo, da música de rua, da música de manifesto (como no caso de Louis Andriessen) ou do minimalismo. Fosse o que fosse, o que importava é que fosse uma força de expressão pensada como um objectivo e que tivesse pés e assento, que tivesse firmeza. O meu professor de electroacústica era um conhecido músico de jazz na Holanda, era saxofonista. Quando eu cheguei, em 1974, pediram-me para orquestrar a Grândola Vila Morena. Foi o meu primeiro trabalho de orquestração na Holanda - e ainda hoje recebo direitos de "arranjador" resultantes desse trabalho! Uma obra que surgiu na sequência desse impulso e que apresentei agora - e que não é conhecida em Portugal por não ser facilmente realizável - chama-se Ser Rana. É uma peça para dez acordeões, quarteto de cordas e vibrafone. Um compositor que tinha então um projecto de encomendas propôs-me uma peça destinada a um grupo de acordeonistas que se chamava D'Accord Ensemble. O grupo tinha uma qualidade incrível! Entusiasmou-me o facto de ter de arranjar maneira de conhecer o acordeão, de o fundir com um quarteto de cordas e com uma percussão à escolha - e eu escolhi o vibrafone. Entretanto, regressei a Portugal. O título da peça, Ser Rana, deve-se ao coaxar de milhares de rãs do rio Vouga e do rio Águeda, entre Março e Julho, 24 horas por dia, mesmo em frente da casa onde então vivia. Há registos de som de acordeão que têm parâmetros de semelhança com o som das rãs - e a minha ideia foi essa, fundir as cordas, o acordeão, e dar à rã, ao coaxar da rã, a categoria de me encaminhar para uma peça que começa com uma energia muito forte e depois termina a pouco e pouco. É um decrescendo... Ao fim de uns meses de contínuo coaxar de rãs deseja-se o silêncio... Silêncio que agora tenho aqui, o que traz outras influências à minha maneira de compor, e também à minha maneira de viver e de apreciar as coisas.

Como descreveria esses anos de actividade artística e pedagógica?

Os anos de actividade artística e pedagógica passados na Holanda foram excepcionais. Passaram pelas minhas mãos centenas de alunos de todas as classes sociais e etárias, desde crianças de 10 anos até adultos de 60 - pessoas que já tocavam piano e que quiseram retomar a aprendizagem de novo. Trabalhei com miúdos que não faziam ideia do que era uma nota de música e me apareciam a tocar piano com três dedos de cada mão. Essa experiência obrigou-me a repensar tudo o que tinha aprendido relativamente ao ensino do piano, quer dissesse respeito a miúdos de 17 ou 18 anos que tocavam música para bailes, ou a miúdos de origem indonésia ou de religião muçulmana que tinham outra abordagem cultural da música. Da observação desses miúdos surgiu a percepção do que havia de lógico, de espontâneo, de intuitivo nessa massa de alunos, sobretudo nos mais jovens. Fui obrigado a pensar o ensino da música, a pensar o ensino de "que música", de "quantas músicas"... Eu estava incumbido não só do piano clássico mas também do piano "ligeiro". Assim se acentuou um bocadinho mais toda aquela abertura de vistas dos meus professores, sobretudo do Louis Andriessen, para quem, de facto, "tudo é possível, tudo depende de ti, do que fazes com isso".

Tive que estudar e tive que dar um certo swing ao que estava a fazer, que não era música clássica. E o facto de ouvir outras pessoas tocar também me deu uma oportunidade de sentir aquilo de que gostava, ou não, e de o interiorizar. Ao fim de algum tempo, comecei a sentir que se incorporaram elementos novos que passaram a ser parte integrante de mim e da atitude de produzir sons. Assim, ao fim de meia dúzia de anos, a minha maneira de tocar piano ou de compor tem a ver com uma certa atitude que já não é uma atitude "clássica", mas uma mistura de diferentes atitudes que têm a ver com diferentes géneros musicais. De facto, tudo isto é uma progressão - mas a raiz, e isso é que é interessante, está sempre lá. Os anos de seminário, com o estudo da linha gregoriana, da simplicidade, da austeridade, do uníssono, da não polifonia - tudo isso está presente na minha música. Tenho depois uma parte proveniente da formação harmónica e romântica, de harmonia gorda e recheada, que eu tentei conciliar com o despojamento da linha melódica gregoriana. A tendência que eu tinha para a grande harmonia foi-se rarefazendo a pouco e pouco, e o que encontro hoje, sobretudo nos últimos quatro anos - veja-se, por exemplo, o meu projecto 12 Nocturnos em Teu Nome - é a simplicidade. É a simplicidade porque de facto é no silêncio que eu vivo quase 24 horas por dia, no despojamento, na magreza da paisagem.

Há bocadinho, quando vinha de carro, olhei S. Miguel de Machede do lado esquerdo. Agora, está tudo queimado e seco, mas, lá no cimo do monte, há uma árvore, uma azinheira - isso fez-me pensar no que é o contraponto. Contraponto é aquela azinheira em relação a toda uma mancha incrível, seca. E tudo isso tem a ver com o meu passado, com a simplicidade duma linha, com uma força e uma expressividade fortíssimas, com o canto gregoriano. Também se espelha no passado a minha tendência para escrever para coros: é que sempre cantei em grupos corais, no seminário, desde os meus 12 anos. Em muitas das partituras do meu professor, o Dr. Manuel Faria, as partes que se destinavam a ser cantadas no coro eram copiadas por mim, o que constituía também uma aprendizagem fora das aulas. Tudo isso, a pouco e pouco, e depois a passagem pela Holanda, veio a reflectir-se naquilo em que eu actualmente ando envolvido. Rentabilizo aquilo que é mais simples, numa abordagem menos tradicional, menos clássica, dos conceitos tradicionais da composição, que são a melodia e a harmonia, mas que são também planos sonoros, que são contraponto - isso interiorizado e visto à maneira da minha vivência actual, sobretudo a partir da minha vinda aqui para o Alentejo. Estou a falar de 1996 até agora, já lá vão mais de oito anos.

Como tece a integração dessas categorias musicais e desses conceitos?

Quando se vive no Alentejo, 24 horas após 24 horas, a primeira coisa que se sente na pele é o silêncio - que tem sons. Os sons do silêncio são totalmente diferentes dos sons de algum silêncio provável em Lisboa, por exemplo. Aqui um som sente-se como um som, mas sei que os sons longínquos ou menos longínquos de um cão que ladra, ou de um chocalho de um borrego que está preso algures aqui a uns metros, naquele monte, ou o som dos grilos, que é um som constante, ou um som mais longínquo, que é o som das rãs ou sapos, tudo isso é uma envolvente de um silêncio constante. Eu tento que esteja presente a ideia de silêncio, e que possa ser interiorizada por quem ouve. O percurso que eu faço mais vezes é entre o computador e o piano, esteja eu a trabalhar numa peça para orquestra ou numa peça para piano. E quase não há rascunhos.

Imagine-se que selecciono um acorde arpejado (mi-sol-si), mais um desenho, uma notinha que é o dó - e estou a referir-me ao acorde inicial do 1º Nocturno, que se chama Geografia de Rebeldes. Como é que eu rentabilizo um material tão banal, tão simples, tão tonal? E a questão não está no tonal ou não, de maneira que ele tenha uma presença expressiva para que seja interessante o desenvolvimento desse acorde... Ele pode desenvolver-se sob o ponto de vista da dinâmica, por exemplo, do registo em que é tocado. Tudo isso são maneiras que eu encontro de rentabilizar o que é simples e o que é de facto despojado de outras associações. O principal não é ouvir ou pensar "oiço algo menor", o principal é conseguir atribuir a força expressiva que eu tento que esse acorde tenha. Da mesma maneira que num ambiente em que não se passa nada, no próprio seio do silêncio, o que se passar tem uma força incrível, porque se ouve o som desse silêncio. Às vezes, um ou dois sons que aparecem como pontos fulcrais de uma peça, se forem interessantes, devem aparecer e ser ouvidos repetidas vezes. E não estão sozinhos, estão envolvidos por outros sons que aparecem, pela sua fortaleza, para fazer contraponto. Da mesma maneira que, se olhares ali para cima, o que se vê são manchas, a maior parte delas queimadas, secas, amarelas. É o Alentejo dourado, durante três ou quatro meses, até fins de Setembro. Mas toda essa imagem que nós vemos agora, tudo o que existe ali, é essa mancha que domina, que é seca, e é despojada de qualquer interesse visual. Tudo o que existe, pontualmente, neste caso azinheiras, tem uma força incrível. E depois, há tudo o que tem a ver com a própria geografia do terreno e que a mim se me afigura como contrapontos, polifonias e inclinações. Eu vejo e comparo esta evolução ao longo de todo o ano.

Trabalha num universo tonal?

Sim, linguagem tonal. A canção sobre o poema de Manuel Alegre Ir a Évora descobrir o branco não tem uma maior carga expressiva pelo facto de ser ou deixar de ser tonal. Toda a conotação com a tonalidade é de outra ordem, e está lá, de facto, essa conotação. Eu acredito que é possível fazer coisas diferentes com elementos tonais - até nisso a influência do Louis Andriessen me sossegou, me tranquilizou. Quer dizer, em 1974, se estivesse cá em Portugal, no ambiente e mentalidade que rodeava o ensino oficial da música em Portugal, não teria tido coragem para fazer um arranjo da Grândola Vila Morena, ou do Canto Alentejano... Para alguém o poder fazer teria que possuir um background, como é o caso do Lopes-Graça. Mas, infelizmente, eu não tinha sido educado para isso. Portanto, foi só na Holanda que eu descobri a riqueza melódica e harmónica de alguma música tradicional portuguesa, influenciado pela atitude aberta, criativa e inventiva de alguns professores e pelo ambiente... Durante os oito anos em que fui professor em Roterdão tive alunos das mais variadas origens culturais: filhos de pais portugueses (emigrantes), filhos de pais cabo-verdianos (falando português), filhos de ex-coloniais da Indonésia, pessoas de religiões diferentes, estratos sociais diferentes, culturas diferentes. Isso ensinou-me a relativizar um bocadinho a nossa cultura. A experiência com essas pessoas, a observação da sua consciência cultural, deu-me a coragem de fazer o mesmo. Quando regressei a Portugal, felizmente já tinha perdido muitos desses pruridos de fazer ou não arranjos de música ou compor sobre poesia do José Afonso. Foi a oportunidade de crescer em várias direcções.

Como funciona o seu pensamento como compositor? Quais as técnicas que emprega?


Eu oiço muito o que quero fazer. Trabalho muito ao piano e experimento muitos materiais em constante interacção com a minha vontade de organizar algo para exprimir algo. Por exemplo, se eu pegar em três notas, que não têm nem deixam de ter mais ou menos interesse por serem tocadas sucessivamente ou porque fazem um intervalo de terceira menor... Eu estou ao piano e estou a experimentar a força que têm estas três notas, ascendente ou descendentemente, e não me interessa estar a dizer que é uma terceira menor, já que estou a fazer música tonal. Não, o que me interessa são estas notas, porque são elas que me caíram debaixo dos dedos. Provavelmente, já ando a pensar nelas há vários dias, enquanto ando a regar, enquanto ando a ver como é que estão os frutos, enquanto estou a dar de comer aos meus cães, ou enquanto estou a olhar lá para fora - estou sempre a digerir pequenos materiais muito simples. Quando venho ao piano, pego outra vez nestas três notinhas e coloco-as em oitavas diferentes. O que me interessa é que estas três notas, com o seu timbre e toda a ressonância que o piano tem ou que o intérprete lhes vai conferir, realizam certas alturas, intensidades, registos e timbres específicos, dentro de um movimento e de uma certa velocidade, dentro de um certo ritmo e duma certa duração. Estou a fazer uma linha que já está fora dos cânones de uma linha melódica tradicional, porque está a viver com outros parâmetros da composição, e eu sei que agora preciso de um contraponto. Mas eu não vou fazer um contraponto que seja óbvio no sentido destas três notas - o meu contraponto será talvez do mesmo género se eu repetisse estas três notas em três oitavas diferentes, ascendente ou descendentemente (eu prefiro descendentemente). Já decidi, a nota que vou escolher para fazer este contraponto terá características diferentes destas a nível de registo, a nível de intensidade e a nível de timbre e duração. É a nota que eu a pouco e pouco irei justificar para mim, porque quase a descobri intuitivamente.

É talvez esta mistura entre o que é intuitivo e o que é exploratório que me vai dar os materiais, e porventura não todos, das minhas peças. Eu nunca fui de compor peças longas - a mais longa tem cerca de treze minutos, e é para electroacústica, piano e flauta. Digamos que o ideal se situa entre os seis e os dez minutos - as peças que andam à volta de dois ou três minutos fazem parte de ciclos. Se pensar, por exemplo, na peça sobre as plantas, de que fazem parte o Tojo, a Glicínia, os Cardos, e várias outras peças feitas, são peças à volta dos cinco minutos. Projectos mais longos, como sejam os 12 Nocturnos, situam-se nos trinta minutos de música. O projecto Lume de Chão é constituído por vinte e quatro memórias - ou momentos, ou prelúdios, ou nocturnos. Eu chamo-lhes mais nocturnos, porque de facto trabalho de preferência de noite, e isso é real - talvez porque ainda há mais silêncio. Mas são peças de pequena duração, em que eu tenho uma ideia para exprimir naquele tempo e depois não me interessa estar a dizer mais. A expressão de alguma coisa acaba por aparecer ao fim de semanas e semanas de duvidar, de insistir e de mudar. Tenho que concluir que a peça está a exprimir a lógica que eu encontrei para ela própria.

Na Geografia de Rebeldes, a harmonia acaba por ser tonal e funcional - mas não tonalmente. Acaba por ser funcional do ponto de vista tímbrico - do contraste, do contraponto, sob o ponto de vista de outro som, depois de toda a introdução feita à base, praticamente, de um acorde. A ideia, aqui, também estava ligada a uma imagem, ou a um texto que faz associar imagens...

Relação entre a música, o texto e a poesia

Trabalhei alguma poesia sobre o Alentejo, como é o caso de Manuel Alegre, de Manuel da Fonseca ou de José Saramago. Acho que me sinto actualmente próximo das realidades transmitidas por essa poesia, por essa organização de palavras e sons. Se estou a pensar no verso "irei a Évora descobrir o branco", eu sei o que é, tenho a vivência disso. Não quero dizer que quando escrevi Demain, dès l'Aube, sobre poema de Victor Hugo, não tivesse sido honesto e sincero. Mas, com a Gabriela Llansol, houve uma grande envolvência com este local e com os restantes participantes do projecto - o pianista e o actor. Apesar de se tratar de doze excertos de doze livros diferentes, tivemos uma experiência comum, confrontando a ideia de Gabriela Llansol de 12 Nocturnos em Teu Nome - título dado por ela - com o enquadramento musical que eu propus para um projecto concebido em doze segmentos. Eu leio livros desse tipo, de prosa forte, íntima, críptica, autobiográfica - poesia ou prosa, quase não sei, mas é sempre muito difícil de penetrar. E há sempre uma ideia, que é a primeira, e que muitas vezes decorre mesmo do próprio título... A rebeldia, para mim, foi pegar numa coisa ultra-simples e fazer dela uma peça de música interessante para ser ouvida.

Que missão tem a intuição na composição de Iannis Xenakis? Tem uma missão essencial, pois apesar de todos os seus cálculos, é justamente através da intuição que ele decide o que é interessante ou não. Essa atitude, de que se falou num dos seus workshops que frequentei, fez-me pensar que eu não tenho que ir buscar muita coisa se sei que a minha intuição tem muita coisa para dar. E uma das coisas que está ligada à minha intuição é a forma como funciono ao compor, que é essencialmente visual. Eu visualizo muita coisa que ouço. Um dos meus professores dizia que eu tenho uma maneira de compor fílmica, que componho como quem faz um filme. Eu acredito que, em mim, o facto de estar a compor me faz normalmente, intuitivamente e instintivamente funcionar com imagens - e essa imagem está ligada a uma memória de um afecto ou à expressão de alguma coisa. Pode ser expressão de ternura, expressão de espanto, de paz, de medo... Tenho aqui atrás de mim uma fotografia de uma scalaris, que é uma cobra muito comum aqui. Fiz, aliás, uma peça que se chama justamente Elaphe Scalaris. Considero estas scalaris monumentos musicais, porque sei que têm música. Toda aquela organização das escamas sugere-me linhas, da mesma maneira que olhando ali para um monte, daqui a uns oito meses, quando me começarem a aparecer linhas ou faixas de lírios roxos, começo a ver que o monte tem música. Ainda não sei como é que hei-de transmitir isto, como é que hei-de organizar estas imagens em música. Portanto, o facto de eu gostar de me ligar à palavra ajuda-me a enriquecer a minha expressão musical. O facto de eu me ligar à imagem desempenha a mesma função.

Qual será o seu próximo projecto?


Sei que está ligado ao ciclo das árvores e dos frutos e vai ser uma peça multimédia. Ando a fotografar todas as árvores de fruto que estão aqui neste monte, desde finais de Agosto até fins de Novembro. Eu gostaria de partilhar esta observação com alguém que nunca terá oportunidade de ver como é que desabrocha ou como é que rebenta uma macieira em Março ou Abril. E como depois vem a flor, que vai dar o fruto. Da mesma maneira, faço uma peça que tem a ver com as primeiras chuvas de Setembro e com a actividade dos anfíbios, pegando em dezenas de bugalhos e pintando-os de verde e de amarelo, que são as cores que encontro nos sapos e rãs. Ponho-os todos dentro do piano e faço um jogo com a projecção de uma centena de imagens - imagens que chamam a atenção para o respeito pela vida, e por isso são pedagógicas. O seu interesse reside também na manifestação de energia do intérprete, ao piano, por exemplo. O pensamento sobre a música tem a ver com toda esta vida, com a energia e com a aprendizagem baseada na observação.

Leva-me sempre muito tempo a digerir as coisas, duvido sempre muito tempo, e portanto vou compondo aos bocadinhos. Isto sempre numa relação próxima e de interacção com este meu espaço aqui. Nunca estou mais de uma hora aí sentado a compor, à noite. Estou sempre a sair, a entrar, a ver, a pegar numa folha, a ver os seus nervos... e a ver que isto tem música! Porquê? Porque é diferente. E a sentir as coisas, o tacto das coisas. Tudo isto está numa caldeirada constante, que tem a ver com a sensibilidade, com a ternura, com a gratidão - gratidão em sentido muito lato, gratidão com aquilo que nos envolve, com as árvores que só pedem água para viver. Este processo faz parte deste meu fazer das coisas, da minha sensibilidade...