Em foco

Miguel Azguime


É pela capacidade criativa que construímos e inventamos o nosso futuro.
A criação em geral e a artística em particular são, pela inovação e descobrimento que motivam, a chave da capacidade de evolução da humanidade. E considero pois da maior importância, e mesmo vital, que a Arte, em sociedade, e fora dos interesses económicos e de mercado possa ser desenvolvida no sentido de assegurar essa evolução para o bem de todos à escala global.
O seu papel é tanto mais relevante no ambiente de crise profunda de ordem filosófica e civilizacional que hoje atravessamos (a montante da crise económica e bem mais grave do que ela) e julgo até que a Arte constitui uma ponte crucial e privilegiada para ultrapassar esta crise filosófica que a humanidade atravessa pois constitui-se como um verdadeiro modelo de pensamento civilizacional.
[1]


Miguel Azguime nasceu em 1960 em Lisboa. Distinguido pela sua versatilidade e por possuir um vasto leque de recursos dentro do idioma contemporâneo, o seu universo musical reflecte uma abordagem que se baseia nas suas capacidades multifacetadas enquanto compositor, performer e poeta. Esta sua tridimensionalidade desafia concomitantemente uma certa visão quase mística da arte.
Os inícios do seu percurso musical são marcados pela participação em várias formações de jazz e improvisação, pelos estudos de flauta barroca e de percussão (com Catarina Latino e Gaston Sylvestre) e também pela participação em vários cursos de composição, por exemplo nos Cursos de Verão de Darmstadt; tendo também frequentado seminários com Emmanuel Nunes e estudado a título privado com Tristan Murail em Paris.

Um momento decisivo do seu percurso como criador ocorreu em 1982, e nasceu do contacto com o flautista Pierre-Yves Artaud (professor de Paula Azguime), que desenvolveu consideravelmente novas técnicas instrumentais na flauta e que activamente propiciou a composição de novas obras para flauta em colaboração estreita com os compositores. Este tipo de abordagem marcou fortemente o Miso Ensemble, um duo de flauta e percussão, criado por Paula e Miguel Azguime em 1985, que desde o início se distinguiu pela procura de uma outra forma de fazer música, pela procura de um outro som e timbre, de um outro tipo de organização sonora, através do uso de amplificação e de meios electrónicos. O Miso Ensemble construiu um percurso singular no panorama musical português que se evidencia pela originalidade dos programas apresentados em concerto e pela diversidade das obras criadas para o duo. Segundo as palavras de Jorge Lima Barreto “o Miso Ensemble figura entre os mais representativos grupos da Nova Música Portuguesa. Compositores-intérpretes com uma filosofia muito própria, uma actividade ímpar e prolífica, que inclui participações nalguns dos mais importantes eventos de música contemporânea; tendo creditado uma ampla aceitação pública e por parte da crítica exigente.”[2] Além da sua criação, a filosofia muito própria do duo reflecte-se também no seu nome: MISO, um ingrediente tradicional da culinária japonesa feito a partir da fermentação de soja com sal, que vai ao encontro de um ideal de vida, pessoal e colectiva. O MISO produzido segundo os processos tradicionais japoneses tem uma fermentação lenta que para Miguel Azguime se materializa como um símbolo de preserverância, de amadurecimento contínuo, de busca de um equilíbrio; simbolismo que se propagou a uma série diferenciada de iniciativas, que desde cedo e até hoje Miguel Azguime, em conjunto com Paula Azguime, têm vindo a edificar.

A partir dos anos 90, Paula e Miguel Azguime enquanto dupla artística, começaram a desenvolver a sua actividade também no estrangeiro, com colaborações várias com outros intérpretes; altura também em que Miguel Azguime iniciou uma transição na escrita composicional, de uma forma mais livre no seio do Miso Ensemble para uma forma mais rigorosa de escrita para outros músicos e outras formações, com a utilização quase sistemática de meios electrónicos em tempo real. Conjuntura esta que propiciou a afirmação de Miguel Azguime enquanto compositor.
Deste período destacam-se peças como "Une Aile Pourvu qu'Elle Soit du Cygne" para piano de 1993; "Yuan Zhi Yuan" de 1997, encomenda da Fundação Oriente para 2 cantores solistas, grupo instrumental tradicional chinês e coro, obra que reflecte o interesse particular de Miguel Azguime pela filosofia milenar chinesa; "Para Lá dos Mares" conjunto de peças electroacústicas composta para o Pavilhão do Conhecimento dos Mares da Expo 98; "De l'Étant qui le Nie" para piano e electrónica em tempo real de 1998, encomenda do Ministério da Cultura.

Paralelamente a um gradual reconhecimento nacional e internacional das suas obras, apresentadas nos festivais dedicados à criação musical e interpretadas por ensembles, solistas e maestros de relevância em Portugal e pelo mundo inteiro[3], Miguel Azguime permanece dedicado à promoção e difusão da música contemporânea e em particular de compositores portugueses tanto como fundador da Miso Music Portugal, como director artístico da editora independente Miso Records e do Festival Música Viva desde 1992, assim como fundador do Miso Studio e do Sond’Ar-te Electric Ensemble.
Em 1995 desenvolveu também a Orquestra de Altifalantes, um projecto sem precedentes no panorama musical português e dedicado exclusivamente à interpretação da música electroacústica. Enquanto investigador tem trabalhado no âmbito do desenvolvimento da música por computador em tempo real, dando preleções e cursos neste campo.
Em 2003, juntamente com Paula Azguime, fundou o Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa, uma plataforma de comunicação e base de dados online com informação detalhada sobre o património musical português do presente para o passado, incluindo documentos, edição e distribuição de partituras; projecto de utilidade pública que reflecte uma preocupação com a perenidade e o conhecimento do património musical português e que afirma ao mesmo tempo a defesa perseverante e interventiva da criação musical contemporânea e subjacentemente uma reflexão sobre o papel da Arte e do criador na nossa sociedade. Como nos diz Miguel Azguime: “O poder que os artistas têm ao afirmar a sua individualidade é por definição um acto político. Não é possível calar um artista. Houve uns que foram presos e queimados, mas não há maneira de os calar. E no fundo é-se sempre veículo de uma corrente de pensamento. E essa corrente de pensamento pode ser amordaçada, pode ser ignorada, mas (...) não é possível acabar com ela. (...) O trabalho dos artistas do passado tem uma força civilizacional absolutamente considerável. Nesse sentido eu acho que os artistas têm um poder enorme.”[4]

Em 2006 Miguel Azguime foi compositor residente da DAAD em Berlim, contexto que propiciou a criação e produção da ópera multimédia "Itinerário do Sal", e que constitui, de certo modo, o culminar de um processo de integração entre escrita poética e escrita musical e que conduziu também a uma nova forma de colaboração criativa no seio do Miso Ensemble, com o desenvolvimento, implementação e consolidação de processos criativos conjuntos, iniciados com Paula Azguime para as obras "Yuan Zhi Yuan" e "O Centro do Excêntrico do Centro do Mundo" de 2002 que envolvem, encenação e imagem; e mais recentemente, a ópera infantil "A Menina Gotinha de Água", sobre o poema original de Papiniano Carlos composta para o Coro Infanto-Juvenil da Universidade de Lisboa em 2010 e a nova ópera "A Laugh to Cry" cuja ante-estreia decorrerá no Teatro Municipal São Luiz de Lisboa, a 17 e 18 de Julho. A estreia mundial da ópera terá lugar no dia 27 de Setembro durante o Festival Internacional de Música Contemporânea Outono de Varsóvia seguida de uma digressão à Suécia em Outubro. A ópera foi encomendada pelo Festival Internacional de Música Contemporânea Outono de Varsóvia com o apoio da Ernst von Siemens Music Foundation.

Linguagem e Estética

Eu acho que o que eu faço e como faço está realmente próximo de um trabalho laboratorial, não por me encontrar no meio de máquinas mas por viver no tempo em que vivo e o que esse tempo em termos de conhecimento específico me proporciona. Ou seja, não é a relação com a tecnologia por si só que me interessa mas sim a compreensão que posso ter do fenómeno sonoro, que de alguma maneira herdei dos outros mas que também me é própria.[5]

No panorama musical contemporâneo, a música de Miguel Azguime inscreve-se simultaneamente na herança do serialismo e do espectralismo, assumindo o conhecimento científico do fenómeno sonoro, da sua percepção e da sua comunicação, e as consequentes aplicações tecnológicas, como paradigma para a prática composicional. Neste contexto a peça "De l'Étant qui le Nie" (1997-98) põe em perspectiva uma viagem através de várias abordagens técnicas e estéticas – do pós-serialismo até ao espectralismo – mas também o desenvolvimento formal baseado no fluxo dramático, que desde então Miguel Azguime tem sucessivamente incorporado na sua música. Ao mesmo tempo "Derrière Son Double", peça composta em 2001, explora a noção de duplo, neste caso duplo harmónico e rítmico de um determinado material, e também a oposição ou complementaridade entre som instrumental acústico e som electrónico.

Miguel Azguime compõe música para diversas formações – instrumentais e / ou vocais, com ou sem electrónica, música electroacústica sobre suporte, poesia sonora, assim como música para exposições, instalações sonoras, teatro electroacústico, dança e cinema. Tanto o seu percurso como o seu background e as suas influências têm raízes bastante ecléticas, como afirma o próprio compositor: “O meu background, não obstante a minha formação ser a chamada música clássica, foi também Jannis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Grateful Dead, the Beatles, Rolling Stones, aquilo que ouvia quando tinha onze, doze, treze anos e depois a seguir veio o rock sinfónico dos anos setenta que me marcou imenso, com grupos que ainda hoje oiço e nos quais reconheço qualidades extraordinárias (...).”[6]

O estilo composicional de Miguel Azguime assenta numa linguagem de rigor estrutural, por um lado, e liberdade formal, por outro. A expressividade multiforme e irradiante obtida através da riqueza tímbrica que caracteriza a sua escrita e também a claridade no desenvolvimento das ideias assumem na sua música um papel unificador. A sua obra situa-se frequentemente no cruzamento da escrita instrumental e electroacústica, duas práticas e entendimentos originalmente antagónicos, mas que neste compositor encontram uma fascinante complementaridade.[7] Enfatiza Miguel Azguime: “Por um lado, estamos perante uma nova forma de pensar e de fazer música (...), por outro, estamos perante um novo instrumentarium tecnológico com infinitas possibilidades. (...) Gosto de escrever a partir do vazio à espera da emergência de uma ideia breve, normalmente um qualquer material musical ou objecto sonoro, que se revele interessante e que tenha pertinência de conter em si próprio o embrião do seu desenvolvimento (...). Numa mesma obra são frequentemente utilizados um ou mais modelos consoante os casos, e, por conseguinte, daí depende o percurso formal da obra.”[8]
Ao mesmo tempo Miguel Azguime invoca o experimentalismo e a pesquisa como pressupostos para a reinvenção e descoberta, sublinhando, neste sentido, a importância da postura de John Cage: “Entendo o experimentalismo não como uma corrente, mas como uma postura de pesquisa e de investigação artística, independente de quaisquer estéticas particulares, preconizando riscos e desbravando caminho. (...) John Cage foi fundamental justamente pela sua postura, que certamente teve maior influência que a sua própria música. A transversalidade do seu pensamento permeou todas as áreas artísticas e hoje em dia, em que por via da tecnologia essa pluridisciplinaridade artística tem cada vez maior expressão, a figura de John Cage passou a ser, e com razão, ainda mais emblemática.”[9]

As conexões entre as várias atividades exercidas por Miguel Azguime, enquanto compositor, poeta e performer deram origem ao seu interesse pelo domínio que o próprio artista designa por “palavra-sentido / palavra-som”, na procura de um sentido e equilíbrio entre a palavra e a música, ou seja, numa tentativa de aproximação entre a componente semântica e metafórica da palavra e os seus parâmetros sonoros. A ópera multimédia "Itinerário do Sal" (detentora do prémio Music Theatre NOW da UNESCO), com música, texto e interpretação de Miguel Azguime e encenação vídeo de Paula Azguime, inserindo-se na continuidade do trabalho desenvolvido no seio do Miso Ensemble propõe e sustenta uma nova forma de pensar a ópera, de desenvolver uma nova dramaturgia, num conceito de nova era para a ópera denominado por New Op-Era. "Itinerário do Sal" é a concretização de um trabalho de criação sobre a escrita – sobre a escrita musical, sobre a escrita poética, sobre a escrita gestual do músico / actor e da sua própria imagem, sobre a escrita gráfica, onde a voz é o prolongamento do corpo e do pensamento do poeta.

Não só na ópera mas também na música de câmara ou electroacústica a predileção de Miguel Azguime no que diz respeito às relações da “palavra-sentido e da palavra-som” tem-se tornado cada vez mais pertinente. Alguns dos exemplos mais recentes desta abordagem são as peças "Conver(say)tions" de 2011, composta para o California EAR Unit, e "Mes Ententes pour 4 personnages" de 2012, escrita em resposta a uma encomenda do QUASAR – Quatuor de Saxofones do Canadá, que coloca a música no contexto de um poema (o primeiro elemento da composição) que seduz a forma e orienta o seu desenvolvimento no tempo. A voz leva os quatro saxofones pelo verbo determinado pelos espectros da fonética, cujo sentido nos é dado através da dramaturgia da composição. Esta obra baseia-se no duplo sentido da palavra “acordo” enquanto escuta e “acordo” enquanto conciliação dramatúrgica entre os quatro instrumentos. Escusado será dizer que “acordo” e “desacordo” são, evidentemente, categorias concorrentes e complementares.

O mais recente projecto do Miso Ensemble é a ópera multimédia “A Laugh to Cry”, com textos e música de Miguel Azguime e encenação de Paula Azguime, que se desenvolve na orla entre o sonho e a realidade, entre o visível e o invisível, explorando algumas das preocupações essenciais do ser humano, transportadas para o nosso tempo no contexto do mundo globalizado e formalizando-se numa reflexão sobre o poder hegemónico do mercado, do mito do desenvolvimento e da consequente destruição da memória, devastação da Terra e o próprio colapso da humanidade. Desenvolvendo as ideias materializadas em "Itinerário do Sal", "A Laugh to Cry" reflecte a pesquisa de Miguel Azguime sobre a análise da voz, re-síntese e processamento, visando a criação de um continuum dinâmico entre timbre, harmonia e ritmo.

A arte que se faz hoje e agora é uma aposta para o futuro. Não se sabe para que serve nem onde nos conduz, mas ela, tal como a investigação científica são os únicos garantes de futuro e de identidade. Um caminho que inexoravelmente os verdadeiros artistas têm de desbravar e percorrer numa extraordinária e imensa generosidade. É por isso preciso lutar por eles, defendê-los.[10]

Site oficial de Miguel Azguime: azguime.net

Miguel Azguime no YouTube, Vimeo e SoundCloud

"Mes Ententes pour 4 perssonages" (2012)
QUASAR – Quatuor de Saxophones

"A Menina Gotinha de Água" (2010)
Coro Infanto-Juvenil da Universidade de Lisboa
Ágata Mandillo – narradora
Erica Mandillo – maestrina

"No Oculto Profuso" 2009
Nuno Pinto – clarinete

"Itinerário do Sal" (2006)

"Derrière Son Double"
Sond’Ar-te Electric Ensemble
Pedro Amaral – maestro

Canal de Miguel Azguime no VIMEO

Miguel Azguime no SoundCloud

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1 Fragmento do discurso de Miguel Azguime sobre “Arte, Tecnologia e o Futuro de Portugal” apresentado no contexto do Warm Up do Festival In, Lisboa, 30 de Maio de 2013
2 Jorge Lima Barreto no booklet do CD da Miso Records, “Miso Ensemble, vol. I” (mcd001.03)
3 Como por exemplo: Smith Quartet, Quarteto de Cordas de Matosinhos, Sond’Ar-te Electric Ensemble, California EAR Unit, QUASAR – Quatuor de saxofones, BBC Singers, Remix Ensemble, Sing Circle, Camerata Aberta, Oquestra Metropolitana, ComeT Tokyo, Court-Circuit, Ensemble Recherche, Nuno Pinto, Ana Telles, Suzana Lidegran, Alain Damiens, Alain Neveux, Jean-Marie Cottet, Robert Glassburner, Reinier van Houdt, Frances M. Lynch, Angel Gimeno, Frank Ollu, Guillaume Bourgogne, Laurent Cuniot, Pedro Amaral, Pedro Neves, Peter Rundel, Stephan Asbury, Gregory Rose, Celso Antunes, Johannes Kalitzke Jean-Sébastien Béreau, Pierre-André Valade etc.
4 “Libertar o ar”, entrevista a Miguel Azguime conduzida por João Urbano e Jorge Leandro Rosa em: Revista “Nada”, Lisboa, Outubro 2010, p. 89
5 ibidem, p. 74
6 ibidem, p. 73
7 Tomás Henriques, “Azguime, Miguel” em: Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, direcção Salwa Castelo-Branco, Lisboa 2010, p. 91
8 Entrevista a Miguel Azguime em: Ângelo Martingo, “Contextos da Modernidade – um Inquérito a Compositores Portugueses”, Oficina Musical, Atelier de Composição 2011, p. 88 e 87
9 ibidem, p. 86
10 Fragmento do discurso de Miguel Azguime sobre “Arte, Tecnologia e o Futuro de Portugal” apresentado no contexto do Warm Up do Festival In, Lisboa, 30 de Maio de 2013

 

 

 

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