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Ivan Moody


Questionário / Entrevista

Parte I - raízes e educação

Como começou para si a música? Onde identifica as suas raízes musicais? Que caminhos o levaram à composição?

Começou com a música que havia em casa, ou seja, a coleção de discos do meu pai, que incluía uma grande parte do repertório clássico mainstream, e algum jazz. Depois houve a inevitável flauta de bisel, na escola primária, e o cantar em coro, mas em termos de conhecer o repertório, foram os discos em casa. Tornei-me rapidamente um grande admirador de Tchaikovski e Sibelius. Mais tarde entrei numa organização musical semi-ligada à escola secundária que frequentava, na qual cantei no coro e tocava contrabaixo na orquestra, e participei também numa produção do Ludus Danielis, que foi uma introdução extraordinária ao mundo da música medieval. Comecei a interessar-me profundamente pela música durante esse período, e quando tinha 13 anos, percebi que tinha de ser compositor – antes tinha pensado em ir para a universidade estudar línguas. Lembro-me de ter ouvido uma análise de uma canção de Debussy na rádio, feita pelo Anthony Hopkins, que me suscitou o desejo de tentar compor uma canção, tendo percebido muitas subtilezas sobre as quais nunca tivera pensado, as sim fiz, mas o modelo musical foi uma canção de Tchaikovsky, Moy geni, moy angel, moy drug... Levei a canção para a escola e mostrei ao meu professor de música, que me encorajou, e nunca mais parei de escrever.

Que momentos da sua educação musical se revelaram de maior importância para si?

O momento mais importante foi sem dúvida a experiência de cantar na Sinfonia de Salmos de Stravinski. Cheguei a conhecer a partitura em grande profundidade, pois fui tanto aos ensaios de coro como os de orquestra. O último andamento – aquele movimento-em-êxtase – tornou-se para mim uma espécie de modelo, e muita da minha música procura chegar a um momento de completa transcendência semelhante. Na verdade, os ensaios tornaram-se o centro da minha vida nessa altura. Também me lembro de ir com um grupo da escola ouvir a 10ª Sinfonia de Shostakovitch, nos BBC Proms em Londres, e, mais tarde, com um amigo, ouvir Inori de Stockhausen, dirigido pelo compositor, e a estreia britânica de Répons de Boulez, também dirigido pelo compositor. Fiquei encantado com essa primeira versão, com a maneira em que a electrónica abriu um mundo sonoro completamente novo e mágico (e muito decepcionado com a revisão que saiu muitos anos depois em CD!), e encantado também com o estilo de direção de Boulez, que me marcou profundamente. Lembro-me também de ter ido, quando andava na faculdade, ver Le Grand Macabre de Ligeti em Londres, que me abriu os olhos a uma abordagem à ópera (e à história de música) completamente diferente. Durante essa época também ia com frequência a Londres para comprar discos e partituras de música contemporânea - foi então que descobri a música de Arvo Pärt e Henryk Górecki, na altura quase completamente desconhecidos em Inglaterra – e música antiga. Posso dizer que a música do renascimento (incluindo o renascimento português) era tão importante para mim como a música contemporânea.

Parte II - influências e estética

Que referências assume na sua prática composicional? Quais as obras da história de música e da actualidade mais marcantes para si?

Como disse, a Sinfonia de Salmos de Stravinski foi a obra mais marcante; isso levou-me a querer conhecer o resto da sua obra, e fiquei impressionado sobretudo pelas obras do período russo (especialmente Zvezdoliki, Les Noces e Renard) e pelas obras tardias, como Movements e Requiem Canticles. Mas quando estava a descobrir estas obras, também estava muito interessado na música de Britten, por exemplo. Hoje em dia tenho uma atitude mais ambígua em relação a Britten, mas essas obras de Stravinski ficaram, por assim dizer, comigo. Também conheci bastante cedo a obra de John Tavener, com quem estudei posteriormente, e a música dele teve uma influência forte na minha, embora as parecenças foram naturalmente diminuindo ao longo da minha carreira. Considero certas obras, como Akhmatova Requiem e Ikon of Light, obras primas. Outros nomes que me marcaram são Sofia Gubaidulina, o australiano Peter Sculthorpe e o grego Michael Adamis, e a música coral renascentista continua a ter uma grande importância, bem como o canto litúrgico bizantino e russo.

A oposição entre “a ocupação” e “a vocação” constitui uma das questões na definição da abordagem artística do compositor. Onde, na escala entre o emotivo (inspiração e vocação) e o pragmático (ocupação), se localiza a sua maneira de trabalhar e a sua postura enquanto compositor?

Suponho que se localiza exactamente no meio, pois aprendi cedo a conciliar a necessidade interna de criar e as exigências mundanas... mas varia um pouco com cada obra. Em geral, gosto do que disse Stravinski acerca disso, que é melhor alguém dar limites para uma determinada obra, que possam despertar a criatividade. Acho que é muito mais difícil quando isso não existe, quando não há uma moldura para o trabalho que lança desafios ao compositor.

Podia descrever o processo subjacente à sua prática composicional? Escreve a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter estruturado uma forma global da música?

Primeiro tenho de saber o porquê da obra. Tenho de saber do que se trata, a razão da sua existência. Depois ando, penso de uma maneira completamente desorganizada até saber, quando me sento à mesa de trabalho, o que é a obra. Normalmente vem como um fragmento de melodia, um acorde, ou algo mais vago, uma imagem sonora, colorida mas sem definição absoluta. Feito isso, posso começar a escrever as notas, e se for uma obra comprida, fazer um desenho da forma. Mas tudo isso pode mudar enquanto estou no processo da composição; a obra começa a ter a sua própria vida e a assumir contornos inesperados. É uma espécie de diálogo entre a obra e eu próprio. Obviamente, um texto dá um ponto de partida já com implicações formais, mas mesmo assim tenho de seguir o mesmo processo.

Há quem diga que a música, devido à sua natureza, é essencialmente incapaz de exprimir qualquer coisa, qualquer sentimento, atitude mental, disposição psicológica ou fenómeno da natureza. Se a música parece exprimir algo, é apenas uma ilusão, uma metáfora e não realidade. Podia definir, neste contexto, a sua postura estética?

Nunca soube responder a esta pergunta. Intelectualmente apetece-me dizer que a música não exprime nada, mas a minha experiência vai contra isso. Mas mesmo se for capaz de exprimir nesse sentido, se calhar o que exprime varia segundo o ouvinte, o que não quer dizer necessariamente que seja uma ilusão ou uma metáfora... A música é decididamente complexa e misteriosa!

Existem algumas fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

Sim, certamente. A minha visão da criação musical é teológica, ou, melhor, doxológica. Para mim, a música tem uma função espiritual, e uma origem espiritual. No meu caso específico, trabalho muito com conceitos teológicos da tradição cristã ortodoxa. Assim, além das muitas obras que musicam textos litúrgicos ou espirituais (tais como o Akáthistos Hymn ou The Dormition of the Virgin), há também obras instrumentais que investigam conceitos teológicos, como o concerto para piano Linnunlaulu, que trata da ideia da Criação, o quarteto de cordas Lamentations of the Myrrhbearer, que lida com o tema de penitência, ou o concerto para contrabaixo The Morning Star, que tem a ver com a teologia da Cruz . Mas também existem obras cujas origens se encontram em imagens naturais – como Pipistrello para tuba e ensemble de metais, inspirado na imagem de um morcego, Dragonfly, um concerto para clarinete baixo e ensemble que surge da imagem de uma libélula a levantar voo, ou Fioriture para piano, que escrevi quando estava no hospital no ano passado, a pensar na primavera e o renascimento.

Como vê a sua música no panorama de evolução da música ocidental? Sente proximidade particular com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

Bem, já fui inevitavelmente categorizado como holy minimalist, e, como disse anteriormente, tenho muita admiração por Tavener, Pärt e Górecki (embora qualquer pessoa que conheça razoavelmente bem os estilos destes três nunca os iria confundir!). Mas além de ser um compositor que escreve muita música coral e se inspira na tradição cristã, não me revejo nessa classificação. Para já, a minha música tem-se modificado ao longo dos anos, readmitindo, após um período de austeridade, harmonia mais complexa e estruturas mais fluidas, sobretudo com o uso de heterofonia, que tem criado uma complexidade rítmica inesperada. Também nunca perdi o meu interesse no modernismo, ou o que eu chamo a velha vanguarda... tenho muitas gravações de obras de Xenakis, Berio e Ligeti, por exemplo. Se calhar sou pós-modernista, à conta da minha perspectiva sobre a história musical, mas também não gosto muito dessa etiqueta... Não acredito na ideia de evolução musical, só na de mudança. E como não sou profeta, não consigo ver o futuro para me encaixar nele.

Existem algumas incidências da sua música com culturas não ocidentais?

Sim, com o canto bizantino, que me tem servido como base de muitas maneiras, seja como base melódica, seja como ponto de partida estrutural. Embora a Grécia faça parte da Europa, a cultura bizantina estende-se por muitos países, do Líbano até a Roménia, e tem uma forte componente não-ocidental, principalmente em termos dos micro-intervalos e do conceito de tempo.

Parte III - linguagem e prática composicional

Como caracteriza a sua linguagem musical do ponto de vista das técnicas desenvolvidas na composição nos séculos XX e XXI? Há alguns géneros / estilos musicais pelos quais demonstra preferência?

Esta questão prende-se com o que disse acima acerca das escolas estéticas, o pós-modernismo, etc. Posso dizer que a minha música pouco tem a ver com a chamada nova complexidade, que funciona à base da modalidade (e não a tonalidade), mas mais do que isso é difícil... também não me categorizo como minimalista, embora haja momentos minimais em algumas peças minhas... Quanto a géneros musicais, todos me interessam, mas o meu percurso tem tido muito a ver com a música coral e vocal, e menos com a música orquestral, por exemplo. No entanto, tenho escrito muito para agrupamentos instrumentais e orquestrais – tenho um fascínio particular pelo género do concerto (já escrevi concertos para piano, viola, contrabaixo, flauta de bisel e harpa, e tenho outros projectados), ou, talvez, a subversão da ideia do concerto...

Quais as suas obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso enquanto compositor?

Penso que Passion and Resurrection (1992) foi um momento muito significativo de afirmação de linguagem, e em termos de tamanho e profundidade. Depois, penso que Endechas y Canciones (1996), ciclo escrito para o Hilliard Ensemble, abriu um novo caminho em termos de linguagem harmónica e abertura às possibilidades da música tradicional. O Akáthistos Hymn (1998) também foi muito importante por ser uma obra – para coro a capela com uma duração de 90 minutos! – completamente organizada segundo uma estrutura litúrgica mas incorporando vertentes diferentes da minha linguagem composicional. Com o Canon for Theophany de 2002, penso que consegui pela primeira vez numa estrutura grande uma linguagem natural que conciliava os meus instintos criativos e o imperativo litúrgico. No ano seguinte, Linnunlaulu, para piano e orquestra, encomenda da OrchestrUtopica, também foi um momento de consolidação, mas neste caso em termos instrumentais, e também foi um ponto de partida, na sua utilização da heterofonia. E Passione Popolare (2005) e Ossetian Requiem (2006) foram importantes em maneiras diferentes. O primeiro ligou o litúrgico ao instrumental e ao folclórico (aqui a Magna Graecia de Bizâncio e Itália) de uma maneira completamente integrada, e tive muito orgulho em que tenha sido estreado belissimamente por um conjunto inteiramente italiano, num festival italiano. O segundo foi uma reacção instintiva à tragédia de Beslan, e tive muito medo de entrar na política; mas com a encomenda de um requiem curto, encontrei uma maneira de lidar com o assunto. Em 2008 escrevi o Stabat Mater para coro e quarteto de cordas, que também foi um ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente, juntando textos e linguagens musicais de inspiração grega, russa, sarda e, naturalmente, inglesa. Desde então, penso que tenho tentado aprofundar e apurar estes encontros linguísticos em termos musicais.

Parte IV - a música portuguesa

O que acha sobre a situação actual da música portuguesa?

Acho que há imenso talento composicional em Portugal, e que o nível dos jovens compositores é mais alto que os seus contemporâneos em, por exemplo, Espanha ou Itália. Penso que isto vem precisamente da contradição do mediterrâneo na periferia. O que não há, como todos sabemos, é oportunidades. Um amigo disse-me recentemente que, quando vai ao site da rádio finlandesa, estão quase sempre a tocar Sibelius. Imagine se, indo ao site da RDP, se ouvisse quase sempre Freitas Branco ou Vianna da Motta... A presença da música portuguesa em concerto limita-se praticamente a aberturas, às quais se seguem obras dos grandes, do centro. E, por consequência, os compositores vivos são tratados da mesma maneira, como uma espécie de mal necessário. Mas continuo a insistir na existência de grande talento composicional em Portugal e, também, em certas instituições de cariz particular, ou semi-particular, que têm a visão de apoiar estes esforços.

Parte V - presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros? Podia destacar uma das suas obras mais recentes, apresentar o contexto da criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

Sempre tenho muitos projectos, e é assim que gosto... Tenho projectos pessoais, como a ambição de escrever concertos para trompeta e para saxofone, e outros que me vão chegando, como o convite do magnífico grupo italiano de música antiga Ensemble De Labyrintho para escrever uma obra de longa duração sobre textos tirados do Livro de Eclesiastes (Qoholet). Esta obra tinha de ser escrita para dois coros e conjunto de violas da gamba, e portanto tinha uma especificidade muito grande, embora não me fosse estranha! Usei quatro línguas (inglês, grego, hebraico e latim), e como de costume, cada língua pede um tratamento musical diferente... o desafio foi fazer uma unidade entre estas diversidades. Penso que seja uma espécie de sumário dos meus dialectos musicais até hoje. Projectos decorrentes incluem uma série de obras sobre textos de Dante para ensembles vocais e instrumentais, possivelmente um concerto para marimba e canções para soprano e quarteto de cordas.

Como vê o futuro da música de arte?

Com optimismo, que é a única coisa que pode contrariar o pessimismo.

Ivan Moody, Abril de 2014
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Site Oficial de Ivan Moody: ivanmoody.co.uk
Ivan Moody no SoundCloud: soundcloud.com/ivanmoody

 

 

 

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