"(…) não me sinto prisioneiro de nenhuma tendência, de nenhuma técnica, de nenhuma estética. Posso ter vontade de, num dado momento, me exprimir de uma determinada maneira e noutro momento de outra maneira. Sinto-me talvez e cada vez mais aberto ao que quer que me chegue."[1]
Nascido em Lisboa a 26 de Junho de 1934, Filipe Pires, compositor, professor, musicógrafo e pianista, reivindicou a liberdade de utilização de uma variedade de estilos, desde os seus primeiros amores impressionistas, neoclássicos e atonais até à música electroacústica e formas abertas, sendo um dos pioneiros em Portugal destas duas abordagens.
“Como se geneticamente estivesse destinado para a música, Filipe Pires revelou-se cedo como pianista e compositor”[2], tendo iniciado os estudos musicais aos seis anos. No Conservatório Nacional terminou os cursos superiores de Piano com Lúcio Mendes e de Composição com Artur Santos e Jorge Croner de Vasconcelos. Prosseguiu os seus estudos em Hannover e Salzburgo de 1957 a 1960, apresentando-se então em vários países da Europa enquanto pianista e compositor. “...apresentava-me como pianista e como compositor, e também executava peças minhas”, revela Filipe Pires na entrevista à revista Arte Musical conduzida por Pedro Figueiredo. “Simplesmente, lá, comecei a entusiasmar-me ainda mais pela composição. (...). Costumo dizer que fui para lá pianista e vim de lá compositor.”[3] Entre 1963 e 1965 realizou várias visitas aos Cursos de Darmstadt (onde ensinavam Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, entre outros), algumas das quais na companhia de Jorge Peixinho. De regresso a Portugal, exerceu intensa actividade pedagógica como professor de Composição do Conservatório de Música do Porto, a par da crítica musical, da realização de cursos, conferências e de numerosas actuações públicas, muitas das quais na Rádio e na Televisão Portuguesas.
No inicio dos anos 70 enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, Filipe Pires realizou um estágio de dois anos em Paris, consagrado à música electroacústica e sob a direcção de Pierre Schaeffer, o pai da música concreta. Novamente em Portugal assumiu a direcção do Conservatório Nacional, onde, no programa curricular, introduziu a disciplina de Música Electroacústica e retomou a disciplina de Análise. Como recorda Filipe Pires na entrevista à revista Arte Musical: “[A disciplina de Análise] tinha existido há muito tempo, nos anos das primeiras reformas do Luís de Freitas Branco e do Vianna da Motta. Foi o Luís de Freitas Branco que, precisamente, introduziu a disciplina nos «curriculae» dos conservatórios, mas isso foi sol de pouca dura, porque chegaram os anos 30 e essa disciplina desapareceu. Eu acho que é muito importante uma pessoa abrir o brinquedo para ver o que está lá dentro, pois só a superfície é muito pouco. De modo que enquanto estive no Conservatório de Lisboa, como professor, não só introduzi a disciplina de Análise como a de Electroacústica, (...).”[4] Segundo o compositor, até aos anos 1980 a pedagogia da música contemporânea em Portugal teve um carácter experimental, que “depois adquiriu uma postura para-científica, academista, tendente à recuperação de formas arcaicas em detrimento doutras atitudes musicais como a obra aberta, improvisação, aleatorismo, electrónica ou jazz.”[5]
Na segunda metade dos anos 70 Filipe Pires desempenhou as funções de Especialista de Música no Secretariado Internacional da UNESCO em Paris, participando em missões oficiais a vários países da Europa de Leste, da África e da América Latina. “A minha passagem pela UNESCO (...), os contactos a nível diplomático com representantes de países membros, as missões oficiais à África, à América Latina e ao leste europeu rasgaram horizontes imprevistos na minha actividade de compositor. O meu profundo interesse nesta matéria revelou-se, por exemplo, em obras como Canto Ecuménico e Epos.”[6]
Em 1979 aceitou os cargos de Presidente da Direcção da Juventude Musical Portuguesa e de Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, ao mesmo tempo que retomou intensamente a sua actividade criadora. Fez também parte da Comissão Instaladora da Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo do Porto e foi director artístico da Orquestra Nacional do Porto entre 1997 e 1999.
Para além de crítica de música, Filipe Pires escreveu várias obras de carácter didáctico, biográfico e analítico sobre a música e músicos portugueses.
Na qualidade de pianista e enquanto compositor recebeu vários prémios nacionais e internacionais entre os quais se destacam: 1º Prémio de Piano da Juventude Musical Portuguesa (1950), Prémio Concours Quatuor (Liège, Bélgica, 1959), Prémio Alfredo Casella (Nápoles, Itália, 1960) e Prémio Nacional de Composição Calouste Gulbenkian (1968). A sua obra Diálogos foi seleccionada para a Tribuna Internacional de Compositores (Paris) em 1976.[7]
A Música de Filipe Pires
Na sua obra musical, Filipe Pires começou por seguir a escola francesa, nomeadamente o impressionismo e neoclassicismo, cujo exemplo é a Sonata para piano de 1954, sob a influência dos seus primeiros professores de Composição, Artur Santos e Jorge Croner de Vasconcelos, “e do ambiente musical português erudito anterior aos anos 60.”[8] Foi a partir do Quarteto de Cordas que fez uso crescente do cromatismo, o que o conduziu, através de uma linguagem atonal, ao dodecafonismo, de que é exemplo a peça Akronos para orquestra de cordas de 1964, composta em Berlim. “Sem seguir um serialismo rigoroso, Akronos situa-se na esteira da dialéctica weberniana do som e do silêncio”[9], enfatiza José Manuel Bettencourt da Câmara no booklet da edição discográfica da PortugalSom com obras para orquestra de Filipe Pires.
Em 1968 o compositor escreveu a obra Portugaliae Genesis pela qual obteve o Prémio Gulbenkian de Composição, por decisão de um júri integrado por Luciano Berio, Richard Rodney Benett, Jorge Croner de Vasconcelos, Armando José Fernandes, Filipe de Sousa, Gianfranco Rivoli e Pierre Salsmann. Construída a partir de textos extraídos da Monarchia Lusitania e dos Portugaliae Monumenta Historica, esta obra é um vasto fresco coral-sinfónico cujo tema são os antecedentes históricos da nação portuguesa, desde as chamadas invasões bárbaras à proclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal. “O tratamento da matéria-prima literária, não podia deixar de ao compositor colocar problemas vários, dada a necessidade de evitar o pastiche histórico e garantir a autenticidade dos resultados musicais“, escreve José Manuel Bettencourt da Câmara. “Sem prescindir de referências históricas bebidas nos cantos árabe e hebraico, nas formas polifónicas e nos modos medievais, o compositor ergueu um extenso painel sonoro onde as marcas de individualidade são evidentes.”[10] “Nunca mais me esqueci duma crítica que o João de Freitas Branco fez a Portugaliae Genesis (...)”, recorda por seu lado Filipe Pires na entrevista dada ao Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa em 2004. “(...) depois de muitas considerações, de muitas coisas elogiosas e de outras objectivamente menos precisas, (...) estranhava que uma pessoa com 34 anos produzisse uma obra que, não sendo uma obra de vanguarda, era quase uma obra de vanguarda da retaguarda. Talvez ele esperasse coisas que eu naquela obra não empreguei, embora tivesse empregado noutras de outra época.”[11]
Depois do neoclassicismo, impressionismo e cromatismo na música de Filipe Pires seguiu-se um período exploratório de linguagens e técnicas envolvendo combinações tímbricas, permutabilidade e variabilidade, assim como aleatorismo. Nos anos 70 enveredou também pela composição electroacústica, destacando-se Litania, Homo sapiens e Canto Ecuménico.[12] Como diz o compositor numa das respostas ao Inquérito a Compositores Portugueses, Contextos da Modernidade, coordenado por Ângelo Martingo e editado pelo Atelier de Composição: “Durante um estágio (...) em Paris, frequentei o Curso de Música Electroacústica, sob a orientação de Pierre Schaeffer. A era digital estava ainda longe de ter nascido e tudo se processava com meios analógicos, compreendendo montagens feitas à base de cortes na fita magnética. Interessei-me mais pela faceta «concreta» da composição electroacústica, ainda que tivesse tido oportunidade de contactar com alguns aspectos da electrónica. Foi um mundo novo para mim, traduzindo-se num período em que me dediquei particularmente a este tipo de composição, que veio a influenciar, por seu turno, a minha técnica de orquestração instrumental.”[13]
Como compositor, Filipe Pires não se limita a núcleos fechados, tendo afirmado que “os problemas específicos de cada obra determinam escolhas morfológicas e sintácticas”[14] próprias, e tendo explorado, sucessivamente, o tonalismo, o modalismo, o cromatismo, o atonalismo, o dodecafonismo, o serialismo integral, o mosaiquismo, o aleatorismo e o minimalismo, assim como as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias. Adicionalmente os anos 80 despertaram a sua atenção para o teatro musical com as peças Tordesyalta e Zoocratas, em que constatamos certas indeterminações implícitas na composição e alguma relação bilateral entre o compositor e o intérprete; “há zonas de invenção autorizadas ao executante pela sua escrita.”[15] “Sinto-me sempre eu”, realça o compositor na entrevista do mic.pt, “embora seja constantemente um eu diferente… Até porque eu posso muitas vezes dar passos para a retaguarda, e ir buscar técnicas ou sistemas de composição que já utilizei, embora os reformule de outra maneira. É um pouco como sucede com a moda… Calças largas ou estreitinhas… Quando volta outra vez a moda que já tinha vigorado há trinta anos atrás, não é exactamente igual – há qualquer coisa que se vai buscar mas ao mesmo tempo reformula-se e segue-se uma direcção diferente.”[16]
As inúmeras etiquetas ou classificações tipológicas da obra de Filipe Pires como “neoclássica”, “pós-serial” ou “pós-weberniana”, etc., mostraram-se insuficientes para abarcar a multiplicidade da sua criação musical, e deram lugar à divisão artificial entre o moderno e o pós-moderno.[17] Como enfatiza o próprio compositor na entrevista ao mic.pt: “A mistura de estilos, aquilo que hoje se convencionou chamar o pós–modernismo, acho que só é pejorativa para quem não entende as coisas ou as entende de uma forma unilateral (…). ...quanto a misturar vários estilos dentro de uma determinada obra, (...), tenho a impressão de que já antes de se inventar o próprio pós–modernismo eu já o fazia de certo modo – o que me valeu chamarem-me de reaccionário musical.”[18]
Filipe Pires é particularmente sensível a certas formas de artes visuais como a pintura, a dança, a fotografia ou o cinema, o que tem dado origem a obras como Sintra – Música para uma Curta-Metragem Imaginária (1969), uma obra “impressionista” mas sem o rigor do conceito na história da música. Nos anos mais recentes tem também mostrado interesse pela problemática da obra enquanto processo de comunicação e como diz na entrevista do mic.pt: “Evidentemente, um artista (...) não deve descer ao ponto de tentar agradar ao público menos ilustrado (...). Se sobe muito, no entanto, arrisca-se a que apenas uma meia dúzia de ouvintes e de espectadores adiram à sua mensagem. (…). Temos de comunicar com alguém, não devemos enterrar a cabeça na areia. (…). Há que conciliar dentro da mesma obra aspectos que possam ser digeridos por vários públicos.”[19]
Filipe Pires é um dos mais ilustres músicos em Portugal e, pelo carácter transversal e múltiplo da sua obra, uma referência na História da Música Portuguesa Contemporânea. Sem dúvida na obra de qualquer autor há os ingredientes orgânicos que provêm das influências de estilo, escola ou técnica, todavia o que dá identidade à música de Filipe Pires é precisamente a originalidade do discurso individual que se evidencia nos traços de libertação das influências, sintomas da necessidade de renovação, numa música que resulta de uma amálgama de várias tendências ou técnicas, contudo sem compromisso ou filiação directa.
Filipe Pires no Música Hoje: OUVIR PROGRAMA (emissão de 24 de Maio de 2014, Antena 2)
Filipe Pires no YouTube:
Duas Cantigas de Amigo (1949)
1. Ai Madre, moiro d’Amor!
Sintra – Música para uma Curta-Metragem Imaginária (1969)
Orquestra Filarmónica de Budapeste dirigida por János Sándor
Figurações II (1969)
Sofia Lourenço – piano
Homo Sapiens
Obra electroacústica
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1 Entrevista com o Compositor Luís Filipe Pires conduzida por Pedro Figueiredo em: Arte Musical, Abril, Nº 3, IV Série, Volume I, p. 106, Lisboa 1996
2 Jorge Lima Barreto, Filipe Pires, Artigos Meloteca 2009, p. 2
3 Entrevista com o Compositor Luís Filipe Pires, op. cit., p. 102
4 Ibidem, p. 106
5 Jorge Lima Barreto, op. cit., p. 6
6 Inquérito a Filipe Pires coordenado por Ângelo Martingo em: Contextos da Modernidade. Um inquérito a compositores portugueses; Atelier de Composição, Porto, Setembro de 2011, p. 22-23
7 Patrícia Bastos, Pires, Filipe em: Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX; direcção: Salwa Castelo-Branco; Lisboa 2010, p. 1011
8 Ibidem
9 José Manuel Bettencourt da Câmara, Introdução no booklet do CD editado pela PortugalSom (CD 870019/PS), com obras para orquestra de Filipe Pires
10 Ibidem
11 Entrevista a Filipe Pires conduzida por Miguel Azguime e realizada na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo no Porto em Julho de 2004, e disponível online em mic.pt
12 Patrícia Bastos, op. cit., p. 1011
13 Inquérito a Filipe Pires coordenado por Ângelo Martingo, op. cit, p. 26
14 Entrevista a Filipe Pires em: Sérgio Azevedo, A Invenção dos Sons. Uma Panorâmica da Composição em Portugal Hoje, Editorial Caminho, Lisboa 1998, p. 115
15 Jorge Lima Barreto, op. cit., p. 5
16 Entrevista a Filipe Pires conduzida por Miguel Azguime, op. cit.
17 Jorge Lima Barreto, op. cit., p. 2
18 Entrevista a Filipe Pires conduzida por Miguel Azguime, op. cit.
19 Ibidem