Em foco

Paulo Ferreira-Lopes


Questionário / Entrevista

PARTE I - raízes e educação

Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais? Que caminhos o levaram à composição?

A música entrou no meu universo e na minha vida de formas diferentes mas sempre sem uma consciência própria e individual do que é que de facto seria a música, se haveria boa ou má música. De forma geral havia música e foi esse fenómeno que me abraçou como uma onda na qual fui levado sem vontade própria.
A minha mãe foi sempre uma cantadeira muito activa e como eu tive a enorme “chance” de ser educado pela minha mãe, conjuntamente com a minha irmã, uma grande parte do dia, depois da escola, ouvia a minha mãe a maior parte das vezes acompanhada pela rádio ou em duetos divertidíssimos com as grandes vedetas da época. O seu género musical favorito era já nessa época, sem qualquer espécie de duvida o fado. Nessa altura a minha mãe cantava de forma muito intuitiva, só mais tarde acabaria por vir a cantar de facto o fado com consciência própria e em público.
Paralelamente e por esse período, no inicio da escola primaria, comecei a frequentar uma sociedade filarmónica com o objectivo de poder ser instruído de forma mais profissional na aprendizagem da música. O facto foi consumado pelos meus pais e eu não tive vontade própria nessa decisão. Ao contrario do previsto inicialmente, ir para a banda, acabei nas aulas de guitarra clássica. Esta experiência abriu-me portas e caminhos que antes eu não podia imaginar. Este percurso, que dura mais ou menos até ao fim da escola primaria, gera em mim o verdadeiro gosto por tocar, tocar guitarra clássica, partindo duma premissa trabalhada ao longo de dois ou três anos com o professor de guitarra e que consistia no seguinte: tocar era de facto estudar, era trabalho e esforço. Esta premissa e o processo que daí decorre, parece-me que foi o passo para começar a perceber de forma consciente que gostava não só de ouvir música mas também de fazer música, com o esforço e o trabalho que isso então implicava.
Com o final da escola primária chega uma época absolutamente fantástica para mim: o 25 de Abril. A revolução trouxe-me algo que de facto ainda hoje tenho dificuldade em transmitir, mas essencialmente levou-me aos ateliers de teatro, aos ateliers de literatura e de poesia, às experiências da arte colectiva, da arte gestual, da pintura, mas essencialmente o 25 de Abril, trouxe-me à rua e ao contacto social, nas colectividades, nas associações, que antes não existia.
O facto de viver numa região extremamente activa do ponto de vista político, onde as associações promoviam a educação cívica com um grande enfoque na educação pela arte, parece-me que este ambiente terá de facto tido uma influência muito grande na forma como fui crescendo e escolhendo os caminhos que escolhi, onde a música passou a ser parte da minha vida e onde gradualmente fui também acreditando que poderia vir a ter uma profissão como músico e mais tarde como criador. Desse período fica ainda na minha memória, o trio que formei com o Américo Cardoso e com o Tim Lopes.

Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si?

O contacto com a Constança Capdeville enquanto compositora e professora foi, talvez em todo o meu percurso o ponto mais alto. O contacto com o Franco Donatoni marcou também muitas das minhas escolhas e a forma como penso a minha própria música.

PARTE II - influências e estética

Que referências assume na sua prática composicional? Quais as obras da história da música e da actualidade mais marcantes para si?

Esta questão liberta-me um grande sorriso..... É difícil reconstituir o todo com o detalhe de tudo. A história de uma vida não se reconstrói por processos aditivos, onde no final nos deparamos com uma soma, ou onde recursivamente vamos adicionando algumas parcelas para diminuir mais adiante o esforço da adição da totalidade! Existem obras e compositores que são incontornáveis na minha forma de pensar : Luciano Berio é de facto um caso incontornável mas nem de perto nem de longe imaginaria fazer música como a música do Berio. Tal como Berio (e porque estamos na letra B) Beethoven é igualmente importante para mim e igualmente, e seguindo o principio anterior, nem de perto nem de longe me passaria pela cabeça fazer música como a de Beethoven!
O que me fica das obras e do pensamento de Berio ou de Beethoven, de Wagner ou de Nunes, de Manoury ou de Debussy, são os aspectos mais marcantes da minha própria música : a cor e o despojamento duma retórica musical periférica. A cor no sentido da descoberta do timbre nas suas facetas mais ocultas e até mesmo bizarras - o ruído assume no meu processo de busca e de investigação um papel muito importante. O despojamento da retórica no sentido de que a retórica de elementos como o intervalo ou a sucessão do intervalo, seja harmonicamente ou melodicamente, pode (no caso ma minha música tem de ser) ser disruptiva. Mas voltando à questão das adições, por vezes eu próprio e contra o meu princípio - de que a vida não é uma mera adição - adiciono de forma inconsciente, acabando mais tarde por ter de desagregar tudo, com um esforço infinito implícito, porque para apanhar individualmente cada parte do todo, isso obriga-me a realizar um processo de auto-análise complexo.
No ano passado fui assistir à estreia de uma obra de Wolfgang Rihm em Berlim. A obra foi cantada pelo RIAS Kammerchor num espaço magnifico, a Sophienkirche em Berlin que fica num pátio ladeado por edifícios de fachadas completamente esburacadas por balas, supostamente disparadas pelos NAZIS contra os Judeus que ai habitavam. Para além deste pormenor a igreja é também ladeada por um dos vários cemitérios judeus de Berlim.
A obra de Rihm – Fragmenta passionis e Sieben Passions-Texte - foi executada alternadamente com a obra de Heinrich Schütz - Musikalische Exequien - Schütz, é um compositor que conheço bem e não obstante o conhecimento aprofundado desta obra de Schütz, neste contexto especifico tanto a obra Rihm como a de Schütz revelaram-se como uma espécie de aparição, uma verdadeira redescoberta, uma iluminação total. Na verdade o meu conhecimento desta obra era essencialmente baseado nas técnicas e no estilo musical de Schütz: um conjunto de meras adições que nunca trouxeram conhecimento acrescentado, à parte de um conhecimento sistematizado sobre a lógica endógena da manufactura da obra. Este conhecimento baseado em adições simplificadas, advém da lógica escolar e universitária, adquirida quando somos aprendizes de música ou de compositores. Obviamente quando confrontado com a obra de arte num contexto completamente diferente dessa lógica analítica muito focada em dois ou três parâmetros (altura, harmonia, contraponto), e quando a experiência musical e a cultura artística se diversifica, acabo sempre por ter de dar alguns passos “atrás” e inflectir na redescoberta dessas mesmas obras com um olhar diferente, o que nem sempre é linear e óbvio. A escuta da obra no contexto espacial da sala, mas também no contexto de um refinamento enorme do ponto de vista da entoação e da massa sonora daí resultante, colocaram-me num instante de confronto enorme entre o meu conhecimento, de dois ou três aspectos retóricos, com a necessidade de compreender a dimensão do todo – a palavra, a entoação, o colorido, as condições espaciais de realização da obra, a movimentação das vozes nas diferentes colocações do coro, a localização mas também as minhas memorias recentes, do percurso feito até à Sophienkirche.
Ou seja, o que me parecia ser uma experiência adquirida como forma de estruturação do conhecimento, e logo das minhas escolhas musicais, até alguns anos atrás, passou a ser um epílogo de duvidas e o desejar re-experimentar o conhecimento das obras musicais num contexto completamente diferente daquele em que aprendi como estudante.

A dicotomia ocupação – vocação pode definir a abordagem artística / profissional do compositor. Onde, na escala entre o emocional (inspiração e vocação) e o pragmático / racional (cálculo e ocupação), pode localizar a sua maneira de trabalhar e a sua postura enquanto compositor?

Pessoalmente acho que é sempre necessário haver uma certa vontade para se fazer uma coisa. No caso da criação, a coisa passa a uma dimensão diferente: passa a objecto que invariavelmente se expõe ao gosto e à critica pública. Este paradigma demonstra bem que o objecto da criação é mais amplo do que o objecto do fazer. Porque a criação arrasta consigo questões de ética, questões de moral e acima de tudo a responsabilidade do acto publico. A forma como eu me aproximo da ideia seminal de uma obra em processo de criação, não é de todo emocional, é bastante estruturada e sistemática. O processo de armar o sistema, mesmo que simples, implica a responsabilidade de o entender e de o percepcionar antes de definir a formulação final. Depois vem a parte mais artesanal, a da realização, onde a minha percepção se articula com a memória, de todas as técnicas e estratégias de escrita e de recombinação dos materiais que fazem parte da composição da obra e que fui aprendendo e retendo ao longo de todos estes anos.

A música, devido à sua natureza, é essencialmente incapaz de exprimir qualquer coisa, qualquer sentimento, atitude mental, disposição psicológica ou fenómeno da natureza. O que a música exprime é apenas uma ilusão, uma metáfora e não realidade. Concorda ou não concorda com esta declaração? Como podia definir, neste contexto, a sua postura estética?

Sim a música é de facto uma forma de expressão extremamente abstracta e de forma geral não me parece que seja possível estabelecer qualquer lógica de comunicação através da música ou da expressão sonora. A ideia da música ser uma língua universal ou algo semelhante, não tem qualquer sentido na forma como penso a minha música. A música quando muito estimula determinadas sensações, mas que são sempre acompanhadas dum contexto cultural. A psico-acústica já explicou estas questões todas muito bem e tentar juntar algo mais pode resultar num mero exercício de retórica.

Existem algumas fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

Sim bastantes a arquitectura, a literatura , a fotografia, etc.

No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

Do ponto de vista técnico ou das técnicas de composição não, mas existem muitas influências do ponto de vista do pensamento e da estética pura. Muito embora a retórica, a técnica musical e até mesmo a identidade política dos impulsionadores do movimento futurista italiano, directamente relacionado com a música, seja bastante simplista e algo tendenciosa, este movimento acabaria por influenciar de forma determinante as gerações vindouras. A mim, no que toca o pensamento subjacente à nova dimensão estética do ruído e a abertura que esta “brecha” traz, toca-me profundamente tanto do ponto de vista estético como também nas repercussões que esta visão traz à técnica musical e à sua escrita.

Existem na sua música algumas influências da cultura não ocidental?

Não creio! Ou pelo menos não penso nelas.

O que entende por “vanguarda”? Na sua opinião, o que hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?

Eu vejo muito pouca inovação no inicio deste século. A programação musical e as tendências, mesmo nos compositores mais novos mostram uma música e uma criação sem riscos. Este é o estado actual da vanguarda musical da Europa, pior ainda nos Estados Unidos e inexistente na Ásia.

PARTE III - linguagem e prática composicional

Como caracteriza a sua linguagem musical do ponto de vista das técnicas desenvolvidas na composição nos séculos XX e XXI? Há algum género / estilo musical pelo qual demonstre preferência?

Eu não tenho uma linguagem musical própria porque acho que ainda não atingi uma maturidade suficiente que permita por um lado sentir que tenho uma linguagem e por outro lado não sinto também necessidade de definir ou encontrar a minha própria linguagem. Existem no entanto elementos, resultantes de uma pesquisa muito aprofundada em torno do conceito de ruído que têm conduzido a minha pesquisa e o meu trabalho de investigação em torno da composição. No que concerne à música instrumental, tento explorar, desde há bastantes anos a relação entre técnicas instrumentais estendidas e a mimetização do ruído através do instrumento musical.

Podia descrever o processo atrás da sua prática composicional? Compõe a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global da música?

Normalmente a ideia central das minhas obras resulta sempre de um determinado interesse por elementos que me ocorrem um pouco avulso e que depois tento “armar” através de processos diferentes, até chegar a um objecto no qual consigo identificar a forma, a luminosidade, a matéria, etc. Após este processo vem o processo da escrita na qual alguns detalhes podem ainda variar em função de algumas decisões que a escrita musical impõe no momento da notação da obra.

No contexto da sua prática composicional podia definir a ligação (ou oposição) entre o cálculo / raciocínio / processos científicos (por exemplo ligados a fenómenos acústicos) e a vertente mais virada para a emoção (os chamados "impulsos criativos")?

Eu uso recorrentemente muita tecnologia no sentido de obter certas demonstrações ou aproximações ao material que uso nas obras que componho. Por vezes esta tecnologia ajuda-me a conceber materiais harmónicos (não no sentido da harmonia enquanto parâmetro musical mas do espectro de um ou vários instrumentos), padrões rítmicos, ou até mesmo a reconstrução temporal de determinado timbre.

Que relação tem com as novas tecnologias (por exemplo com os meios informáticos) e como estas influenciam a sua maneira de compor, e a sua linguagem musical?

A minha relação com a tecnologia digital é já muito antiga, e o recurso a esta tecnologia para gerar materiais ou mesmo compor é muito usual. É difícil avaliar em que medida a tecnologia influencia ou condiciona a música que imagino e que componho, mas como em todas as épocas da história da arte e da ciência, as ferramentas sempre foram um factor de maior ou menor sucesso na realização do objecto nas suas fases de fabricação, e a arte como qualquer outra actividade de fabrico de peças únicas tem sempre uma parte de manufactura que é bastante influenciada pelos instrumentos de fabricação. Neste sentido penso que a tecnologia influencia bastante o resultado da minha música e do meu pensamento, mas não creio que o condicione.

Qual a importância da vertente espacial e tímbrica na sua música?

Algumas linhas atrás eu mencionei a importância que reconheço à nova dimensão estética que o ruído passa a ter na música ocidental a partir do início do século XX, particularmente com os futuristas, mas também com Varèse ou mesmo Stravinsky e Cage. Neste sentido o timbre, na sua acepção mais ampla, é a matéria e elemento que mobiliza todo o meu pensamento e preocupação quando inicio o processo de criação de uma obra e a sua composição.

Qual a importância do experimentalismo na sua música?

Quando refere experimentalismo refere a experimentação?
A experimentação é fundamental, mesmo com o risco que corro em produzir obras que tendo sido encomendadas acabam por não ser pagas porque os músicos acham a obra liminar. A experimentação é a base da minha atitude, porque sem desafio e sem risco, a paz torna-se podre.

Quais as suas obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso enquanto compositor?

Eu tenho muita dificuldade em mencionar uma ou outra obra, enquanto facto de mudança ou de viragem do meu percurso. O meu percurso foi-se construindo lentamente, porque eu não sou um daqueles compositores dotados com uma intuição imediata e uma capacidade de produção imensa.
O meu percurso tem sido construído pela vontade que tenho de me exprimir através da música e pela luta e aprendizagem, por vezes muito duras, do processo de formação e de amadurecimento da técnica em função das necessidades que uma ideia ou um projecto exigem para se realizarem. Desta forma, os meus processos de mudanças derivam invariavelmente de processos de amadurecimento endógeno. Estes processos são sempre um percurso, que no meu caso são sempre longos, significando que não existe de facto uma obra singular que tenha exercido em mim efeito drástico ou de mudança significativa num dado momento ou em momentos diferentes.
O que aconteceu e acontece, são as influencias mais globais, por via de um conjunto de obras ou formas de pensamento como é o caso de muitas das obras de Donatoni e o seu pensamento, o mundo tímbrico de Vaggione sobretudo a partir de 1998 até aos dias de hoje e também algumas obras de Stockhausen, particularmente as obras do final do anos 50, por exemplo Elektronische Studie II. Estas são algumas das obras que sem qualquer duvida e conscientemente me influenciam ainda hoje na minha pesquisa e na minha atitude enquanto artista. De forma geral todas elas retêm alguns aspectos em comum. A exploração recursiva e por vezes minimalista do timbre. Quando menciono o minimalismo refiro-me à técnica de composição, onde a textura resulta da iteração ou do uso recursivo de mosaicos extremamente reduzidos.
Mas para além da técnica musical existe a atitude estética, onde o resistir se revela numa forma de pureza do próprio discurso musical e da consciência desse mesmo discurso. Essa pureza, revela-se para mim na clareza da organização dos elementos e das escolhas desses elementos tendo como objectivo principal o esboço de uma forma cristalina e transparente.
Existem muitos outros compositores que têm influenciado de forma muito vincada o meu percurso, como é o caso de Philippe Manoury, mas esta influência revela-se sobretudo na orgânica e simbiose entre instrumentos tradicionais e o limiar da tecnologia. É verdade também que o Philippe Manoury tem uma espécie de influencia mimética na minha relação entre a música contemporânea e o impressionismo, sobretudo com Debussy ou até mesmo com Fauré, o que não deixa de ser importante, porque grande parte do meu percurso foi feito em França e isso deixou-me marcas profundas.

PARTE IV - a música portuguesa

O que acha sobre a situação actual da música portuguesa? O que distingue a música portuguesa no panorama internacional?

A música contemporânea portuguesa tem tido impulsos muito fortes neste inicio de século graças ao empenho e sacrifício pessoal de duas ou três pessoas deste país na realização de alguns dos festivais, eventos e mesmo publicações sobre a criação mais actual. Sem obviamente querer esquecer os outros, penso que o Miguel Azguime e o Jamie Reis e o Pedro Maia, têm tido um papel muito importante na tentativa de não deixar esmorecer a criação musical, sobretudo no caso dos compositores mais jovens. Infelizmente estes dois ou três casos que considero exemplares, lutam ano após anos com uma resistência e iniquidade inconcebível não só do governo como também das instituições que sendo do estado competem desmesuradamente com os primeiros mas ironicamente sem a visão de criação de património que o Miguel Azguime, o Jamie Reis ou o Pedro Maia têm revelado através da sua acção. Infelizmente a OrquestrUtopica que fazia parte deste grupo importantíssimo foi derrotada. Vamos tentar colectivamente resistir de forma a que isso não aconteça com os que neste momento proporcionam em exclusivo aos compositores criar as suas obras e ao público desfrutar da criação mais actual.

No seu entender é possível identificar algum aspecto transversal na música portuguesa da actualidade?

Eu não vivo em Portugal desde há muitos anos e essa falta de quotidiano, na vida musical e artística, criou-me uma grande lacuna para que possa ter uma visão de conjunto sobre esta problemática.

Como poderia definir o papel de compositor hoje em dia?

Sem querer ser demasiado demolidor, parece-me que o compositor não tem de facto um grande papel na nossa sociedade. O compositor em geral não faz parte de um estereótipo que assegura ao “mercador de arte” obras com um valor de mercado negociável ou estimável. Na semana passada li um texto do Vítor Rua, compositor que respeito bastante sobretudo pelo risco que assume constantemente não só nas suas obras mas na sua atitude, sobre o seu estado de inconformação sobre a falta de reconhecimento, enquanto trabalhador exemplar que é, por parte da nossa sociedade. E de facto isso é verdade, o Vítor Rua que trabalha muitas vezes 7 dias por semanas e quer trabalhar, que produz e quer produzir, que editou mais de 50 CD’s que tem um trabalho exemplar como artista, não vê esse valor reconhecido porque a nossa sociedade vê a arte e a criação artística como um mero mercado. Se o objecto não assegura confiança ao comprador – porque tem de configurar um certo estereótipo – ele poderá ser rejeitado pelo comprador porque o comprador não quer investir no risco.
A nossa sociedade tornou-se selvática e o valor capital é que determina o valor de qualquer objecto seja de guerra seja de arte. E desta forma vemos cada vez mais os artistas que tem de facto muito valor a retrair a sua produção e os que tem muito jeito a tentar dar resposta ao que o “mercado” aceita como objecto viável para o negócio. E é assim que se desmantela o futuro, antes mesmo de lá termos chegado. Mas a situação não é muito diferente na ciência. A ciência também obedece a mercados baseadas na lógica da sustentabilidade. Ou seja se uma dada empresa de farmacêutica subsidiar um laboratório ou bolsas de doutoramento para que se investigue num determinado fármaco, essa premissa é que configura as boas normas e procedimentos de investigação. E os governos e políticos apoiam e aplaudem porque só assim é que se consegue regular e desmantelar os grupos de cientistas e artistas subsídio-dependentes. Uma vez mais se gera uma lógica de mercado para a ciência, onde de facto os interesses privados ditam o que deve ser uma política de investigação e de criação.

Conforme a sua experiência quais as diferenças que pode distinguir entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo?

Depende de que partes do mundo estamos pensar. Na minha trajectória tentei sempre orientar-me para países e sociedades onde a arte e a invenção fossem consideradas importantes para o desenvolvimento do pensamento, e da identidade dessas mesmas sociedades. Esta premissa leva a que a cultura e a vida (ou o meio) musical tenham uma preponderância não só na vida social como na educação. Portugal está longe desta realidade, porque de acordo com os modelos políticos mais modernos, estruturar um sistema social onde é necessário pagar a professores e educadores, para estimularem o gosto por fazer ou ouvir música, pagar a músicos, a ensembles e a festivais e a criadores para criar, é alimentar um sistema que não é sustentável. Parece ser de facto mais moderno sustentar bancos falidos e banqueiros corruptos.

PARTE V - presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros? Podia destacar uma das suas obras mais recentes, apresentar o contexto da criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

Neste momento – como de costume - encontro-me a trabalhar em vários: uma encomenda do Sond’Ar-te Electric Ensemble, uma peça para orquestra – ainda à procura de encomenda – estou também a concluir a mistura do meu novo CD. Para 2015 existem vários projectos de concerto na Alemanha, Bélgica e na China.

Como vê o futuro da música de arte?

Tendo em conta que a criação musical também passou a sofrer de uma contaminação que a pintura, a escultura e as artes decorativas já tinham, os mercados; fico um pouco apreensivo sobretudo com a desresponsabilização assumida por parte dos organismos vocacionados para estimular a criação.

Paulo Ferreira-Lopes, Setembro de 2014
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