Questionário/Entrevista
Parte I - raízes e educação
Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais? Que caminhos o levaram à composição?
António Chagas Rosa: Não nasci no seio de uma família musical, embora os meus pais gostassem de música e me levassem a concertos. Penso que o meu fascínio pela música dita clássica começou aos 10 anos de idade, assistindo aos concertos comentados de Leonard Bernstein que passavam na televisão.
Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si?
AChR: Lembro-me das aulas de composição livre de Constança Capdeville que tive no Conservatório Nacional de Lisboa. A Constança teve uma influência enorme sobre mim no plano da criação. Assinalo também as aulas de piano particulares que tive nos primeiros cinco ou seis anos de aprendizagem com Madalena Sá Pessoa; quando falo dela chamo-lhe sempre a minha “mãe musical”. Já graduado, as aulas de piano de Olga Prats foram fundamentais para o meu entendimento da partitura e do som.
Parte II - influências e estética
Que referências assume na sua prática composicional? Quais as obras da história da música e da actualidade mais marcantes para si?
AChR: Passei por um primeiro fascínio pelas obras do período intermédio da Segunda Escola de Viena, as do chamado “atonalismo livre”. Refiro as Três peças para orquestra de Alban Berg e todo o Webern dessa fase: música para mim intoxicante. O meu gosto musical foi profundamente marcado pela minha aprendizagem como pianista e também pelo meu trabalho como pianista de orquestra e de repetidor de ópera. A lista das minhas preferências é gigante: sei onde começar mas não onde acabar…
Mas se eu tivesse que ir para a tal ilha deserta levaria comigo o Quinteto de cordas em Dó Maior de Schubert, o Otello de Verdi e os opus 5, 6 e 10 de Webern.
A dicotomia ocupação – vocação pode definir a abordagem artística/profissional do compositor. Onde, na escala entre o emocional (inspiração e vocação) e o pragmático/racional (cálculo e ocupação), pode localizar a sua maneira de trabalhar e a sua postura enquanto compositor?
AChR: Como compositor gosto da rotina da escrita diária por largos períodos, algo que parece sempre esvaziado de inspiração para quem está ao lado. É claro que a visão precede o trabalho, mas é finalmente o trabalho que a materializa. Não sei se tenho postura de compositor; sou mais um artífice.
A música, devido à sua natureza, é essencialmente incapaz de exprimir qualquer coisa, qualquer sentimento, atitude mental, disposição psicológica ou fenómeno da natureza. O que a música exprime é apenas uma ilusão, uma metáfora e não realidade. Concorda ou não concorda com esta declaração? Como podia definir, neste contexto, a sua postura estética?
AChR: Seria preciso definir-se o que é a natureza da música antes de se dar resposta a este desafio; seria também necessário averiguar se uma ilusão não tem expressão sentimental. Eu sou muito pragmático no tocante aos conteúdos semânticos com que lido. Uma pergunta ainda sem resposta é se a música pode alguma vez imitar a natureza tal como Aristóteles enuncia na sua Poética. Kant, por sua vez, remete a música para a categoria do sublime, livrando-nos do problema de a explicar. Eu acabo por concordar com Pascal Quignard, que na sua Retórica Especulativa propõe a existência de duas linhagens na cultura ocidental: a dos filósofos (que trabalha a abstração) e a dos oradores (que trabalha a imagem). Os compositores pertencem obviamente à segunda. Na minha música há histórias que se narram através das imagens sonoras e estas são as ferramentas dos compositores. Assumo, pois, que construo um discurso de imagens, uma “oratio” de sons.
Existem algumas fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?
AChR: Não consigo assinalar nenhum evento que possa ter tido influência sobre o que se passa durante a escrita musical. Sinto que esta exprime algo próprio e de seu. Quando trabalho em obras vocais há obviamente um texto que serve de fuel extramusical mas que serve tão só de ponto de partida. Quiçá as maiores influências extramusicais sobre o meu trabalho provenham do cinema de Fellini, de Pasolini e de Kurosawa. Sobretudo a montagem de Pasolini é-me extremamente cara.
No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?
AChR: Os principais compositores do século XX passaram por mutações e é difícil identificar qualquer um deles como possuindo uma estética única. São todos Picassos com as suas fases azul e rosa. Vou mais por obras e para não estar a repetir Webern: Pelléas et Mélisande de Debussy; A Sagração da Primavera de Stravinsky; Os Sete Pecados Mortais de Kurt Weill; o Kammerkonzert de Ligeti. Reportando-me ao passado, gostava de saber escrever com a mesma consistência de um Marin Marais ou de um Chopin.
Existem na sua música algumas influências da cultura não ocidental?
AChR: Já escrevi bastante música vocal sobre poemas orientais a pedido da entidade que fez a encomenda. Apesar da pregnância e beleza dos textos, sinto que o meu processo de escrita e a minha herança cultural estão eivados da lógica ocidental.
O que entende por “vanguarda”? Na sua opinião, o que hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?
AChR: Actualmente, e contrariamente ao que pensava há uns quinze anos atrás, o conceito de vanguarda não me diz nada. Talvez um vanguardista seja aquele que é capaz de descobrir um tempo novo dentro de um tempo velho, embora esta expressão não tenha grande valor. Mas é um gesto efémero tal como uma onda que se desfaz na praia.
Parte III - linguagem e prática composicional
Como caracteriza a sua linguagem musical do ponto de vista das técnicas desenvolvidas na composição nos séculos XX e XXI? Há algum género / estilo musical pelo qual demonstre preferência?
AChR: Tenho dificuldade em descrever a minha linguagem musical. Mas há questões que me preocupam recorrentemente em termos de linguagem musical: o plano harmónico e a busca de relações entre acordes; tensões entre consonância e dissonância; timbre como expressão da ideia musical; o estudo infinito das possibilidades de cada instrumento.
Podia descrever o processo atrás da sua prática composicional? Compõe a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global da música?
AChR: Acho que vou aproveitar uma parte da pergunta para responder: componho a partir de uma ideia-embrião. Dentro da grande forma pode detetar-se a presença da forma-fragmento.
No contexto da sua prática composicional podia definir a ligação (ou oposição) entre o cálculo / raciocínio / processos científicos (por exemplo ligados a fenómenos acústicos) e a vertente mais virada para a emoção (os chamados "impulsos criativos")?
AChR: Uma partitura, na sua versão final, resulta de uma elaboração que passa por vários estádios. Tecnologia, raciocínio, e emoção estão ligados entre si, desde que estejamos a falar de música. Mas esses ingredientes são superados por algo que transcende os processos descritíveis e que pode surpreender o compositor a posteriori. Há sempre alguma coisa de inexplicável que acontece num estado de híper inteligência. Quanto mais se aprende menos se explica.
Que relação tem com as novas tecnologias (por exemplo com os meios informáticos) e como estas influenciam a sua maneira de compor, e a sua linguagem musical?
AChR: Nunca adoptei meios electroacústicos na minha escrita. Mas creio que o discurso musical, mesmo sem os referidos meios, pode assumir contornos de grande sofisticação e pode inclusive ser inovador.
Qual a importância da vertente espacial e tímbrica na sua música?
AChR: Espacial, nenhuma, tirando a minha preocupação com uma boa acústica de sala. Quanto ao timbre, já referi que é uma das minhas buscas prioritárias.
Qual a importância do experimentalismo na sua música?
AChR: Creio que estou sempre a experimentar, sem que isso implique qualquer tipo de filiação em estéticas ou clubes. Agrada-me a noção de começar sem saber por onde me levará o caminho.
Quais as suas obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso enquanto compositor?
AChR: Posso indicar o ciclo de canções Songs of the Beginning, a peça para orquestra de câmara Moh e o conto musical As Feiticeiras. Foram momentos em que contemplei aquilo que fiz sem ter a noção de se tratarem de coisas de minha autoria.
Parte IV - a música portuguesa
O que acha sobre a situação actual da música portuguesa? O que distingue a música portuguesa no panorama internacional?
AChR: Penso que não existe algo como “música portuguesa” dada a integração dos compositores portugueses num contexto cultural cada vez mais globalizado. Há sim compositores portugueses e sua respectiva problemática. Há inclusive compositores portugueses que têm reconhecimento internacional e isso deve-se a um mérito artístico próprio. Chegaram tempos difíceis para tudo aquilo que não representa o gosto do grande público, na lógica da maioria dos programadores. Esta evolução, que é dura, tem o seu quê de compreensível, dada a postura de muitos compositores das últimas décadas que se entretiveram a escrever música anti-músicos e anti-público, barricados atrás de uns artigos que leram. Com o retrocesso do chamado “estado social”, o que não é um fenómeno exclusivamente português (onde aliás o tal estado social nunca teve a expressão de países como a França ou a Holanda), há agora menos espaço para se ser “anti”.
No seu entender é possível identificar algum aspecto transversal na música portuguesa da actualidade?
AChR: Não saberia dizer qual.
Como poderia definir o papel de compositor hoje em dia?
AChR: Os compositores que conheço dão aulas em qualquer lado e escrevem à noite e ao fim-de-semana. Sem ironia, acho que o seu papel é semelhante ao dos atletas que correm por gosto.
Conforme a sua experiência quais as diferenças que pode distinguir entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo?
AChR: Bem, há partes do mundo que estão bem pior que Portugal! Só que nós nos comparamos com aquelas que sempre estiveram à nossa frente em termos culturais e económicos. Em Portugal, o poder político ainda considera que os gastos na cultura representam mais uma despesa do que um investimento. O maior problema português é o de nunca ter conseguido produzir uma elite que valorizasse e apoiasse continuadamente a música erudita para além do que ela representa em termos de evento social. Receio não estar a dizer nada de novo: no nosso país nunca fica mal dizer que não se percebe nada de música. Apesar dos esforços que os reis portugueses fizeram desde o século XVI para se criar uma escola de compositores, enviando bolseiros para Itália por exemplo, o poder burguês do último século e meio confunde patético com pateta, como vem descrito n’ Os Maias. Neste momento, após um desenvolvimento incrível na formação musical em Portugal nos vinte anos recentes, temos excelentes músicos jovens activos em toda a Europa. Na Suíça isto já é considerado um fenómeno. Mas no dia-a-dia português esta realidade é quase desconhecida. Há petróleo no quintal e ninguém dá por isso. Fica muito por dizer…
Parte V - presente e futuro
Quais são os seus projectos decorrentes e futuros? Podia destacar uma das suas obras mais recentes, apresentar o contexto da criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?
AChR: Neste momento estou a trabalhar numa obra para o coro Les Éléments de Toulouse. Trata-se de um ensemble de 18 vozes solistas, para o qual estou a experimentar técnicas de espacialização (pela primeira vez) e de rotação em torno da área do altar da Catedral de Toulouse.
Como vê o futuro da música de arte?
AChR: Talvez o futuro retome um conceito de composição que não se alimente de uma permanente hostilidade face ao público não iniciado na música contemporânea; que recupere a função do agrado na nova composição sem que isso represente facilitismo ou degradação aos olhos dos pares; que se encontre um equilíbrio entre financiadores particulares, iniciativa pessoal e apoio estatal. Johann Sebastian Bach escreveu para agradar aos seus mecenas e foi pago por isso. Não deixou de estar à frente de todos os seus colegas de ofício em termos técnicos e de ideia. Não deixando de inovar, não afrouxou porém a sua necessidade visceral de criar beleza. E, para mim, criar beleza é a coisa mais importante da vida.
Site oficial de António Chagas Rosa: www.chagasrosa.com
António Chagas Rosa, Fevereiro de 2015
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