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Dossier n.º 20 . Compositores Portugueses dos séculos XX e XXI . [ka'mi]

Parte I . raízes e educação

Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais?

[ka'mi]: O fascínio pela música e pelos sons começou muito cedo, tão cedo que não sei precisar. Já o estudo da música iniciou-se bastante mais tarde, na adolescência. Primeiro, quando recebi o bandolim deixado pelo meu bisavô paterno, instrumento ao qual a minha dedicação levou posteriormente à oferta da minha primeira guitarra pelos meus pais. A minha iniciação ao instrumento teve a dedicada supervisão do meu tio-avô, Mário da Silva – uma pessoa fantástica e um guitarrista prodigioso.

Que caminhos o levaram à composição?

[ka'mi]: Posteriormente, a minha formação foi grandemente autodidacta e neste sentido uma vertente composicional sempre lhe esteve associada. Lia livros sobre teoria musical, harmonia tonal e modal, acústica, contraponto, etc., dos quais procurava extrair conhecimentos e conceitos que pudesse autonomizar na minha música e forma de tocar. O meu amigo e percussionista Miguel Freitas leccionava-me solfejo, enquanto procurava frequentar alguns cursos de aperfeiçoamento como os cursos do Hot Clube em Loures, onde tive o privilégio de estudar com Vasco Agostinho. O meu autodidactismo levou-me igualmente a procurar incessantemente o conhecimento do repertório, de áreas tão diversas como a música clássica, o jazz, passando pelo rock, a chamada “música étnica”, etc.

Do crescente interesse pela música resultou a minha decisão de me dedicar exclusivamente à mesma, e encetei os meus estudos em Ciências Musicais na FCSH – Universidade NOVA de Lisboa. O método científico e a profundidade dos conhecimentos históricos trouxeram-me uma outra maturidade, a qual senti reflectida quando posteriormente fui estudar Composição na ESML – Escola Superior de Música de Lisboa.

Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si?

[ka'mi]: Não considero o processo terminado. A aprendizagem não conhece fim. Os momentos são muitos e variados, e nem todos contribuíram para o meu caminho enquanto compositor, e nem todos serão momentos positivos – o que não os impede de serem importantes. Em retrospectiva, e sem querer retirar valor a outras situações marcantes (ver nota biográfica), cada vez mais atribuo um valor inestimável aos anos em que, enquanto estudante na FCSH, juntamente com o meu amigo e colega Guilherme Proença, assistíamos quase ininterruptamente às Temporadas de Música da Fundação Gulbenkian, desde a dita “música antiga”, ao classicismo, romantismo, etc., até aos, naquela época ainda existentes e anuais, Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea. A nossa assiduidade apenas foi possível dada a generosidade da FCG para com os estudantes de música, e neste caso particular de Ciências Musicais, a que me afirmo extremamente grato. Esta foi uma convivência regular com música de diversos géneros e épocas musicais, de altíssima qualidade, de grande nível de interpretação e execução, no espaço e no tempo em que os sons existem e a música acontece... in situ.

Parte II . influências e estética

Que referências do passado e da actualidade assume na sua prática musical?

[ka'mi]: Algumas dessas referências estão patentes nas próprias peças de forma aberta, como sejam os casos de O Berio (2006), wyschnegradsky_revisited (2011), Funkin’ A. Webern’s Op. 21 Matrix (2015), Schub(h)ertziana (2008), ou por exemplo a série de obras electroacústicas Xenakis'sche Grauwacke I-V (2012-18). Outras encontram-se indirectamente implicadas como sejam como exemplo: Etude d’Ut: Absence d’une Mémoire Présent (2003), que evoca Jorge Peixinho; Mehreres Stille (2003) e Schubert; Rastos de uma Resposta (2008) com o mesmo instrumento que coloca The Unanswered Question de Charles Ives; ou o aproveitamento do nome de Arnold Schönberg em A.Sch_B: In memoriam Manuel João Fernandes (1920-2012) (2013).

Sucintamente diria que Grisey, Nono, Xenakis e qualquer compositor cujo apelido comece por “B” – especialmente Beethoven. As referências da actualidade constam da minha nota biográfica dos quais podia ressaltar Georg Friedrich Haas e Pierluigi Billone e aos quais podemos adicionar os nomes de Salvatore Sciarrino e Ole Henrik Moe.

No seu entender, o que pode exprimir e/ou significar um discurso musical?

[ka'mi]: Na música, e em especial na minha música, é irrelevante se algo é passível de ser exprimido, se algo é entendido como tal e/ou se algo é pretendido enquanto tal.

A recepção de uma obra é um fenómeno complexo e intrincado, que não corresponde obrigatoriamente àquilo que é proposto, ou sequer alguma vez... o unívoco em música é equívoco. E aí, prova-se ser fruto do abstracto... que por essa mesma razão, tão capaz é de exprimir o quer que seja, mesmo que não exista, e até o nada...

Existem fontes extra-musicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

[ka'mi]: Ver música em tudo o que me rodeia não é uma opção, não é uma escolha, nem mesmo uma pretensão, senão uma forma de ser e de estar na vida e no mundo. Seja produto da actividade humana ou da natureza, a absorção e compreensão do que me rodeia numa acepção musical é espontânea e inconsciente, por conseguinte, é-me difícil entender a distinção de uma categoria que se explica como extra-musical. Talvez me insira desta forma, numa visão da música mais próxima de um Boécio...

O objecto primeiro da minha atenção é em todo o caso maioritariamente associado a eventos sonoros (que também são extra-musicais) e a situações passíveis de traduzir em “narrativas” formais. Essas referências extra-musicais não são contudo de carácter programático, nem é pretendido que se reconheçam no meu trabalho. Na realidade, a maioria dos casos opera a um nível, que eu próprio relevo as suas fontes ao esquecimento, e nem por mim obtêm reconhecimento.

No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

[ka'mi]: Tal como em todas as outras áreas da minha vida, procuro aprender de tudo e de todos. Pode ser que nem sempre tenha essa abertura, mas é algo que procuro acarinhar. Na minha óptica um erro só é algo negativo se através do mesmo nada se aprender.

Sempre tentei dar-me a conhecer as diferentes correntes e estéticas do passado e da actualidade. De quase todas houve algo que retive, que me fascinou ou que me abriu novas perspectivas, mas o meu âmago experimental não me permitiu até agora casar-me com nenhuma delas – o que igualmente me permite uma distância objectiva, e liberdade para estabelecer as minhas próprias regras.

Existem na sua música algumas influências das culturas não ocidentais?

[ka'mi]: Certamente que sim, mas não de forma intencional. Os fenómenos de intercâmbio cultural dão-se actualmente a uma velocidade vertiginosa e acontecem de forma constante, pelo que a assimilação de influências de outras culturas se torna quase imperceptível (e coloca a questão se se podem distinguir traços objectivos e concretos entre as culturas que entram em contacto – no domínio do campo de estudos denominado “cultural transfer” têm sido debatidas e apresentadas diferentes ideias a este respeito).

Deliberadamente não creio que alguma vez tenha recorrido a elementos concretos de culturas não-ocidentais, com uma excepção no caso de Sadako’s Haiku (2014), peça para guitarra solo que se baseia na forma poética do haiku japonês, mas sobre a qual foi operado um sistema que permitisse o desenvolvimento e crescimento formais – e tal método em nada se procura rever na cultura japonesa ou na tradição desta arte literária.

O que entende por “vanguarda” e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?

[ka'mi]: A vanguarda é um termo bélico (avant-garde), que imediatamente revela na sua origem uma necessidade de conflito e uma predisposição para o confronto. Mais, revela que o indivíduo que assim se denomina pertence à primeira linha de “fogo”; é o actor principal do combate.

Certos termos são importantes num determinado momento da história, inseridos dentro de um contexto específico, seja social, geográfico, temporal, financeiro, etc.

Geralmente, e se a sua aceitação for predominante, esses termos tendem a cristalizar-se numa versão “alternativa” àquilo que originalmente realmente quiseram significar. Uma versão será mais fidedigna do que uma outra, não em si e per se, mas também consoante os contextos em que se encontra ou se emprega. A definição de vanguarda que remete para movimentos intelectuais e estéticos, de personalidades ou grupos que procuram “os novos caminhos”, estando na linha da frente da “modernidade” é uma versão que data de finais do século XIX e inícios do século XX. Na maior parte dos casos, estas posições eram deveras extremadas, vincadamente reivindicando uma posição inabalável. No caso da dita “música contemporânea” esta tendência permaneceu até praticamente finais do séc. XX, polarizando facções e formando “escolas” – todas elas querendo afirmar a sua universalidade, embora seguindo quase sempre princípios de não-inclusividade.

A meu ver, desde meados dos anos oitenta, esta tendência tem-se transformado numa cada vez maior pluralidade de perspectivas e numa maior individualidade em termos de proposta artística. Esta pulverização estética, rompe com a necessidade do uso de termos como “vanguarda”, claramente conotados com “monopolismos” de correntes (atenção à imagem de força e/ou a implicação de elos) polarizadoras do meio artístico.

Parte III . linguagem e prática musical

Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas/estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o inicio até agora.

[ka'mi]: Desde 2007, tenho vindo a experimentar diversas formas de aplicar sistemas de organização de alturas diferentes da divisão da oitava em doze partes iguais. Paralelamente à questão das relações entre alturas e o seu resultado, seja vertical ou seja horizontal, interessa-me a forma como outras organizações de alturas nos proporcionam resultados a nível de cor tímbrica inacessíveis no sistema convencional igualmente temperado. Neste domínio, devo salientar igualmente a importância do jogo de dinâmicas no trabalho que desenvolvo: a dinâmica não é apenas uma questão de volume ou intensidade sonora, ela está associada à nossa percepção de timbre, bem como à percepção da altura de um som.

Recorro em grande medida à série dos harmónicos, não no sentido de providenciar uma consonância que tem sido procurada por muitos compositores desde as publicações dos resultados das investigações de Helmholtz, ou como no caso da música espectral, de replicar o comportamento de um qualquer espectrograma. A série dos harmónicos funciona para mim como um elemento estruturante, que através das suas relações possibilita a transição entre diferentes sistemas de organização de alturas – desde algo próximo à diatonicidade, passando pelos tons inteiros, até ao cromatismo, estendendo-se para os quartos-de-tom, sextos-de-tom, oitavos-de-tom, etc.

Estruturalmente emprego o mesmo tipo de proporções (e por conseguinte de relações) que obtenho desta série, sem que tal implique o devir formal. A este nível reservo-me a liberdade de decisão entre aquilo que o material se auto-propõe, os gestos musicais que o empregam ou dele derivam, a criatividade e/ou inspiração do momento, ou até decisões a priori.

As técnicas a que recorro prendem-se sempre com um ou mais problemas composicionais específicos, para os quais procuro articular os processos que melhor respondam ao problema, ou que melhor de encontro à minha solução particular se adeqúem. Em seguida apresento alguns exemplos da variedade dos dispositivos a que recorro.

Em Epígrafe, Epífrase e Epifonema (2003) recorri a acordes simétricos, cujo eixo podia alternar sobre uma nota ou um intervalo; o desenrolar da forma e dos acontecimentos do material foram livremente desenhados numa folha A3, a qual posteriormente projectei sobre a partitura de forma proporcional e obedecendo a uma rede de “baixa definição”.

Na peça para piano solo, Étude d’Ut: Absence d’une Mémoire Présent (2003), coloquei em acção processos cromáticos sobre diversos parâmetros musicais, explorando a linearidade como variação, submetida a um processo de limitação da mesma – o evitar da oitava – intervalo a que reservei o seu espaço no final da peça.

Em Fragment (2004) utilizei um excerto da peça para guitarra, Discrepantia (2002), o qual explorei exaustivamente, recorrendo para tal, primeiramente a uma registação fixa, em seguida à multiplicação de acordes (o fragmento transposto por si mesmo), e finalmente propondo uma sucessão intervalar de justaposição do fragmento, originando uma rede para todo o âmbito instrumental, que permanece estática, sendo o dinamismo decorrente da figuração e articulação instrumental.

No caso de Harmonias Simétricas | Simetrias Harmónicas (2005) para quarteto de guitarras, adoptei os intervalos que na altura o meu amigo e compositor Hugo Ribeiro tanto favorecia – intervalo 1 e 7 (segunda menor e quinta perfeita) – para explorar caminhos num ambiente severamente constrangido. Na última secção da peça, adaptei o mesmo tipo de estruturas, não a intervalos concretos, mas a intervalos entre número de ordem na série dos harmónicos.

Em Peça para Eça – narrativa para orquestra (2007) tomei como ponto de partida a minha peça para flauta, Enquanto Canto Encanto Quanto (2003). O desafio era o de transformar uma música essencialmente monódica numa obra para orquestra. Entre outros processos de proliferação de material, existe uma secção nos sopros relativamente extensa, que se baseia em princípios de contraponto (compasso 189 a 252), cujas normas foram especificamente desenhadas para a situação em concreto, e ao material proposto em particular.

Desde 2007, tenho recorrido diversas vezes a estruturas directamente relacionadas com a série dos harmónicos, e com as proporcionalidades das suas relações impressas também a nível da estrutura temporal. Assim sendo, são determinados a priori pontos na linha temporal, nos quais algum evento deverá acontecer, sem que seja pré-definida exactamente a qualidade desse evento. É um tipo de sistema relativamente aberto, que me permite uma primeira instância de organização, ao mesmo tempo que me permite a liberdade de escolha e uma maior plasticidade no devir composicional. Este processo técnico teve início com Oito Minutos para orquestra (2007) e Jenseits des Klanges (2008) para ensemble instrumental, atingindo depois um patamar mais orgânico em Sonderart des Kreisens (2009-10) para flauta, clarinete, violino, violoncelo e piano, ou wyschnegradsky_revisited (2011) para oito instrumentistas. Esta técnica poderá ainda posteriormente ser encontrada (embora com algumas diferenças) em it never happened, so it just might happen again... (2017) para um(a) flautista de bisel e percussão, Mirando eu Miranda (2017) para soprano, clarinete baixo e violino, Manchmal ist es immer so (2018) para clarinete violino e piano ou Sonderart des Kreisens II (2018) para quinteto e electrónica.

Em Sadako's Haiku (2014) para guitarra solo, parti de cinco tipologias de elementos: harmónicos naturais duplos; ressonância por simpatia (com deslocação de meio-tom); cordas cruzadas; harmónicos combinados com glissandi e triplo hammer-on da mão esquerda. Cada um destes elementos obedece a uma estrutura temporal própria (semelhante a uma Talea sem o ser). A subsequente combinação destes elementos faz com que cada um deles adquira um contexto novo/transformado em cada apresentação. Por vezes a sua confluência provoca situações de elevada dificuldade técnica para o intérprete; outras vezes implica uma escolha do compositor sobre qual elemento a prevalecer num determinado contexto (levando por vezes à omissão de um que outro elemento).

Em Manchmal ist es immer so (2018) encontramos igualmente esta técnica de Talea diferente em cada dos instrumentos, mas projectados sobre uma superfície temporal “estriada” (para me socorrer do conceito de Boulez).

Em Funkin' A. Webern's Op. 21 Matrix (2015) para flauta, clarinete baixo, saxofone tenor, drum set, piano, violino, violoncelo e contrabaixo o desafio lançado pelo Platypus Ensemble era a reflexão sobre a relação entre a música contemporânea e a dança – o que foi apresentado sobre a designação de Groove Abend. A minha ideia foi a de viajar ao universo weberniano, misturando-o com padrões rítmicos básicos da música funk, por sua vez espelhados dentro de uma moldura de 5/4 como compasso. O uso da matriz do Op. 21 de Webern recebeu um tratamento especial e pouco convencional: contrariamente ao uso de linhas e /ou colunas da matriz, os tons em Funkin' A. Webern's Op. 21 Matrix advém de uma leitura da matriz em espiral no sentido dos ponteiros do relógio. À medida que a espiral se vai aproximando do centro, as características da série vão-se esbatendo – a primeira parte da peça é por este motivo intitulada Funkin' around. A segunda parte da peça repete este procedimento e ao atingir o centro toma o sentido inverso (ou seja o retrógrado), pelo que a segunda parte adquiriu o subtítulo In & Out.

Freed(om) of Choice (2017) para voz, flauta, clarinete baixo, violino, violoncelo, piano e maestro é uma peça escrita em forma aberta. Os seis instrumentistas têm à sua disposição três elementos definidos com diferentes graus de variação ao nível de diferentes parâmetros. É o maestro que tem a responsabilidade de “criar” a obra em “tempo real”. Para o efeito – e à semelhança de um jogo – existem um conjunto de regras que delimitam a utilização destes elementos por parte do regente. A ideia do título implica por um lado a liberdade de escolha, e por outro lado a ideia de livre de escolha (ou seja a ausência desta). Ao maestro foi deixado o papel de quem define quem realiza que elemento, mas não a especificidade do elemento. Os intérpretes têm inúmeras características dos elementos à sua responsabilidade mas não lhes compete a escolha do elemento a ser apresentado. O compositor escolheu as possibilidades, definiu as restrições (incluíndo com que elemento iniciar, como proceder quando a obra dura até X minutos e o que se diferencia a partir de Y minutos) mas não tem escolha sobre o devir da obra.

Embora a diversidade de dispositivos utilizados, sinto que todos eles reflectem as ideias auto-propostas e que em todos os casos se trata da minha música.

Há algum género/estilo musical pelo qual demonstre preferência?

[ka'mi]: Sem o querer afirmar, mas olhando para a minha produção musical, acho que se poderia concluir que existe alguma inclinação para a música instrumental, com especial incidência em pequenas formações de até oito músicos.

Mas seria ingénuo partir do princípio que qualquer compositor possa ter um grau de autonomia dentro do meio musical tão elevado, por forma a que aquilo que produza realmente implique as suas preferências directamente. Temos que ter em consideração as exigências do “mercado”, as diferentes experiências acumuladas, os projectos que são propostos, os recursos disponíveis, etc.

Admito um gradual interesse da minha parte em me expressar cada vez mais através da música electroacústica, mas também tenho que admitir que têm aparecido projectos que me interessaram a prosseguir nessa direcção.

No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo?

[ka'mi]: Este é um processo que, analogamente se poderia também referir em termos de técnicas de composição, difere consoante a obra e o seu contexto de criação.Tentando destrinçar a forma como o processo se desenvolve creio ser possível identificar três instâncias formadoras do projecto final: temos uma primeira instância que me ocupa sempre com especial importância que é a da instrumentação – daqui advêm quase sempre estímulos criativos e simultaneamente delimitações. Uma segunda instância que poderá ser absolutamente determinante no decorrer do processo compositivo prende-se com o requisito de duração da obra – e importante será também entender de onde partiu esse mesmo requisito. Escolha do compositor? É fornecida uma informação prévia?

Independentemente do caso, haverá uma resposta do compositor no sentido formal que melhor lhe aprouver para o projecto em mãos. A terceira instância resulta da proposição artística do compositor (intimamente ligada com as anteriores instâncias). Ultimamente a minha tendência tem sido a de tentar desenvolver a micro e a macro-forma de maneira paralela e independente. Esbater esta hierarquia não é um objectivo em si, mas outrossim a liberdade que confere às decisões que são tomadas durante a composição.

Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os “impulsos criativos” ou a “inspiração”?

[ka'mi]: Na forma como vejo a música, custa-me entender estas categorias como coisas separadas. Não sei se alguém conseguirá determinar ou caracterizar essa relação. Pessoalmente parece-me que uma boa ideia está sempre associada a um impulso criativo... ou será um raciocínio inspirado?

Talvez a questão se coloque ao nível do pré-determinismo composicional e a forma como o compositor se dispõe a admitir quebras a essas regras? Nos últimos anos tenho experimentado um pouco com formas abertas, particularmente nos casos de A.Sch_B: In memoriam Manuel João Fernandes (1920-2012) (2013) ou de Freed(om) of Choice, que não obstante um elevado grau de pré-determinação a diversos níveis, inibe/permite ao compositor outros âmbitos de gestão de uma obra.

Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música?

[ka'mi]: Parece-me interessante recordar aqui parcialmente a minha resposta a esta questão no Questionário do MIC.PT de 2013, pois aquilo que referi e apenas intuía na altura, tomou forma e corpo desde então:

"É importante entender o que se pretende significar com as «novas tecnologias». É uma terminologia que já adquiriu um espaço próprio, sem que no entanto seja claro aquilo que abarca ou o que restringe e que na sua designação mais completa se apresenta como «novas tecnologias de informação e comunicação». Por um lado são tão abrangentes, que dificilmente algum indivíduo poderá reclamar a sua «exo-existência» face às mesmas. Por outro, podem ser tão específicas que excluem tecnologias que lhe são semelhantes nos princípios e para os mesmos fins, embora diferentes nos meios.

É importante desmistificar o papel da tecnologia no mundo de hoje, e em especial na sua aplicação musical: nem sempre os desenvolvimentos mais recentes significam um avanço; nem sempre esse avanço é qualitativo; e mais importante ainda, em arte, qualquer avanço tecnológico, mesmo que qualitativo, não deverá ser um fim em si mesmo (…).

No campo da música dita electroacústica ou acusmática é onde estas «novas tecnologias» têm tido maior impacto e relevo. A minha experiência prende-se essencialmente com o uso de samplers, sequenciadores e síntese sonora, naquilo que se entende como “electrónica sobre suporte”. A música electrónica sobre suporte coloca-me na situação privilegiada de sincronia do papel de compositor e de intérprete (...)”.

Esta resposta foi dada cerca de oito meses antes da estreia de Xenakis'sche Grauwacke I (2012), durante o Festival Música Viva, em Lisboa. Aquilo que estava ainda a iniciar-se como uma tímida experiência de uma peça isolada deu origem a uma posição estética assumida e uma série de peças sob o mesmo título, a sexta das quais se encontra em curso. Esta série de peças, que em nada se relacionam entre si, além do título e da posição estética que lhes é subjacente, insere-se naquilo que comecei a denominar como música eco-electroacústica. A Atitude é primeiramente uma atitude de reciclagem. Os materiais que utilizo encontram-se todos eles nas gravações da minha própria produção musical. Com isto, os eventos que deram forma às indicações escritas na partitura, são eles agora alvo de escrutínio com o intuito de encontrar novas possibilidades de expressão. Inclusivamente ruídos do público e outros sons indesejados são potenciais novos objectos sonoros com que trabalhar. Deliberadamente recorro a meios tecnológicos, hardware bem como software, que já se encontram datados e ultrapassados, numa reacção de ironia tecnologicamente fundamentada face ao overload e ao hype do uso da tecnologia em si mesma.

É um impulso de recusa em acompanhar o credo de que apenas a “ultimissíssima” tecnologia é válida. Esta recusa espelha-se noutros aspectos do meu quotidiano.

O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música?

[ka'mi]: Considero que sim. A nível pessoal sinto que é um dos principais factores criativos naquilo que faço. Para mim experimentar é procurar aquilo que ainda não experienciei, não necessita para tal de ser inovador. Creio que se confundem muitas vezes estas categorias... para mim experimentar poderia até incluir algo explicitamente encarado (por outros) como conservador...

Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso?

[ka'mi]: Humildemente considero o meu percurso ainda demasiadamente curto para semelhante categorização. Fazendo um paralelismo científico, é um universo demasiadamente reduzido para que uma amostragem possa ser representativa.

Parte IV . a música portuguesa

Tente avaliar a situação actual da música portuguesa.

[ka'mi]: Gostaria primeiramente de salientar o facto de a última encomenda que tive para ser estreada em Portugal a 18 de Maio de 2018 não aconteceu, dado que o Sond'Ar-te Electric Ensemble se viu na necessidade de suspender as suas actividades por falta de financiamento.

Confesso-me perplexo e sinto-me um pouco alheio à situação que se vive para poder falar da mesma. Para eliminar suspeitas de que a minha resposta a esta questão tenha sido condicionada pelo acontecimento acima referido, opto aqui por transcrever a minha resposta a esta pergunta feita em 2013:

"Será talvez mais adequado falar de música em Portugal, e não de música portuguesa.

Em Janeiro de 2008, por ocasião da estreia de Peça para Eça no âmbito do Workshop para Jovens Compositores da Orquestra Gulbenkian, em conversa com Pedro Boléo do Jornal Público, tracei um pouco o cenário da música em Portugal. Na altura referi aquilo que me parece ainda hoje actual: existe um potencial enorme, especialmente a nível de recursos humanos. A questão que então colocava, permanece igualmente actual: seremos capazes de concretizar esse potencial?

Apesar de alguns esforços institucionais, estes permanecem aquém de lograr o que seria necessário. Os maiores desenvolvimentos têm acontecido na maioria dos casos, com o esforço, iniciativa e sacrifício individuais. As questões financeiras são fundamentais o suficiente para não serem negligenciadas nesta análise, mas os projectos a meu ver mais interessantes têm consistido de empreendedorismo desinteressado, muitas vezes sem qualquer tipo de orçamento, ou quanto muito extremamente reduzido. As novas gerações em conjunto com o empenho e boa-vontade de alguns “veteranos” têm proposto iniciativas inovadoras e uma qualidade musical bem acima daquilo que o investimento na área tem representado.

As formações de música de câmara têm proliferado, factor evidente de uma transformação no panorama musical em Portugal, e de uma nova mentalidade e postura do músico na sua relação com o tecido social. Há tão somente cerca de 15 anos atrás a situação era outra, na qual a produção musical estava (ainda) grosso modo associada a instituições – Christopher Bochmann identificava então num seminário na ESML esta situação como um caso sem paralelo no resto da Europa.

Também sinal desta transformação é o verdadeiro «boom» a nível da Composição em Portugal, facto a que não é alheia a instituição da disciplina ao nível do ensino superior. Eurico Carrapatoso identificou o fenómeno ao que apelidou de «segundo renascimento», numa terminologia que pode ser vista como descrevendo duas situações diferentes: por um lado, uma segunda idade de ouro da composição em Portugal, tal como o foi o renascimento musical em Portugal; por outro lado, como o renascer propriamente dito da arte musical num país onde as excepções confirmavam a sua inexistência.

Estes desenvolvimentos, por interessantes e ricos que pareçam não são suficientes. O meio musical não pode viver de explosões. Estes fenómenos do ponto de vista histórico têm tendência a ser episódios efémeros. A questão premente seria a de estruturar o potencial em mãos com o propósito de garantir uma continuidade. E aqui temos um problema não meramente conjuntural, mas político, financeiro, social, cultural, educativo e histórico.

A formação musical é um ponto fulcral no estabelecimento de uma sociedade comprometida e interessada com a arte dos sons, e não vou entrar no domínio do financiamento, mecenato, etc.

Outro ponto prende-se com a crítica musical, ou melhor, a ausência de crítica musical. Conjuntamente com os desenvolvimentos no meio musical anteriormente referidos, temos assistido paradoxalmente ao desaparecer da crítica musical. Tenho recebido com muito interesse notícias sobre algumas iniciativas para inverter o sentido destes acontecimentos. Se for este um verdadeiro «segundo renascimento», será então estranho para as gerações futuras o olvido de todo este fenómeno pelas diversas formas e espaços de comunicação social. A ausência de crítica musical significa consequentemente a ausência de recepção da produção musical. Significa igualmente, mesmo que indirectamente, a valoração de uma sociedade ao que lhe é proposto e em última análise, a sua ausência impossibilita o espaço de discussão, mitigando o potencial existente”.

Ao reler esta descrição apercebi-me que esta resposta já tem cinco anos; que essa entrevista na altura já tinha cinco anos e que portanto, a minha conversa com Pedro Boléo do Jornal Público data de há uma década!

Seria muito negativo ter de reconhecer que a situação permanece idêntica passados 10 anos. Mas não está. Dez anos passaram.

Como define o papel de compositor hoje em dia?

[ka'mi]: Numa palavra: irrelevante.
Em duas palavras: absolutamente essencial.
Em várias palavras: o cientista do futuro.
Noutras palavras: irrelevante sócio-economicamente; absolutamente essencial para a arte musical; o cientista do futuro como saída profissional.

De acordo com a sua experiência, quais as diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo?

[ka'mi]: Esta é a questão que se coloca imediatamente quando alguém se estabelece fora de Portugal. Eu apenas poderia referir-me àquilo que experienciei pessoalmente, e que se restringe um pouco ao espaço de língua alemã (Alemanha, Áustria e parte da Suíça).

Era aliás a questão que durante os primeiros três meses que vivi na Áustria, em Graz, mais recorrentemente se me apresentava. Após esses meses iniciais, a pergunta desaparece naturalmente... mas sem que se tenha obtido resposta – e tem explicação.

Se se pretender falar de algum projecto em concreto, por comparação com outro feito em Portugal... dou o exemplo, comparar os Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea (infelizmente desaparecidos), com o festival Wien Modern (caso de sucesso e referência), seria então possível fazer uma análise do público alvo, da afluência, dos meios envolvidos, do status do evento, do impacto nos media, do conteúdo dos programas, da linha de programação, etc. Eventualmente tirando conclusões sobre uma linha de acção que poderia ou não mimificar resultados, e/ou identificando características próprias a cada uma das situações, mas cuja linha de acção seria então passível, ela também de análise, e criar a partir deste modelo, um modelo que melhor se adaptasse às idiossincrasias do meio musical quer em Portugal quer na Áustria.

Quando a questão se nos oferece de forma mais generalista, perde o seu sentido e não encontra resposta (salvo mera especulação), porque estamos a falar de realidades tão distintas como se de dois universos diferentes se tratassem. E diferente não significa uma valoração. Necessitaria de semelhanças para encontrar as diferenças...

Parte V . a música portuguesa

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros?

[ka'mi]: Neste momento tenho alguns projectos a decorrer paralelamente, como sejam o quarteto de flautas de bisel Divina Styx, um dúo para trompete e tímpanos intitulado Trumpet's fake news on deaf Timpani e um outro duo para duas flautas transversais ainda sem título.

Existe um projecto para um quinteto para o Ensemble Platypus, com o qual tenho participado desde Junho de 2017 na qualidade de co-organizador e o projeto de um trio para saxofone, piano e percussão, para o Schallfeld Ensemble de Graz.

Poderia destacar um dos seus projectos mais recentes, apresentar o contexto da sua criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

[ka'mi]: wyschnegradsky_re-revisited nasceu de uma encomenda da organização cercle – konzertreihe für neue musik, pela pessoa de Lukas Haselböck. A encomenda destina-se a um concerto em concreto cujos intérpretes Alexander Eberhard (viola) e Igor Gross (vibrafone), deverão executar conjuntamente com Wolfgang Musil – responsável pela difusão da electrónica.

A encomenda tinha então especifidades concretas ao nível da instrumentação previamente definidas (embora o uso da electrónica tenha sido fornecido na qualidade de facultativo) e também ao nível da duração, que deveria comportar cerca de dez minutos. O duo Eberhard/Gross, que já conheço com anterioridade, dedica-se muitas vezes à música improvisada ou semi-improvisada, o que foi igualmente tido em consideração no processo composicional.

A peça faz referencia directa, tal como o título deixa explícito, ao compositor Ivan Wyschnegradsky, cujo trabalho pioneiro no ambito da microtonalidade (simultaneamente com Alois Hába desde os anos 20) nos deixou um legado musical muito importante, assim como as bases de um pensamento musical interessado em organizar e representar o “contínuo sonoro”. Tanto Wyschnegradsky como Hába procuraram desenvolver teorias de organização das alturas musicais que pudessem não somente estruturar as propostas microtonais, mas que igualmente pudessem incluir outros universos, como o dos doze tons igualmente temperados. Desta forma Wyschnegradsky recorreu a ciclos de intervalos, que pela sua natureza permitissem evitar as oitavas, conseguindo assim evitar a repetição de alturas. Destes ciclos o compositor distinguiu entre diversas formas de ciclos perfeitos e imperfeitos, sendo que os perfeitos se relacionam com ciclos de intervalos únicos e os imperfeitos por ciclos de dois intervalos que se vão sucedendo ad infinitum.

A peça apresenta com clareza momentos construídos sobre os “ciclos imperfeitos” concebidos por Wyschnegradsky, nos quais os intervalos de quinta perfeita e trítono se sucedem incessantemente (perfazendo na sua soma o intervalo de nona menor), ou na sua outra variante “complementar” com os intervalos de quarta perfeita e trítono (que perfazem o intervalo de sétima maior).

O universo da escala de doze sons igualmente temperados, maioritariamente atribuído ao vibrafone pelas suas características organológicas, é muitas vezes interrompido, adicionado, coadjuvado, perturbado, etc. pelas possibilidades microtonais à disposição da viola de arco. Este confronto/desenvolvimento entre estes dois universos é o verdadeiro motor da prossecução da peça.

Em muitos momentos o compasso torna-se inexistente e as relações entre os sons são o tecido sobre o qual o intérprete poderá construir o sentido da sua performance. É um recurso que me apraz deveras, pois geralmente o intérprete envolve-se desta forma muito mais com o todo e mais directamente com os outros músicos, implicando uma escuta activa a outro nível, e simultaneamente permitindo uma plasticidade bem mais orgânica da fluidez musical.

A electrónica nesta peça assume linhas propositadamente bastante rudimentares. Os parcos recursos tecnológicos necessários são também reflectidos na escolha dos materiais, que se resumem a três elementos: ruído branco (filtrado em tempo real por um equalizador de três bandas); glissandi de sons sinusoidais e um sample de um cluster do vibrafone em versão retrogradada (que será numa secção específica reiterada ad libitum). A função formal da electrónica é determinante no devir da peça.

(a estreia da obra a 6 de Junho de 2018 ainda não tinha acontecido, quando escrevi estas linhas)

Posfácio

[ka'mi]: Algumas das respostas deste questionário são compiladas de um outro questionário de 2013. Algumas respostas desse questionário foram omitidas e outras foram novamente respondidas.

Penso que é sempre com extrema dificuldade que um compositor fala da sua música. Algumas questões sobre linguagem e estilo musical, técnicas de composição ou posições estéticas, seriam provavelmente mais facilmente abordadas e respondidas, na terceira pessoa, por um musicólogo.

O compositor tende a ter uma visão distorcida sobre aquilo que faz, tendencialmente de subestimação sobre aquilo que fez, e completamente fantasiosa sobre aquilo que pretenderá fazer.

[ka'mi], Maio de 2013 e Junho de 2018
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