Em foco

Isabel Soveral


Primeiro elaboro muito tecido musical que já define vários parâmetros do mundo sonoro da peça, depois, início a obra, «dançando em cima de um chão» cheio de material à espera de nascer como narrativa musical. É um processo de libertação cheio de magia.

Prefácio

A música de Isabel Soveral, simultaneamente a nível macro e micro, pode ser caracterizada por uma morfose, transformação e desenvolvimento constantes, que podem ser atribuídos à influência que no seu imaginário, de um modo subconsciente, exerceu a obra de Ludwig van Beethoven. Uma das primeiras recordações musicais da compositora vem dos tempos da sua infância, quando ouviu Alfred Brendel a tocar no piano uma das peças do mestre clássico (esta paixão mantém-se até hoje). Isabel Soveral sublinha a importância da criação e da expressão artística no processo de autoconhecimento, ao mesmo tempo dando ênfase à influência da escola modernista, principalmente a sua evidência na música de Anton Webern e Karlheinz Stockhausen. “Há uma certa altura em que as minhas preocupações começam a ser outras. Quando nós começamos a saber, começamos a estar no fundo mais preocupados com o próprio estilo. O que é, como é que escrevemos... E aí há uma libertação.”[1] Contudo, não apenas a criação mas também a recepção da música é um factor significante “para a afirmação da carreira de um compositor”, enfatiza Isabel Soveral, “pois sem isso a sua obra nunca chegará a ser verdadeiramente conhecida.”[2] A obra não existe quando não é tocada e são mesmo os instrumentistas que dão o toque final na sua concretização, um dos momentos mais mágicos na vida de um compositor. Na sua totalidade o obra de Isabel Soveral é um espelho tanto do seu espírito, como do seu lado mais cru, menos transcendente. A “quinta essência” do seu trabalho enquanto compositora identifica-se na necessidade de comunicar através do som, tanto ao nível emocional, como racional.

Biografia

Isabel Soveral nasceu no Porto em Dezembro de 1961. O seu contacto com a música iniciou-se muito cedo, em casa, sob a orientação “espartana” da sua irmã. “Aos 10 anos de idade ingressei na Escola de Música do Porto, onde prossegui os meus estudos em piano e formação musical [sob orientação de Hélia Soveral e Madalena Soveral]”[3], recorda a compositora. Desde muito cedo começou também a ter contacto regular com a música contemporânea, a música do século XX. Estas primeiras experiências influenciaram as suas futuras escolhas musicais. Aos 18 anos, com uma forte necessidade de compor, frequentou o seu primeiro curso em Composição orientado por Jorge Peixinho, com quem viria a trabalhar até 1988. Foi sobretudo a personalidade e a capacidade criativa de Jorge Peixinho que incentivou Isabel Soveral a seguir o caminho da composição. Paralelamente fez os cursos de Piano e Composição no Conservatório de Lisboa, tendo trabalhado com Joly Braga Santos. Frequentou também os cursos orientados por Emmanuel Nunes (1984-87), os cursos de Música Electrónica dirigidos por Daniel Teruggi e Makoto Shinoara (Viana do Castelo, 1983 e 1984) e de Piano conduzidos por Claude Hellfer (1981-82). “A minha primeira peça é de 1983, [“Quatro variações”] para flauta solo, e há uma fase inicial que inclui essa peça, inclui os «Opiums» (para clarinete solo) e inclui a peça para piano «Fragmentos» correspondendo ao período que vai de 1983 a 1988, ano em que sigo para Nova Iorque. Essa fase é ingénua e experimental. Embora ainda aluna do Conservatório já trabalhava com o Jorge Peixinho particularmente até ao momento em que ele começou a dar aulas no conservatório.”[4] Em 1988 Isabel Soveral ingressou, como assistente, na Universidade Estadual de Nova Iorque em Stony Brook, na qual estudou sob a orientação de Daria Semegen e Bulent Arel, tendo obtido bolsas das fundações Calouste Gulbenkian, Luso Americana e Fulbright para os programas de mestrado e doutoramento em Composição. “[Nova Iorque] foi um novo mundo, não só porque tive acesso aos meios electrónicos e finalmente aos estúdios, como também todo o estilo de aprendizagem, todo o processo de trabalhar era diferente (...). Fazia parte de uma escola a sério, que apostava na formação teórica e técnica (...). A escola americana obriga-nos a ter formação técnica, aprendi como gravar concertos, etc. É uma formação complementar muito importante.”[5] A partir de 1995 Isabel Soveral é docente no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro onde ensina Composição, Teoria e Análise Musical. É membro do Conselho Científico do Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa, e coordenadora do Pólo de Investigação da UniMeM em Aveiro, Unidade sediada na Universidade de Évora.

A obra

Os inícios da actividade composicional de Isabel Soveral são fortemente influenciados pela personalidade de Jorge Peixinho: “...eu venho do Porto para procurar o Jorge, para trabalhar com ele, depois de um curso que ele fez no Porto. E essa fase foi importantíssima, porque para já o Jorge é, como a gente sabe, uma personalidade crucial na evolução da música portuguesa e era um “poço sem fundo” de informação e conhecimento. Falar com ele, conversar com ele, trabalhar com ele, foi uma experiência inesquecível.”[6] Os anos 80 foram, para Isabel Soveral, uma época não só de uma aprendizagem intensa, principalmente através do lado intuitivo, visto que ainda não tinha muita experiência na escrita, mas também de um experimentalismo que possibilitou a revelação das suas tendências expressivas. A sua primeira peça, “Quatro variações” para flauta solo revista sob a orientação de Jorge Peixinho e trabalhada com ele “em cima do momento”, mesmo que tenha sido uma espécie de exercício composicional, constituiu um grande passo para a frente na tentativa de descobrir e classificar as suas tendências expressivas, os gestos musicais que depois vieram identificar a sua linguagem musical. Outra influência importante na definição do seu imaginário sonoro encontra-se na música de Karlheinz Stockhausen e tanto “Opium I” como “Opium II” são duas obras que surgiram dessa revelação. “...eu poderia dizer que provavelmente estou bastante influenciada pelo mundo sonoro de Stockhausen. Mas só a esse nível, sonoramente, nos aspectos que a música de Stockhausen tem de orgânico, do material que evolui. Não estamos a falar de técnicas claras, estamos a falar de uma percepção bastante simples e física e que alimenta um imaginário para uma pessoa que é muito nova, e que vai por aí ser influenciada.”[7] Nas obras mais recentes, nomeadamente no ciclo de “Anamorfoses”, Isabel Soveral virou-se para um lirismo mais intenso[8], tentando equilibrá-lo com o rigor de construção. Ao nível do trabalho com os meios instrumentais (acústicos) e electrónicos tem explorado a fronteira entre o mundo electrónico e o mundo instrumental, concentrando-se, sobretudo, nas ideias de “sombra”, “proximidade” e “reflexo”. O código genético (ADN) da sua música é constituído pela noção de desenvolvimento, pelas combinações tímbricas que de certo modo reflectem o imaginário sonoro electrónico, mas sobretudo pelos dois opostos – a organização do material e a criação da própria obra que surge de “uma dança em cima do material”. O conceito que “atravessa o corpo principal das suas obras, servindo-lhe de título e de legenda operacional interna”[9] é a morfose. A sua música tem uma componente “visual”, por assim dizer, o que de uma maneira metafórica torna-a numa escultora de massas sonoras. No ciclo de “Anamorfoses” está presente, por um lado, um programa poético “pontualmente alimentado de referências extramusicais (na poesia, sobretudo de Arthur Rimbaud e Al Berto)”[10], mas por outro uma maneira de trabalhar que é muito orgânica, processual e evolutiva. Esta qualidade veio marcar toda a sua música posterior ao ciclo: “(...) hoje em dia, quando parto para uma obra, quando tenho a ideia de uma obra (…) começo a trabalhar o material. E trabalho imenso material, paredes de material, a casa cheia de material! É para mim a fase mais complexa do trabalho. Depois, quando tenho a base, começo a escrever a obra.”[11] O material, que tem potencial de dar origem a obras diferentes, é a corporização, o código genético de uma ideia sonora que define o campo, o espaço sonoro, a equação dos diferentes parâmetros musicais. Portanto, tanto as tendências expressivas, a espiritualidade e “psicologia” como o imaginário sonoro de Isabel Soveral estão presentes já neste material inicial. É exactamente neste processo, no qual se exprime a noção da morfose, da transformação, pois as “Anamorfoses”, fazendo referências a um processo da Física, são no fundo um ciclo que procura por uma ideia musical perfeita, por um material perfeito dentro da ilusão sonora no decorrer da obra. Em “Anamorfoses” a matéria sonora transmuta-se de uma obra para a outra. A “Anamorfose I” para clarinete e electrónica, uma peça experimental e com uma carga emocional e psicológica muito forte, foi escrita em Nova Iorque em 1993. Na obra encontra-se a primeira elaboração do material do ciclo – uma sequência intervalar de 9 notas, trabalhada tanto métrica como ritmicamente. Enquanto em “Anamorfoses I” a parte do clarinete (instrumental) foi escrita como primeira, em “Anamorfoses III”, de 1995 para violino e electrónica, é mesmo a electrónica que produz a sonoridade da obra, criando várias dimensões texturais, espaciais, de certa maneira levando o violino aos seus limites sonoros, sendo que tem um fragmento em que o violino explora o registo grave tocando uma oitava abaixo do seu registo “normal”. “Anamorfoses IV”, para violoncelo solo, por seu lado, constitui uma valorização do material escrito através da eliminação física da parte electrónica, que, todavia, se mantém na plasticidade e no reflexo da peça. Mesmo assim, na totalidade do ciclo, é a quinta parte, “Anamorfoses V” para quarteto de cordas, que constitui o verdadeiro ponto de viragem. Isabel Soveral apresenta-nos um novo material que entra em diálogo com o antigo, introduzindo uma outra dimensão através da utilização dos quartos de tom. O ciclo fecha com “Anamorfoses VII” para violoncelo e orquestra, obra que incorpora principalmente as sonoridades novas que surgem no quarteto de cordas. A estrutura formal da música de Isabel Soveral, que se distingue pelo “cruzamento entre liberdade e ascese”[12], resulta, por um lado, de um crescimento “centrípeto” do material, mas por outro, da libertação no processo de criação das próprias obras. Esta maneira de esculpir as massas sonoras leva-a a uma tendência de juntar as peças em ciclos – “Contornos” (1987-90), “Anamorfoses” (1993-2002), “Memoires d’Automne” (1998-2008), “Le Navigateur du Soleil Incandescent” (2005-2009), “Shakespeare Cycle” (2007-2011) – que, de facto, não terminam mas vão se interrompendo e retomando noutras fases, por vezes com novas abordagens. Isabel Soveral dá-lhes um fim “só naquele momento”, o que faz com que a sua obra mantenha uma abertura, uma “ânsia” de continuação. “Quando estreei as «Anamorfoses VII», a primeira coisa que disse ao António Chagas Rosa, que estava ao meu lado, foi: «Bem, isto podia continuar mais dez minutos (...).» Penso que (…) há realmente certas opções estéticas que estão presentes [na minha música]. Mas, talvez por eu ser capricorniana, a mim o que me preocupa é a coerência, a estrutura formal, forte, que me permite libertar em termos poéticos e criar uma obra que tenha essencialmente a ver comigo."[13] 1 - Entrevista a Isabel Soveral conduzida por Luísa Prado e Castro; www.mic.pt, 2003 2 - Entrevista a Isabel Soveral em: Sérgio Azevedo, "A Invenção dos Sons. Uma Panorâmica da Composição em Portugal Hoje", Editorial Caminho, Lisboa 1998, p. 396 3 - Entrevista a Isabel Soveral em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 395 4 - Entrevista a Isabel Soveral conduzida por Luísa Prado e Castro; www.mic.pt, 2003 5 - ibidem 6 - ibidem 7 - ibidem 8 - Sérgio Azevedo, "Soveral, Isabel"; em: Grove Music Online. Oxford Music Online; http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/48527 (acessado a 27 de Novembro de 2011) 9 - António Chagas Rosa, "Soveral, Isabel"; em: Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, direcção Salwa Castelo-Branco, Lisboa 2010, p. 1237 10 - António Chagas Rosa, op. cit., p. 1238 11 - Entrevista a Isabel Soveral conduzida por Luísa Prado e Castro; www.mic.pt, 2003 12 - António Chagas Rosa, op. cit., p. 1238 13 - Entrevista a Isabel Soveral conduzida por Luísa Prado e Castro; www.mic.pt, 2003

 

 

 

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