Em foco

Virgílio Melo


“Acredito na imaginação que, por um lado corrói os processos à força de desenvolvimento arborescente, e, por outro, rasga novos horizontes expressivos.”[1] Compositor, professor e musicógrafo, Virgílio Melo nasceu em Lisboa, em 1961. Iniciou estudos musicais no Conservatório Nacional de Lisboa em Violino e Composição, tendo sido particularmente marcado pelas aulas de Constança Capdeville e de Macário Santiago Kastner. “A Constança Capdeville era um daqueles fenómenos quase um pouco zen… não aprendi nada com ela, mas era daquelas pessoas que sabia abrir o que havia em cada pessoa – o não aprender neste caso é positivo. (...). Depois houve uma pessoa muito importante, o Santiago Kastner, porque contrariamente ao que se possa pensar não era exclusivamente (...) centrado na sua especialidade (a música ibérica). Ele foi a primeira pessoa, por muito que isso possa envergonhar outros professores, que me explicou com pés e cabeça o que era o dodecafonismo, por exemplo.” [2] Virgílio Melo estudou composição com Emmanuel Nunes em Paris e Colónia como bolseiro da Fundação Gulbenkian. Obteve o Diploma de Composição, por unanimidade, na Ecole Normale de Musique de Paris, o Primeiro Prémio de Estética do Conservatoire Supérieur de Musique de Paris e o Segundo Prémio de Música Electrónica no Conservatoire Royal de Musique de Liège (Bélgica). Frequentou também o Curso de Técnico de Som no Institut des Arts de Diffusion em Louvain-la-Neuve (Bélgica). Segundo o próprio compositor, a sua formação musical foi marcada por um percurso um pouco eclético, em que 5 nomes desempenharam o papel principal: Macário Santiago Kastner, “um homem com uma certa dimensão humanística e ao mesmo tempo conservadora, (...), alguém simpaticamente anarquista como a Constança Capdeville, alguém com o extremo rigor intelectual e sensibilidade de Emmanuel Nunes”[3] , o compositor Yoshihisa Taïra que o ensinou a abrir os ouvidos às sonoridades orientais, e finalmente Rémy Stricker, um excelente analista e musicólogo completamente virado para a psicanálise que o “ensinou a pôr as perguntas correctas e a ser vigilante em relação aos lugares comuns.” [4] Enquanto compositor, Virgílio Melo teve obras interpretadas em Portugal, França, Alemanha, Bélgica e Hungria. Participou nos Encontros de Música Contemporânea de Lisboa, no Festival Música em Novembro, no Festival Ars Musica em Bruxelas e no Festival Música Viva. Já recebeu encomendas de instituições tais como Porto 2001, Universidade de Aveiro, Escola Profissional de Música de Viana do Castelo, Artave e Atelier de Composição, nomeadamente para várias obras pedagógicas. Tem editadas as partituras na Oficina Musical, nas Ediciones Cecilia Colien Honegger e no Núcleo de Jornalismo Académico do Porto. Presentemente é representado pelas Edições do Atelier de Composição que têm no prelo várias obras. Estão igualmente disponíveis registos de obras suas em CD. “Sou um compositor com um ritmo lento, dentro dos horários possíveis, com uma preferência pela noite. Raramente utilizo o piano e cada vez me sirvo mais das possibilidades da informática, como auxiliar da concepção e também para o processamento do texto musical. As encomendas são bem-vindas, na medida em que me forçam a acelerar o ritmo de trabalho.” [5] Como musicógrafo, crítico e analista Virgílio Melo colaborou com diversas entidades tanto para publicações especializadas, como para outras de carácter mais generalista, nomeadamente no jornal Público, na revista Colóquio/Artes, Arte Musical, em diversos programas de concertos da Fundação Gulbenkian e do TNSC, na colecção “Compositores Portugueses Contemporâneos” editada pelo Atelier de Composição; [Cândido Lima (“Incidência e Coincidência dos Vários Opostos”) e João Pedro Oliveira (“A Abelha, a Escada e o Jardim”)] e nas publicações do Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa [um ensaio sobre a música de Álvaro Salazar (“Jogo e Sonho”)]. Esta vertente da sua actividade tem recebido a atenção da crítica especializada que salientou a “..fineza analítica e (...) solidez e pertinência teórica”[6] , ao mesmo tempo enfatizando que “... no âmbito da musicologia nacional, [Virgílio Melo] se perfila como um dos mais finos intérpretes da música portuguesa contemporânea.”[7] Segundo o compositor a crítica tem igualmente um papel informativo e pedagógico relativamente ao público. “A impossibilidade de subsistir apenas com labor composicional faz com que se exerçam um ou vários trabalhos «alimentares». No meu caso, e apesar do inevitável conflito com a actividade criadora, tenho o privilégio de desempenhar duas actividades que me são caras: o ensino e o jornalismo. (...). Forçosamente subjectiva, [a crítica] deve ser, por um lado, fundamentada, e por outro, ter em conta o contexto que rodeia o concerto.”[8] Virgílio Melo realiza regularmente sessões de audição comentada, em particular no norte do país. Possui igualmente experiência de direcção musical de vários agrupamentos, tendo tido aulas privadas de direcção de orquestra com Luca Pfaff e Jean-Claude Harteman. Leccionou em instituições como a ESMAE (Instituto Politécnico do Porto), a Universidade de Aveiro, a EPMVC (Escola Profissional de Música de Viana do Castelo) e o Conservatório Regional de Música de Vila Real. Para celebrar o 50º aniversário de Virgílio Melo, no dia 24 de Setembro de 2011 no Teatro Vilarinha no Porto decorreu um concerto monográfico dedicado à obra do compositor e integrado na 34.ª temporada da Oficina Musical (Ciclo Compositores Portugueses Contemporâneos) fundada em 1978 por Álvaro Salazar. “Em cartaz, obras que cobrem um período de 22 anos de criação musical – por ordem cronológica, “Nó” (1985; 13’), para flauta baixo solo; “A Tre” (1990; 3’), para três clarinetes; “A Glimpse of the Holy Darkness” (1995; 22’), para flauta, clarinete e violoncelo; “Circuitus” (2000; 13’), para flauta alto, flauta baixo e electrónica em tempo real; e “Canso Entrebescata II” (2007; 17’), para violino solo. (...) O conjunto das obras em cartaz, compostas entre 1985 e 2007, e espaçadas entre si em cerca de 5 anos, oferece-se à reconstrução de um percurso artístico em que é observável um crescendo e estabilização na exploração de possibilidades composicionais”[9] , escreveu Ângelo Martingo em Outubro de 2011 para o Espaço Crítica para a Nova Música.
A Música
A música de Virgílio Melo, uma personalidade artística singular e coerente no panorama musical português, caracteriza-se por um discurso “polissémico, que integra dimensões contrapontísticas e harmónicas apesar de suportadas por universos conceptuais distintos dos da tradição tonal europeia. Na conciliação destas abordagens, as suas composições mais recentes revelam uma clara opção pela «obra aberta»”[10] , e ainda por uma inspiração religiosa. Em relação às questões da técnica a sua música possui três vertentes – modal, serial e espectral – todas elas tomadas no sentido mais lato possível, apostando no cruzamento entre estas dimensões, para o que os meios electrónicos e as estratégias de abertura são ferramentas preciosas. Na sua música existe “uma tensão entre a literalidade do texto e a pluralidade do sentido, entre o rigor da escrita e aquilo irredutivelmente disperso que ela possa veicular. É nesse contexto que ganham contornos a pertinência e expressividade da electrónica e das técnicas instrumentais, convencionais e não convencionais usadas, fruto de uma imaginação que voluntariamente se disciplina e restringe, prevalentemente, aos instrumentos tradicionais, mas não sem explorá-los nos seus limites.”[11] “Circuitus” para flauta alto, flauta baixo e electrónica em tempo real, peça que foi estreada no Festival Música Viva em 2000, é a primeira tentativa do compositor de criar uma obra aberta, ao mesmo tempo fazendo uma ligação a vários outros aspectos – “o lado sagrado e simbólico e também a utilização da electrónica em tempo real.”[12] A peça possui “um clímax em que a palavra, desprovida do seu valor significacional, emerge com um carácter alucinatório no seio da música que sai dos instrumentos e daquela que, discreta, resulta, como mão invisível, da electrónica em tempo real.”[13] Virgílio Melo pretende estabelecer um esquema de modulação, de transição entre vários campos harmónicos e temperamentos. “Estou cada vez com mais vontade de compor para os instrumentos ditos antigos ou instrumentos exóticos porque realmente onde há mais resistência é no meio dos instrumentos ocidentais por razões puramente sociológicas e institucionais. E às vezes consegue-se coisas extraordinárias com uma flauta barroca ou um cravo – se pedir a um violino para ele tocar quartos de tom, ele protesta; mas se disser a um cravista – «olha, vou afinar isso de outra maneira», ele até fica interessado. E até é capaz de te propor: «Ah, mas há o Werckmeister tantos!…»”[14] “Epiclesis” (2003), uma peça para clarinete baixo e electroacústica estreada durante o Festival Música Viva 2003; por um lado, tem uma vertente espectral juntamente com a utilização da modulação em anel, por outro, constitui uma integração de várias músicas – canto gregoriano, “uma espécie de tabla electrónica” e um “apelo à oração muçulmana”[15] – reforçando desta maneira o seu lado programático, que tem a ver com a evocação do Espírito Santo. As possibilidades da informática, da síntese electrónica com o tratamento instrumental abriram enormes possibilidades expressivas por descobrir e explorar e também de criar “mediação entre mundos sonoros díspares.”[16] Virgílio Melo enfatiza que a organização do discurso electroacústico, no fundo, não é diferente da composição instrumental. O compositor dá preferência à combinação de meios electrónicos com execução instrumental ao vivo, optando frequentemente pelos instrumentos de sopro, entre os quais o clarinete é o seu recurso favorito. “Acho que [os sopros] têm uma sonoridade ao mesmo tempo muito humana, sincera, com um poder mágico (...). Eu gosto muito de tudo o que tem palheta (...) e há por aí uma onda de composições para clarinete [que] tem a ver com António Saiote que formou uma escola de clarinetes competentes. (...). E pronto eu fiquei um bocado fiel ao clarinete, ao clarinete e à flauta, que é óbvio que são instrumentos ágeis e flexíveis.”[17] Ao longo da sua actividade artística Virgílio Melo tem composto várias peças pedagógicas, cuja execução se destina aos estudantes e jovens músicos. A sua única obra para orquestra, “Embalos” (1997), encomendada pela Escola Oficial de Santo Tirso e estreada por uma orquestra de alunos de duas escolas profissionais (Santo Tirso e Viana do Castelo), tal como “Perdendosi” e “Gesang” (ambas de 1996) foram compostas precisamente com este objectivo educativo. Todas estas peças são relativamente fáceis tecnicamente “em que o desafio é fazer algo de interessante musicalmente, sobretudo não abdicando da sua própria estética e personalidade.”[18] A obra “Embalos” é baseada em melodias populares portuguesas, canções de embalar, que se desenvolve “na lógica do processus, a coisa que é contínua e que tem uma certa envolvente muito redondinha, sem grandes bicos, de par com um certo éclatement, uma certa dispersão do discurso.”[19] Virgílio Melo enfatiza a espontaneidade, a energia, o envolvimento e a honestidade dos jovens músicos que elevam a um alto patamar de qualidade a interpretação das obras. “É um prazer trabalhar com essa gente. Ainda nos faz acreditar na música e no lado sagrado – porque isso também está ligado ao lado sagrado, de respeito; a música é para ser respeitada. Uma pessoa pode não gostar, nunca mais tornar a pegar naquilo, tudo bem, mas a primeira atitude é de respeito.”[20]
A crítica musical
A música vive de sobreposições e confrontos que criam uma dinâmica, uma tensão fazendo com que a história de arte não seja “um mero arranjo temático-cronológico, como naqueles compêndios que parecem ignorar que Palestrina e Monteverdi são contemporâneos.”[21] “Eu tenho um lado um pouco apocalíptico, no sentido em que tenho fé em que isto vá dar uma grande volta, mas que vamos passar por umas catástrofes antes – e na música acho que estamos numa época problemática... eu sei que a história não se repete, mas é um pouco parecido com a época por volta da morte de Bach em que se fazia a apologia do estilo galante, uma espécie de antepassado do easy listening...”[22] Virgílio Melo sublinha a importância da qualidade da própria experiência auditiva – ao contrário da opinião geral, uma audição “inteligente” é, de facto, um dos actos mais participativos e interactivos que existe. “Eu nada tenho contra que se bata o pé, ou o rabo, ou outra coisa, mas aquela ideia que a audição é uma coisa passiva enfurece-me.”[23] Não sendo partidário das ideias políticas de Luigi Nono, é ao mesmo tempo sensível à sua concepção da audição como acto revolucionário – o compositor italiano salienta a necessidade de focar a atenção nos extremos da percepção forçando as pessoas a participar activamente no processo da audição. O “divórcio” entre a criação musical contemporânea e os públicos é uma “questão complexa que não se compadece com respostas simples. O próprio conceito do público, mesmo considerando que existe uma pluralidade de públicos, é escorregadio porque colectivo.”[24] O público, além de ser um material absorvente do ponto de vista acústico, na verdade não existe – há públicos com indivíduos que podem ser “tocados” ou não pela música. A situação de uma certa exclusividade ou invisibilidade da música contemporânea, não só em Portugal mas também ao nível internacional, deve-se também à polarização do próprio meio musical: “no fundo, temos uma grande tendência para ficar cada um no seu lado. Tal é lamentável, tanto mais que todos teríamos a ganhar com o intercâmbio das nossas experiências.”[25] 1 - Entrevista a Virgílio Melo em: Sérgio Azevedo, Sérgio Azevedo, "A Invenção dos Sons. Uma Panorâmica da Composição em Portugal Hoje", Editorial Caminho, Lisboa 1998, p. 354 2 - Entrevista a Virgílio Melo conduzida por Miguel Azguime; www.mic.pt, 2005 3 - ibidem 4 - Entrevista a Virgílio Melo em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 353 5 - ibidem, p. 357-58 6 - Público, “Mil Folhas” (suplemento cultural), 7 de Dezembro de 2002 7 - Público, “Mil Folhas” (suplemento cultural), 22 de Maio de 2004 8 - Entrevista a Virgílio Melo em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 357 9 - Ângelo Martingo, “Materializar o pensável”, Espaço Critica para a Nova Música (http://www.mic.pt/critica/pt/20111008_virgilio_melo.html), 8 de Outubro de 2011 10 - Rosário Santana, “Melo, Virgílio”; em: Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, direcção Salwa Castelo-Branco, Lisboa 2010, p. 764-65 11 - Ângelo Martingo, op. cit. 12 - Entrevista a Virgílio Melo conduzida por Miguel Azguime; www.mic.pt, 2005 13 - Ângelo Martingo, op. cit. 14 - Entrevista a Virgílio Melo conduzida por Miguel Azguime; www.mic.pt, 2005 15 - ibidem 16 - Entrevista a Virgílio Melo em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 358 17 - Entrevista a Virgílio Melo conduzida por Miguel Azguime; www.mic.pt, 2005 18 - ibidem 19 - ibidem 20 - ibidem 21 - Entrevista a Virgílio Melo em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 354 22 - Entrevista a Virgílio Melo conduzida por Miguel Azguime; www.mic.pt, 2005 23 - ibidem 24 - Entrevista a Virgílio Melo em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 356 25 - ibidem, p. 357

 

 

 

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