Em foco

Eurico Carrapatoso


Compor é uma paixão no sentido etimológico dessa palavra. Logo à partida, paixão como provação da dor. Só mais tarde, com o tempo, é que assumirá, se tudo correr bem, todos os outros sentidos..”[1]

Enquanto compositor Eurico Carrapatoso iniciou a sua carreira relativamente tarde (tinha 23 anos quando começou a estudar música), contudo rapidamente ganhou o seu respectivo lugar no campo da composição em Portugal. “Afirmou-se como um caso raro de popularidade junto do público, seja pelo humor e ironia contidos em algumas obras, seja pela integração na sua linguagem de afinidades tonais.”[2] Na sua postura estética, na qual Eurico Carrapatoso pretende afirmar-se como um compositor essencialmente livre de constrangimentos estilísticos, pode-se distinguir as influências de Francesco Landini a Gabriel Fauré, de Guillaume de Machaut a Igor Stravinsky, de Pêro do Porto a Fernando Lopes-Graça, de Claudio Monteverdi a Olivier Messiaen. Eurico Carrapatoso é um compositor que mantém uma ligação directa com as tradições musicais do passado (tanto ao nível formal, como da tonalidade) pretendendo combater o divórcio entre o público e a música contemporânea e invertendo à sua maneira as famosas palavras de Arnold Schönberg: “Se é arte, é para todos, se não é para todos, não é arte.”[3] A sua música caracteriza-se pelo estilo que confronta modalismos arcaicos, tonalidade cromática, harmonizações “pop” e algumas técnicas da vanguarda. “Manuseio o acorde perfeito com a mesma liberdade que manuseio um cluster. A responsabilidade do uso dos mesmos é-lhes conferida pelo contexto em que estão inseridos, pela coerência que aí assumem a posteriori (...).”[4] Eurico Carrapatoso nasceu em 1962 e é natural do distrito de Bragança. É licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Iniciou os seus estudos musicais em 1985, tendo sido sucessivamente aluno de José Luís Borges Coelho, que viria a ser o seu primeiro professor de composição, Fernando Lapa, Cândido Lima e Constança Capdeville que foi a sua professora de composição entre 1988 e 1989. “A visão quase onírica do mundo [de Constança Capdeville] teve um efeito hipnótico sobre mim que ainda perdura. As suas aulas tinham uma fragrância a sândalo. A sua presença era etérea e caminhava silenciosamente como quem voa baixinho...”[5] Entre 1991 e 1995 Eurico Carrapatoso foi aluno de Jorge Peixinho, tendo concluído sob a sua orientação o Curso Superior de Composição no Conservatório Nacional de Lisboa. “Tratava-se de uma das personalidades mais intensas e complexas da cultura portuguesa”[6], lembra o compositor. “E se a minha história como compositor mergulha na influência de todos os meus professores, reconheço em Jorge Peixinho a influência principal, não ao nível do idioma, certamente, mas ao nível da gestualidade lírica que se desprendia das suas últimas obras (...).”[7] Eurico Carrapatoso foi assistente de História Económica e Social na Universidade Portucalense. Leccionou na área da composição em várias instituições, nomeadamente na Escola Superior de Música de Lisboa e na Academia Nacional Superior de Orquestra. Desde 1989 é professor de Composição na Academia de Amadores de Música e no Conservatório Nacional, sendo professor do quadro desta última instituição. Recebe regularmente encomendas das principais instituições culturais portuguesas e a sua música tem vindo a ser executada, editada e difundida desde 1987 não apenas na Europa bem como nos outros continentes. Eurico Carrapatoso fundou ou foi elemento do júri de vários prémios de composição tais como o Prémio Jorge Peixinho, Prémio Eborae Mvsica-2.ª Escola de Évora e Prémio Dom Diniz. Ganhou as primeiras edições do Prémio de Composição Lopes Graça da Cidade de Tomar e do Prémio Francisco de Lacerda. A sua música representou três vezes Portugal na Tribuna Internacional de Compositores da UNESCO, realizadas em Paris em 1998, 1999 e 2006, com "Cinco melodias em forma de Montemel" (para soprano, trompa e piano), "Deploração sobre a morte de Jorge Peixinho" (para grande orquestra) e "O meu poemário infantil" (para tenor e orquestra). Uma das suas peças mais recentes, “A morte de Luís II da Baviera” (2010), drama musical em uma cena e um acto, sobre o texto de Bernardo Soares (adaptado por João Botelho), para soprano, meio-soprano, coro e orquestra, foi encomendada por ArDeFilmes e incluída em “O filme do desassossego” de João Botelho. Em Novembro de 2012 Eurico Carrapatoso vai estrear uma nova obra para orquestra em resposta a uma encomenda de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura. Em Maio de 2001 foi distinguido pela Sociedade Histórica da Independência de Portugal com o Prémio da Identidade Nacional. Foi condecorado pelo Presidente da República com a Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique a 10 de Junho de 2004. Em Maio de 2011 foi distinguido pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura com o Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes.

O 1.º compositor pós-moderno em Portugal? “O peso da história exerce uma enorme pressão, como a água dos mares a grandes profundidades.” [8]

Como recorda Eurico Carrapatoso a sua experiência de começar a tocar de ouvido a guitarra aos 13 anos, foi “uma abertura definitiva para a aproximação à música (...) através de uma propedêutica tropical, através do Tom Jobim.”[9] Na sua postura artística o compositor valoriza a tradição na medida em que está mais preocupado em “escrever música do que escrever a história”[10], tendo como seu fundamento dois “corpos teóricos e práticos”: a tonalidade e a identidade portuguesa, continuando, neste sentido, a tradição de Fernando Lopes-Graça, que exerceu uma influência directa particularmente no que diz respeito à sua música coral, na qual, por vezes, ressoa a memória do ambiente musical da sua terra natal, que se situa no concelho de Mirandela. Não obstante, o compositor nunca teve a abordagem musicológica, como Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, de recolher músicas tradicionais portuguesas. Segundo Eurico Carrapatoso na história da música prevalecem dois gestos principais – o classicismo, por natureza sóbrio e apolíneo, e o maneirismo, cuja atitude se reflecte tantas vezes no gesto dionisíaco e no gosto pela pura especulação matemática. Neste contexto, sublinha o compositor, hoje em dia “estamos no período de maneirismo mais extenso da história da música”.[11] “A «obsessão pela originalidade» da tradição de Darmstadt já silenciou certamente muitas formas de expressão artisticamente válidas (...)”[12], contudo, ao mesmo tempo, o compositor reconhece que “o experimentalismo vigilante, os meios radicais de expressão, tiveram uma importância incontornável na evolução da composição [ocidental].”[13] A sua linguagem musical mesmo que tenha evidentes afinidades tonais não tem intenção de “ser porta-estandarte de um retorno às velhas formas ou, muito menos, de um revanchismo estético primário.”[14] “Pensa-se que a música do século XX foi uma das músicas que mais evoluiu ao longo da história, mas se calhar não é bem assim...”[15], desafia o compositor e ainda acrescenta: “Não será já tempo de esquecermos os fundamentalismos ascético-musicais e de libertarmos o acto criador dos paramentos solenes e sacro-santos da «teologia da originalidade»?”[16] Eurico Carrapatoso é autor de mais que 150 obras de vários géneros – música de câmara, orquestra, peças para coro, óperas e música sacra, entre outros. E se a sua peça para 12 clarinetes “Roma é amoR” (1995) emprega técnicas “micro-polifónico-pan-cromáticas”, já o seu “Chorinho de mê filh’Antônio” se decanta num “enternecedor” si menor, o que em ambos os casos, segundo o compositor, constitui um gesto essencial da liberdade.

Uma reflexão subjectiva

Pós-modernismo[17], um termo de origem americana, começou a ser usado de uma maneira extensa a partir do fim dos anos setenta do século XX, com um amplo âmbito de conotações. Algumas vêm das associações com o “moderno” e “modernista”, enquanto outras da discordância nas implicações do prefixo “pós” ao “moderno” – contestação ou extensão, diferença ou dependência, regresso ou progresso. Pós-modernismo é usado para denominar um estilo que põe em questão algumas suposições sobre o modernismo, a sua base social e os seus objectivos – a fé no progresso, a verdade absoluta, a ênfase nas questões da forma e a renúncia da função explicitamente social da arte, colocando descontinuidade em cima da continuidade, variedade em cima da similaridade e indeterminação em cima da lógica racional. Neste contexto alguns aspectos do pós-modernismo têm os seus antecedentes modernistas (o movimento Dada, os futuristas, por exemplo) ou uma longa tradição na música (colagem, justaposição, apropriação e citação). Discute-se se o pós-modernismo pode ser uma atitude recorrente ao longo da história – desta perspectiva a dialéctica de moderno/pós-moderno é um alternado ciclo estético como clássico/romântico. A aplicação do termo “pós-modernismo” em relação à música de Eurico Carrapatoso, cuja obra tem gerado controvérsias no meio musical português, e também reações fortes da parte da crítica (tanto positivas como negativas), levanta alguns problemas de natureza musicológica e estética, que por ocasião deste “Em Foco” merecem uma curta divagação. Fazendo referência ao texto da autoria de Jonathan D. Kramer, “The Nature and Origins of Musical Postmodernism”[18], é preciso sublinhar que nem toda a música criada hoje em dia, mas que se refere de uma maneia mais directa (ou não) à história, pode ser denominada com este termo. O autor e compositor americano percebe pós-modernismo como uma atitude, que de facto podia ser distinguida durante as várias alturas da história da música (por exemplo no início do século passado na música de Gustav Mahler ou Charles Ives, cujas práticas composicionais podem ser percebidas em conformidade com os valores musicais e as estratégias de escuta contemporâneos) e que tem a ver, no fundo, com uma maneira de sintetizar (em muitos casos através de uma abordagem repleta de ironia) a variedade das linguagens musicais, sejam eruditas, experimentais ou populares. Pós-modernismo, mesmo que muitas vezes usado em oposição ao modernismo, não significa a sua rejeição, nem é a nostalgia pela época de ouro da música tonal (classicismo e romantismo). Por conseguinte, é preciso distinguir a oposição do pós-modernismo ao anti-modernismo, cuja atitude se inscreve precisamente nesta postura mais conservadora (sem as conotações pejorativas que este termo pode implicar). Tendo todos estes aspectos em conta, talvez seja mais adequado ver a atitude estética de Eurico Carrapatoso não no âmbito da filosofia pós-moderna mas precisamente como anti-moderna? Aliás, não é objectivo deste “Em Foco” dar resposta a esta pergunta complexa, mas apenas apresentar o problema de “classificação”, que em si própria é sempre imperfeita, particularmente no caso da música da actualidade, em que prevalece a convergência de várias estéticas, marcadas pelos pontos de vista individuais.

Jakub Szczypa

A resposta do compositor

Discordo da ideia encoberta neste último parágrafo. Apesar de estar contida em forma de pergunta, como foi cuidadosamente referido, insinua subliminarmente que a minha estética é anti-moderna. As classificações deste tipo são sempre imperfeitas. Não podia estar mais de acordo. Mas esta, para além de ser imperfeita, parece estar inquinada pelo erro de paralaxe a que o “zeitgeist” novecentista nos habituou, caído em desuso há já algum tempo e que, hoje em dia, só nos pode fazer sorrir. Estética anti-moderna? Nada mais longe da verdade. O prefixo “anti” tem uma pulsão melodramática que não se aplica à minha mundividência, à minha forma de estar, de ser e, finalmente, à minha forma de expressão artística. A minha estética nunca poderia ser anti-moderna. Nem anti-moderna nem anti-nada. A minha música é. Apenas é. Não tem máscaras. Estou em paz. Não há qualquer pugnacidade na minha condição humana e artística. Vivo em total harmonia com os meus pares. Só uma mente em conflito interior poderia alguma vez vislumbrar naquilo que sou e que faço o prefixo “anti”. Mas que fique bem claro: sigo o meu caminho, naturalmente, na plena fruição da liberdade. Sigo-o, assim como o Nunes, supostamente mais moderno, segue o seu. Assim como o Amaral, também supostamente mais moderno – muito embora noutra trajectória – segue o seu. Assim como o Côrte-Real, porventura mais moderno que eu (apesar de, na aparência, não ter uma trajectória tão moderna como os outros dois camaradas de armas), segue o seu. Assim como o Pinho Vargas, os Oliveiras, o Tinoco, o Madureira, os Azevedos, o Caires, o Delgado, o Lima, o Lapa, o Amorim, só para citar alguns, seguem o deles. Não é pelo facto de seguirmos caminhos diferentes e diversas formas de expressão que a minha música é anti-moderna ou anti seja-o-que-for, ou que a música deles é mais moderna ou mais seja-lá-o-que-isso-for (sem esquecer a questão da gradação comparativa: mais moderno do que / menos moderno do que / tão moderno quanto). Seria prioritário, aliás, e antes de mais, definir o que é uma atitude estética moderna, agora pela positiva, no propósito de clarificar os conceitos em jogo e o universo em que se movem. O que é o modernismo, hoje? Se alguém soubesse responder a esta questão, sem mergulhar em matéria pantanosa, já seria, por isso só, um prodígio. E, como concordamos, seria matéria suficientemente densa que não caberia, por certo, num parágrafo de meia dúzia de linhas. Finalmente, um último esclarecimento: a arte é indissociável do indivíduo. Leva consigo o cunho da sua personalidade. Se eu tivesse uma personalidade estética anti-moderna não perderia certamente o meu tempo a divulgar, saudando de múltiplas maneiras, quer em palestras públicas, quer no seio das minhas aulas, quer no espaço das novas tecnologias de informação, o fenómeno que venho designando, de alguns anos a esta parte, como o “segundo renascimento da composição portuguesa”. Fenómeno fascinante pela sua esplêndida diversidade estética, precisamente, e pela multiplicidade de formas de ser, estar e sentir artístico que nele se revela. Numa concessão à terminologia proposta, fazendo um exercício de estilo apenas com o fito de desmontar este tipo de classificações abusivas, pondo a nu a sua fragilidade, poderia acrescentar que aquele referido “segundo renascimento” (um binómio qualidade/quantidade de criativos portugueses contemporâneos que impressiona) oferece um cardápio bem variado, que vai dos menos modernistas (os crus), até aos modernistas bem passados, passando pelos médios. Oferta para todos os gostos, pois. Usei deliberadamente a metáfora culinária já que, no prisma da nomenclatura dos bifes (cru, médio e bem passado, sem esquecer o tártaro) se percebe mais claramente a real categoria filosófica deste tipo de classificações: pós-modernismo, ultra-modernismo, anti-modernismo, a-modernismo, pan-modernismo, e por aí fora. Longe do tempo-longo, que é o tempo da essência, estão aquelas classificações irremediavelmente infectadas pelo estigma do tempo-curto, que é o tempo das aparências e das paixões humanas. E é nesse ambiente cianosado, onde desfila o preconceito estético, que triunfa aquela que é, sem sombra de dúvida, a mais vulnerável das categorias filosóficas: o gosto pessoal.

Eurico Carrapatoso

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Deploração sobre a morte de Jorge Peixinho(1998) Orquestra Nacional do Porto, Mark Foster (direcção) Pórtico" (5.ª de "Cinco canciones para piano y voz emocionada") Sobre texto de Federico Garcia Lorca, no 100º aniversário do seu nascimento Sónia Grané – soprano José Manuel Brandão – piano Gravação ao vivo no Centro Cultural de Cascais (30 de Junho de 2009) A morte de Luís II da Baviera" (2010) Sobre texto de Bernardo Soares (“Livro do desassossego”), libreto de João Botelho Angélica Neto (Morte), Elsa Cortez (Providência) Coro Ricercare, Pedro Teixeira (direcção) Sinfonietta de Lisboa, Vasco Azevedo (direcção) Encomenda de ArDeFilmes para "O Filme do Desassossego" de João Botelho Gravado no Convento dos Dominicanos, Lisboa a 27 de Novembro de 2010 (captação sonora de Carlos Marecos) Sete peças em forma de boomerang – nº 4" (2000) José Massarrão (saxofone) Sinfonietta de Lisboa Vasco Azevedo (direcção) --- 1 Entrevista a Eurico Carrapatoso por Maria Ana Freitas em: Ideias Soltas 2 Vanda de Sá, “Carrapatoso Eurico” em: Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, direcção Salwa Castelo-Branco, Lisboa 2010, p. 251 3 Inversão da frase de Arnold Schönberg: “...se é arte, não é para todos, e se é para todos, não é arte”; "New Music, Outmoded Music, Style and Idea" (1946), em: “Style and Idea: Selected Writings of Arnold Schoenberg”, University of California Press 1984, p. 124 4 Entrevista a Eurico Carrapatoso em: Sérgio Azevedo, "A Invenção dos Sons. Uma Panorâmica da Composição em Portugal Hoje", Editorial Caminho, Lisboa 1998, p. 403 5 Entrevista a Eurico Carrapatoso em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 402 6 ibidem 7 ibidem (revisão do compositor, 22 de Março de 2012) 8 Entrevista a Eurico Carrapatoso por Maria Ana Freitas em: Ideias Soltas 9 Entrevista a Eurico Carrapatoso por Carlos Vaz Marques em: mic.pt, 2008 10 ibidem 11 ibidem 12 Entrevista a Eurico Carrapatoso em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 403 13 ibidem 14 ibidem 15 Entrevista a Eurico Carrapatoso por Carlos Vaz Marques em: mic.pt, 2008 16 Entrevista a Eurico Carrapatoso em: Sérgio Azevedo, op.cit., p. 404 17 Jann Pasler, "Postmodernism" in: Grove Music Online. Oxford Music Online (23 de Janeiro de 2012) 18 Jonathan D. Kramer, “The Nature and Origins of Musical Postmodernism” em: Judy Lochhead e Joseph Auner, “Postmodern Music/Postmodern Thought”, Rutledge 2001

 

 

 

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