Em foco

Álvaro Salazar


"...desde sempre considerei a música, para além de uma via profissional, uma forma de estar no mundo e de tentar compreendê-lo. A música não é um mero tricot mental, uma actividade desligada do todo onde arte, ciência, história, filosofia e política dialogam, interagem e se completam.”[1]

Compositor, maestro, professor e crítico musical, Álvaro Salazar nasceu no Porto (1938), onde iniciou os estudos musicais que prosseguiu no Conservatório Nacional de Lisboa. “Oriundo de uma família onde a atracção musical jamais significou opções profissionais, pelo menos entre os parentes mais chegados, iniciei o estudo do piano, por vontade própria, cerca dos treze anos, com uma senhora amiga da família (...). Também me interessou na época a guitarra clássica que comecei a tocar como autodidacta na companhia de alguns amigos e, logo em seguida, sob a orientação de um professor.”[2]

Em 1962 Álvaro Salazar licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa, ingressando mais tarde na carreira diplomática que veio a abandonar em 1972. Desde então, dedica-se exclusivamente à música. Continuou a sua formação académica na École Normale de Paris (1973-75), onde complementou o Curso de Direcção de Orquestra. Teve como mestres, no estrangeiro, Gilbert Amy (Análise), Hans Swarowsky e Pierre Dervaux (Direcção de Orquestra) e, na qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, frequentou em Paris o Estágio de Música Electroacústica do Groupe de Recherches Musicales. Nas provas finais do curso de direcção na École Normale de Paris foi-lhe concedida, por unanimidade, a mais alta classificação.

Em 1978, Álvaro Salazar fundou a Oficina Musical, grupo dedicado ao estudo e divulgação da nova música, do qual é director artístico. Até hoje o grupo levou a cabo centenas de espectáculos, nos quais colaboraram, além dos elementos dos seus conjuntos instrumentais, jovens artistas em início de carreira (o apoio a estes últimos é uma das directrizes da Oficina Musical) e agrupamentos e solistas do mais elevado nível.

“A grande aula de composição que eu tive foi o estudo das partituras, a análise das partituras de outros autores. E a direcção deu-me de facto um meio excepcional de ter contacto com essas obras – e de poder portanto analisá-las, estudá-las e dirigi-las ainda por cima”[3], diz Álvaro Salazar na entrevista dada ao Centro de Investigação e Informação da Música Portuguesa em 2005. O compositor teve um papel fundamental na leccionação da Análise, que então não fazia parte do “curriculum” dos Conservatórios. Além disso foi professor de Composição (ATC) e de Música de Conjunto (Séc. XX) na Escola de Música do Conservatório Nacional e leccionou nas Escolas Superiores de Música do Porto e de Lisboa as disciplinas de Introdução à Música Electroacústica, História da Música do Séc. XX e Estética.

Como chefe de orquestra, Álvaro Salazar actuou à frente das principais orquestras portuguesas e ainda em Espanha, Colômbia, França, Alemanha e Itália. Devem-se-lhe primeiras audições mundiais e portuguesas de autores tão significativos como Leoš Janáček, Charles Ives, Anton Webern, Heitor Villa-Lobos, Edgar Varèse, Hans Eisler, Paul Dessau, Kurt Weill, Morton Feldman, György Ligeti e Michael Finnissy, entre muitos outros. Tem participado, como compositor e membro de júri em concursos de composição, e como conferencista em vários cursos e festivais internacionais (Brasil, Chile, Colômbia, Alemanha, Espanha, Itália e Polónia). Esteve também presente, como crítico convidado, nos festivais de Royan, Berlim Leste e Varsóvia.

Colaborador habitual dos Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea, Álvaro Salazar desempenhou as funções de maestro titular do Grupo de Câmara do Festival do Estoril desde 1979 até 1985. “O que fiz [enquanto maestro] foi programar obras contemporâneas, sempre que possível (...) Apesar da resistência das orquestras e dos seus músicos que são , com raras excepções, bastante conservadores...”[4]

Pelos serviços prestados à cultura musical Álvaro Salazar foi agraciado com a Medalha de Mérito (ouro) da Câmara Municipal do Porto e com o “Prémio Almada” do Instituto das Artes (Ministério da Cultura).

Nos próximos meses do Outono várias obras da autoria de Álvaro Salazar serão apresentadas tanto em Portugal como no estrangeiro: o Quarteto de Cordas de Matosinhos tocará a “Décima quinta Anotação, in memoriam Fernando Lopes-Graça” (uma encomenda da Câmara Municipal de Matosinhos) no dia 25 de Setembro na Casa da Música e no dia 6 de Novembro no Teatro Nicolás Salmerón de Madrid integrado no Ciclo de Conciertos de Música para el Tercer Milenio; o Festival Música Viva 2012 vai dar um destaque à obra de Álvaro Salazar no concerto de inauguração, a 18 de Setembro no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, em que serão interpretados os “Estudos Incomunicantes” I/A e I/B, que estão estreitamente interligados, o segundo dos quais será apresentado em estreia absoluta. No dia seguinte do Festival Nuno Aroso, no recital com obras para percussão e electrónica, irá apresentar a estreia absoluta de “Giuoco Piano” uma peça composta por Álvaro Salazar em 2011. Além disso em Novembro no dia 27 o Remix Ensemble Casa da Música, sob a direcção de Peter Rundel, vai estrear o seu “Triplo Concerto Grosso”.

Objectos sonoros e silêncio

A gramática composicional de Álvaro Salazar apresenta uma apetência por texturas claras na qual é possível delinear “a exploração da fronteira entre som determinado e não determinado, o uso do silêncio como valor estrutural e dramático, e também o uso controlado do aleatorismo”[5], como nas peças mais emblemáticas de Witold Lutosławski. Entre as suas principais obras contam-se as peças de câmara “Palimpsestos”, “Ludi Officinales”, “Périplos”, “Quadrivium”, “Intermezzi” e “Taleae”, e as partituras para orquestra “Glosa e Fanfarra Sobre uma Fantasia de António Carreira”, e também “Tropos I”.

Álvaro Salazar sublinha a importância da análise no seu percurso que constituiu a sua grande escola de composição e que tem a ver com o seu trabalho enquanto maestro e musicólogo. Mesmo que o seu catálogo (após 1965) não contenha nenhuma obra dodecafónica é preciso enfatizar o seu conhecimento profundo dos princípios composicionais da 2.ª Escola de Viena e a influência desta na sua linguagem, assim como na sua maneira de perceber a música, de dar o mesmo valor a todos os objectos sonoros sejam eles sons temperados, não temperados ou ruídos. Entre as principais influências da sua gramática musical Álvaro Salazar distingue Edgar Varése, Luigi Nono, Franco Donatoni e Morton Feldman. “Varèse é, de facto, uma das minhas paixões, um compositor que me deslumbrou com a sua energia, a exploração dos limites dos instrumentos, toda a intuição do que poderemos já considerar objectos sonoros, a construção em blocos, as melodias germinativas, etc.”[6] “Na Escola de Viena… obviamente Webern, pela sua economia de meios, o seu rigor, influenciou-me ou talvez o meu temperamento já seja algo weberniano… Foi mais nesse rigor construtivo, no rigor de pensamento, na utilização do silêncio...”[7] “Há curiosamente um autor que muito me marcou e continua a marcar: Morton Feldman. Ele de certo modo inverte as funções do som e do silêncio.”[8] “No princípio dos anos 70 fui muito tocado por um autor italiano que é o Franco Donatoni. Assisti a vários Festivais de Royan, onde ouvi algumas peças que me interessaram e ainda interessam, pela sua textura filiforme, pelo seu ping-pong sonoro. Ainda em Itália, também o Luigi Nono da última fase me interessou e me influenciou mas já numa fase mais tardia.”[9]

Em 1965 Álvaro Salazar decidiu destruir todas as obras que tinha apresentado até então, partindo, de certo modo, “do zero”, no seu percurso enquanto compositor. Neste contexto, a série “Palimpsestos” – n.º 1 para piano solo, e n.º 2 para flauta solo – composta nesta altura, é informada por resquícios ou “citações” de obras anteriores retiradas do seu catálogo. “É evidente que tive a certa altura a consciência de que as obras anteriores a 65, eram incipientes, ou desactualizadas, quando não as duas coisas. Em vez de guardar monos, dei-lhes um justo destino e admito que não tenha sido a última destruição da minha vida, embora julgue (parecerá pretensioso?) que me aproximo talvez do momento de fazer minha a interrogação de Virginia Woolf: «Estará a chegar a altura em que poderei suportar a leitura das minhas palavras impressas sem corar, nem tremer, nem querer esconder-me?»”[10]

Na exploração do “espaço não temperado ou do micro-cromatismo generalizado ao espaço não temperado” (o ciclo “Intradas") a música de Álvaro Salazar apresenta um gosto particular pelas texturas em que o som é esculpido pelo silêncio, apontando também para o sentido de múltiplos diálogos entre a música electroacústica e o instrumental acústico legado pelos séculos passados e ao mesmo tempo afirmando a sua incapacidade de distinguir entre som musical e ruído. “Um objecto sonoro, um ruído branco no meio de uma Sonata de Mozart, é obviamente um ruído... numa obra do Emmanuel Nunes, uma sequência de acordes perfeitos difícilmente deixaria de constituir um ruído… De qualquer modo a minha tendência estabelece essa fronteira pouco nítida entre som e ruído, ou entre som musical e espaços não temperados.”[11]

A música portuguesa – “eterno recomeço” e perspectivas

Mesmo que no século XX a música portuguesa tenha passado, por razões de natureza política e geográfica, por periódicas tentativas de absorver as novidades surgidas nos outros países da Europa (Álvaro Salazar fala-nos do eterno recomeço da música portuguesa), ultimamente as condições musicais em Portugal têm passado por transformações profundas e a situação hoje em dia é diferente. Apesar dos problemas que ainda permanecem e que, de certo modo, são uma reflexão da situação a nível internacional “no campo da composição, existe um número significativo de jovens autores interessados numa carreira profissional, o que se deve a um ensino mais actualizado e dinâmico e, por outro lado, ao surgimento de estímulos e apoios (concursos, concessão de bolsas e toda uma política de encomendas) [mesmo que ainda poucos] que anteriormente eram apenas esporádicos.”[12]

A recente animação do meio musical português contemporâneo pode resultar no (re)estabelecimento de uma tradição da música portuguesa em que se encontrará um equilíbrio entre o cosmopolitismo e a afirmação mais nacionalista. “Talvez seja pertinente chamar à colação conversas que, sobre estes assuntos, o Jorge Peixinho e eu tivemos, nas quais o Jorge exprimia a convicção (igualmente minha) de que toda a obra escrita por um compositor português conterá algo da nossa maneira de ser colectiva. O quê? Pergunto. (...). O que ambos admitíamos era, muito simplesmente, a existência de certas características idiossincráticas, de gestos compositivos e formas de discurso melódico, etc. que talvez percorram a música dos autores nacionais, mesmo quando aparentemente mais desligados da nossa cultura.”[13]

Álvaro Salazar no YouTube

“Intermezzo IV/A” (1993) Sofia Lourenço, piano solo Auditório de Serralves, Janeiro de 2011

“Acalanto para Implumes” (2006)

--- 1 Entrevista a Álvaro Salazar em: Sérgio Azevedo, "A Invenção dos Sons. Uma Panorâmica da Composição em Portugal Hoje", Editorial Caminho, Lisboa 1998, p. 139 2 ibidem, p. 136 3 Entrevista a Álvaro Salazar conduzida por Miguel Azguime; mic.pt, 2005 4 ibidem 5 Tomás Henriques, "Salazar, Álvaro", em: Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, direcção Salwa Castelo-Branco, Lisboa 2010, p. 1158 6 Entrevista a Álvaro Salazar conduzida por António Pinho Vargas em: Arte Musical, IV Série, n.º 2, Lisboa 1996, p. 54 7 Entrevista a Álvaro Salazar conduzida por Miguel Azguime; mic.pt, 2005 8 ibidem 9 ibidem 10 Entrevista a Álvaro Salazar conduzida por António Pinho Vargas em: op. cit, p. 57 11 Entrevista a Álvaro Salazar conduzida por Miguel Azguime; mic.pt, 2005 12 Entrevista a Álvaro Salazar conduzida por António Pinho Vargas em: op. cit, p. 57 13 ibidem, p. 66

 

 

 

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