Foto: Daniel Schvetz · © Denys Stetsenko
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Questionário / Entrevista
· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras/ musicais, destacando um ou vários aspetos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente. ·
Daniel Schvetz: Os meus avós paternos nasceram em Odessa na Ucrânia. A minha avó, violinista e aluna de Stoliarsky, foi colega de David Oistrakh. Depois de emigrarem para a Argentina nos anos 20, ela fez parte da Filarmónica de Buenos Aires. Faleceu muito nova. O meu pai foi colega de Maurício Kagel, Bruno Gelber e Martha Argerich, tendo estudado com Vincenzo Scaramuzza, mas não fez do piano a sua profissão. Da parte da minha família materna, a grande maioria das pessoas eram actores de teatro de varieté, em yiddish e russo. Viajaram por todas as vilas em que havia alguma comunidade judaica apresentando os seus espectáculos. Depois, a partir dos anos 30, continuaram a fazê-lo na Argentina e por toda a América Latina. Na minha casa paterna havia uma grande coleção de LPs que me nutriram abundantemente durante longas sessões a ouvir de Bach a Bartók, de Louis Amstrong a Miles Davis e Oscar Peterson, Chico Buarque, Jobim, muita música brasileira e os grandes intérpretes e representantes do tango.
· No decorrer do seu percurso, quando percebeu que dedicaria a sua actividade criativa e artística à composição? ·
DSch: A curiosidade e sintonia com a música, na altura com o piano como elemento e nexo fulcral, deu-se a partir dos meus 13–14 anos, apesar de ter começado a tocar piano de ouvido mais cedo, provavelmente aos meus dois–três anos. Foram improvisos, talvez um início longínquo e naturalmente sem um valor real. A composição como actividade central, como o verdadeiro substituto do piano no sentido real, começou só a partir dos 18 anos, apesar de sempre ter sido a improvisação (livre e não ligado ao jazz) uma prática anterior ao início de aulas de piano regulares, talvez já aos seis ou sete anos.
· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objectivos «y»? Ou acha a realidade demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·
DSch: De facto, não me dedico a especulações deste tipo.
· Quais são as suas preocupações artísticas/ criativas principais no tempo presente? ·
DSch: São numerosas, ligadas a diferentes registos conforme os materiais, o espaço, os intérpretes, e claro, as preocupações ou interesses pessoais, seja na própria gramática das obras, seja nos conteúdos evocados ou tratados. A preocupação que sempre me acompanha como alma ou foco central tem a ver com o que chamaria linguagem ou estilo, reflexo do que sinto como algo próprio, não pela eventual originalidade, mas como material sonoro e artístico com ecos orgânicos daquilo em que me reconheço, não só tendo em conta o resultado puramente sonoro, mas no qual podem habitar traços muitas vezes dificilmente explicáveis em palavras, aos que chamaria de «misteriosos», que não passam necessariamente pelos recursos técnicos ou materiais/ conteúdos subjacentes, nem por descrições de algum tipo.
· Como poderia descrever o timbre da sua música? Acha que é possível encontrar nele os seus interesses musicais da juventude? ·
DSch: Sabemos que há parâmetros na música cuja descrição não admite abordagens quantitativas (haver mais ou menos timbre, ou quantidade de timbre...). Sempre me fascinaram as múltiplas combinações das diversas fontes sonoras, as que nos proporcionam os chamados instrumentos musicais, que estão à disposição do compositor, seja a área que for. Os primeiros rascunhos com que me aproximei à escrita musical, são uma série de peças curtas para violino e piano, em que a abordagem era um misto de conhecimento e intuição. A curiosidade e os interesses no terreno tímbrico são paralelos àqueles da forma e estrutura, assim como os da própria linguagem, em que, concretamente o timbre, é em si próprio, componente ou, melhor ainda, linguagem. E é linguagem, no meu caso, pois com muita frequência a orquestração ou a instrumentação governam, conduzem e/ ou carregam (metaforicamente) grandes secções das obras, tal o caso do “Concerto para Bandoneón e Orquestra” (2011), de “Mil Panderos de Cristal” (2024) para duo de tubas, orquestra de sopros e percussão, da ópera “O Defunto” (2007), da sonata para piano, entre outras peças. Não obstante, apesar de não constar na pergunta, sinto redutor não mencionar parâmetros ou elementos que constituem a médula espinal das minhas preocupações, junto àquelas do timbre. Refiro-me concretamente à textura, termo que a música e muitas disciplinas emprestaram do universo dos tecidos, proveniente do sentido do tacto (não adiro ao acordo ortográfico), e que já está imposto, como parâmetro, por carácter e presença incontornável, e aplicado seja na análise, seja na concepção ou no capítulo dos recursos. Sinto um fascínio particular ao planificar ou conceber ideias ou o desenvolvimento delas, desde um simples intervalo e as suas capacidades expressivas, até os mais complexos conglomerados, e a fusão e/ ou coexistência deles.
· Na entrevista que deu ao MIC.PT em Março de 2015 disse: «A componente racional coexiste pacificamente com o gesto instintivo, que faz parte de qualquer acto criativo genuíno. Tal gesto intuitivo é o reflexo do verdadeiro mistério da criação, cuja descrição ou definição permanecerá eternamente... misteriosa.» 1 Em 2025, como define, na sua prática composicional, a ligação entre o raciocínio e os impulsos criativos? ·
DSch: Não conseguiria entender uma manifestação criativa, seja na área que for, em que não houvesse uma participação, pelo menos, da componente intelectual (racional, técnica, informada) e uma totalmente oposta, se quisermos, directa, sem interferência de nenhuma natureza, vinda directamente da essência, do ADN. Nada mudaria do que manifestei há uns dez anos. Não consigo imaginar um acto totalmente racional no desenho dos temas que J. S. Bach compôs para o “Cravo Bem Temperado”. Consegue-se sentir aqui o impulso «sagrado» do instinto, do que é directo, puro, inspirado (como o que a inspiração poderá representar e significar); ou o primeiro tema que Brahms desenhou para a sua 4.ª Sinfonia, ou Bela Bartók na fuga inicial da “Musica para Cordas, Percussão e Celesta”. Faço extensivo este parecer a numerosas obras de numerosos compositores e compositoras de todas as épocas e geografias. Evidentemente estamos num terreno que não admite uma intromissão importante da ciência, ou da componente científica, e admito poder estar longe da realidade, mas é assim que o vejo.
· Quais são as fontes extramusicais que no seu caso podem servir como ponto de partida, inspiração, ou suporte para a composição musical? ·
DSch: A intervenção de fontes ou referências extramusicais começa pelo próprio actor dos factos, o compositor e os seus estados emocionais, físicos, intelectuais, que terão um maior ou menor impacto no objecto artístico (musical no nosso caso) definitivamente incontornável sendo uma referência, sem dúvidas, extramusical. Difícil será imaginar um produto artístico no qual não exista algum tipo de «intoxicação» ou contaminação não musical, e partindo deste pressuposto, entraremos numa geografia de inter-relações vastíssima, rica e sempre interessante. O processo na busca e eleição de poemas, excertos deles, textos, libretos (já existentes ou criados intencionalmente conforme o projecto e obra) é um mecanismo que me tem acompanhado de forma constante e contínua, sendo simultaneamente suporte, influência, inspiração e força motriz, a palavra, isolada, associada. É um material de notável transcendência quando o seu papel é alimentar a categoria que nos ocupa. Já quando se trata da música no seu mais alto grau de abstracção, o modo de interacção será diferente, seja a temática ou fonte de inspiração que for. As fontes extramusicais nutrem de diversos modos os materiais puramente sonoros que as acolherão, com as quais reagirão, que as refletirão num outro registo.
· Em que medida os novos instrumentos electrónicos e digitais abrem novos caminhos e quando os mesmos se podem tornar constrangedores? ·
DSch: Os novos recursos electrónicos, sejam eles quais forem, constituem uma mais valia e um terreno quase infinito para a pesquisa e utilização em todas as áreas da criação musical. Não nos esqueçamos que, desde que existe o microfone, o amplificador, rádio, os LPs, a electrónica (e a electricidade, claro), a tecnologia passou a ser componente dum processo de associação quase inevitável; tudo o que entra pelo microfone, tudo o que sai pelo altifalante, tudo o que é convertido em impulso e reconvertido em som é electrónica pura. Seja para associar e transformar sinais (tempo real) ou com materiais pré-gravados, ou ambos, a electrónica tem sofrido (no melhor dos sentidos) processos de evolução fascinantes; o mundo digital apresenta-se como um berço universal. O meu primeiro contacto e aproximação a estes recursos foi através dum velho DX7 (velho, mas intemporal); fascinantes as suas possibilidades, mas, de facto, no meu caso foi e é transversal numa percentagem pouco significativa.
· Há dez anos, na entrevista dada ao MIC.PT disse: «Provavelmente, a música tem a capacidade de ser a expressão mais pura duma certa realidade, tanto “exterior” como do próprio criador, sendo esta afirmação, sem dúvida, discutível.» 2 Hoje em dia, mantém a mesma postura relativamente ao «discurso musical»? ·
DSch: O grande handicap da música, resulta, também, no seu notável e nobre atributo, sendo reflexão e reflexo, sim, do que é e há de real e disponível nos universos ou geografias interiores do criador, psicológicas, intelectuais, físicas, mas também, o que há de irreal, indesejado e oculto. E é a partir dessa categoria que se filtra o resto a que chamamos exterior e que participará no objecto artístico e discurso musical; em palavras simples, que orienta o lápis, a alma e o coração do compositor.
· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·
DSch: Ambos são indissociáveis, como as duas caras da mesma moeda, a pesquisa, a componente científica participa em cada obra, cada projecto, desde o mais simples ao mais complexo e, como já foi mencionado, a intuição/ instinto, o aparecer do gesto quase como um reflexo, constitui, ao menos como o entendo, um espaço de conforto, um certo algo no qual confiamos, ao qual nos entregamos por inteiro, e que forma parte duma totalidade. Não os conseguiria pensar dissociados.
· Como escuta a música? É um processo mais racional ou emocional? ·
DSch: Entre os meus 16 e 33 ou 34 anos, ainda em Buenos Aires, fui um voraz ouvinte de concertos, chegando a ir a três no mesmo dia. A oferta de concertos era e continua a ser significativa, com muita música sinfónica, de câmara e grandes solistas. Foi um período formativo fantástico, a nutrir-me do mundo real; os grandes compositores, do romantismo e da primeira metade do século XX fascinavam-me (e fascinam), tal como muita música «contemporânea» e da segunda metade do século XX. Relativamente ao mecanismo racional ou emocional (a diferença do ponto anterior) – a abordagem é outra, apesar de haver pontos em comum. A entrega a uma obra, compositor ou intérprete foi sempre directa, emocional, essencial, sem nenhum género de interferência intelectual ou racional. Guardo de forma muito especial as longas tardes e noites a ouvir LPs na sala da minha casa paterna, obras que ouvia e voltava a ouvir dezenas de vezes, momentos mágicos e maravilhosos. Enquanto aos numerosos concertos aos que tive a bênção de assistir, alguns deles marcaram-me a fogo, mas não me vou alongar sobre isto.
· Na entrevista dada ao MIC.PT em 2016 o compositor João Madureira disse que «a música é filosofia, é política, e que, por sua vez, é uma forma de habitar o mundo» 3. Sente proximidade com esta afirmação? ·
DSch: Concordo com este parecer, mas alargá-lo-ia a outros domínios – a música também é discurso, e sociologia, e alquimia, e geometria, e matemática e... Podemos continuar com muitos outros domínios que, também, constituem formas de habitar o mundo.
· Existe na sua actividade a oposição entre «a profissão» e «a vocação»? ·
DSch: Afirmo sim que, numa altura da minha vida, entre os 16 e 17 anos, tal contraste e conflito constituíram parte fundamental, digo-o com extrema convicção, da minha existência; conflito em que houve um terceiro factor com algum peso, constituído pelos meus pais, sobretudo por ter abdicado do curso de Engenharia Química abraçado de corpo e alma à música, seja o piano, seja a criação. Há um outro elemento que em mim teve peso significativo e que foi a incandescente situação política entre 1976 e 1983, os anos «de chumbo», logo depois do último golpe militar, mas esse já é um outro capítulo, que se refletiu vivamente na minha “Cantata para un Silencio” (2009).
· Prefere trabalhar isolado na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·
DSch: Os dois registos tem sido sempre uma referência real, própria e confortável. Na altura de estar a trabalhar na ópera “O Defunto” (2007), lembro-me de estar a compor na sala em Estoril com os meus filhos e ver televisão e o rádio ligado na cozinha, nem sempre foi assim, mas também tive muito prazer em compor em bares e cafés com as folhas pautadas a tomar notas ou guardar ideias que iam aparecendo, chegando a compor nos bancos traseiros dos «colectivos» (assim se chamam os autocarros na Argentina) saltitando e dançando dum lado para o outro, com pouca luz, sobretudo na altura entre meus 20 aos 25 anos. Mas o silêncio e o contexto ao que chamam «tranquilidade do campo», a ausência de interferências externas, as paisagens dos vales alentejanos (a minha actual morada) ou das alturas andinas, constitui um contexto altamente inspirador e motivante (por acaso, moro na tranquilidade do campo, em Lavre).
· Seleccione e destaque três obras do seu catálogo e justifique a sua escolha. ·
DSch: A selecção foi variando ao longo dos dias. Estas três obras correspondem a última delas.
O “Concerto para Bandoneón e Orquestra” (2011) representa e reflecte de modo preciso e peculiar os mundos que me habitam, o fascínio pela cor orquestral, o diálogo de texturas, tanto formais como instrumentais, o sabor urbano e telúrico que tentei resgatar, as várias maneiras de deixar transluzir discretamente, ou de forma mais evidente, a identificação de referencias tangueiras, «porteñas» mas, sobretudo, por ter tido um diálogo, uma conversa intensa, (metaforicamente falando) na altura da conceição e criação, com este instrumento fabuloso, versátil, multifacetado que é o bandoneón.
A “Cantata para un Silencio” (2009), em que o libreto tem um papel preponderante, construído a partir de poemas ou textos de cinco escritores latino-americanos – Alejo Carpentier, Juan Rulfo, Manuel Scorza, César Vallejo e Jorge Luis Borges, e do Padre António Vieira. O libreto, pelas mãos de Paula Ramos, é uma reflexão à volta das muitas lutas de povos e civilizações, do México à Argentina. A obra oscila entre danças e ritmos tradicionais reconhecíveis, e momentos de uma silenciosa abstracção. Há aqui um coro de grandes dimensões e três cantores solistas acompanhados na versão de estreia por dois pianos. Todos estes elementos criam a ambiência e o sustento nos quais repousa e flutua esta obra.
“Occursus” (2014) para flauta de bisel e pianoforte (da versão original com cravo, logo revistada em 2015) tem a origem que me toca muito por duas razões. A primeira, por ter sido a Gulbenkian o lugar da estreia, em que, na altura, uma exposição de caligrafia japonesa, absolutamente maravilhosa, proporcionou-me a inspiração para idear uma série de pequenas peças que conformaram o tudo. A segunda foi o falecimento, na altura da criação, do meu melhor amigo, Daniel Naka, argentino, mas de origem japonesa, a quem dediquei a obra. Devo dizer que o Miguel Azguime teve uma participação para chegar à segunda versão de “Occursus”, que significa “Encontro”.
· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projectos artísticos planeados para os próximos anos? ·
DSch: Estou a acabar dois Concertos para Piano, um com orquestra de câmara, outro com orquestra sinfónica; vou revisar as três óperas que estreei em Portugal, cada uma delas com algum corte ou material retirado na altura, nas suas versões originais. Acabarei o 5.º volume da série “MezzoKosmos” para piano, e provavelmente surgirá um projecto à volta de materiais de Clarice Lispector.
· Tente avaliar a situação de compositores e compositoras de música erudita contemporânea em Portugal, referindo as suas preocupações principais. ·
DSch: Vivo em Portugal há 34 anos. Nos últimos anos aparece como evidente a presença sempre «in crescendo» de novos e interessantes talentos na área da composição, com qualidade e formação sólida tanto nos aspectos técnicos como literários, ganhando prémios internacionais de composição, sendo interpretados por reputados artistas; e um detalhe – há cada vez mais compositoras e compositores activos formados em Portugal. Só um acréscimo – no âmbito do jazz, a qualidade e quantidade de intérpretes, compositoras/ es e arranjadoras/ es tem vindo a elevar o seu patamar de forma significativa e notável, sendo que a oferta formativa é de excelência.
· Se não tivesse seguido o caminho de compositor, quais poderiam ser os caminhos alternativos? ·
DSch: A astrofísica poderia ter sido outro caminho, sobretudo no terreno da pesquisa; um outro, o das ideias, concretamente a filosofia, dos clássicos Gregos e Latinos à actualidade; menos evidente, mas real, quando tinha entre 13 e 18 anos, fui um bom jogador de golf, cheguei a avaliar, profissionalizar-me, mas rapidamente desisti da ideia. Não sendo uma verdadeira alternativa, o jazz esteve sempre lá, espreitando. Sou um razoável improvisador e tive e tenho um grande fascínio por muitos artistas deste género.
· Numa das entrevistas de 2020 o compositor Georg Friedrich Haas disse que «os criadores da nova arte agem como fermento na sociedade» 4. Na sua opinião, qual é o papel que a música erudita contemporânea, ou a música de arte, desempenha na sociedade e como é possível aumentar a importância e o impacto deste papel? ·
DSch: Não sinto que deva ser aumentado ou tratado de algum modo o eventual impacto do papel ou presença que determinadas manifestações têm nas nossas sociedades, não poderemos modificar significativamente o que para as pessoas das tais «nossas sociedades», poderá significar ou significou um Takemitsu, Crumb, Feldman, ou um Kandinsky, um Beckett ou um Deleuze, citando assim sem mais, algumas figuras que, assim o entendo, tiveram e têm algum tipo de impacto em determinados nichos, inclusive determinados públicos. A música que está a ser criada actualmente, assim como a dos últimos, digamos, 25 anos, muitas das vezes, mais que desempenhar um papel, é, provavelmente, consequência e reflexo dos contextos, ambientes e circunstâncias em que acontecem as nossas existências. Já o caso contrário é menos evidente, não me refiro só à «música erudita contemporânea», que tem algum eco no desenvolvimento da pesquisa no terreno da acústica ou características acústicas e a sua manipulação, no desenvolvimento e criação de novas aplicações informáticas, no contágio a que são sujeitas as novas camadas de novos compositores e compositoras. Já sobre o possível impacto na sociedade? Talvez possamos retroceder ao século XVIII ou ao mais próximo século XX e tentar perceber o que a música e personalidade de um Haendel, Bach, Vivaldi, ou de um Stravinsky, Messiaen, Boulez ou Stockhausen tiveram naquelas sociedades. O que será, ou melhor ainda, como será ou seria realmente um impactar, impressionar, fornecer, contagiar, até intoxicar com a fragrância de novas sonoridades às nossas sociedades? É uma questão que, provavelmente, existe não só para a maioria dos compositores, como para os criadores de toda a disciplina artística. Por outro lado, basta haver eco num único interlocutor para ter valido a pena.
· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, rupturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras rupturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·
DSch: Fazer o exercício proposto é entrar num terreno quase... definitivamente utópico. Pergunto-me o que teria respondido um Beethoven a esta pergunta, ou um Liszt, um Palestrina, ou mesmo um Stravinsky.
Não posso não perguntar-me se Brunelleschi se terá perguntado sobre futuro da arquitectura, ou Van Gogh sobre o futuro da pintura (se ele tivesse previsto que a sua obra poderia ter sido objecto de tratamento com recursos imersivos, videomapping, etc). A arte ocidental carrega imensos pontos de inflexão, em todas disciplinas. Não sempre de modo simétrico ou simultâneo podemos ensaiar e ver a forma ou o modo em que a música interagiria num mundo hipotético. Para poder adiantar-nos necessariamente devemos observar como é tal interacção no presente, e eventualmente num passado próximo, do qual fica-nos algo das suas emanações. Não há dúvidas sobre a influência de todas as vertentes do rock ou do pop, tendo em conta os imensos festivais, numerosos «in crescendo», com participações multitudinárias da geração de entre os 15 e os 30 anos. Não podemos desconsiderar a este fenómeno social como pouco significativo, com início oficial em Woodstock em 1969. É um dos canais mais evidentes dum tipo de música e um tipo de impacto, já entrando no que catalogam de «música de arte ocidental», ou música erudita ou até música clássica ou chegando ao limite de ser catalogada de «séria», eventualmente, contemporânea, a ressonância seria outra.
Não me parece que o futuro passe necessariamente pela evolução ou desenvolvimento dos numerosos softwares para o manuseamento do som e utilização (sempre feliz e bem-vinda) nas criações em música; sim, entendo que, tais recursos poderão ampliar a visão e panorama expressivo e técnico das novas gerações de compositoras/ es. Sendo sincero, não consigo imaginar a sonoridade da que será chamada «música contemporânea» em 2100, mas que isso acontecerá, não tenho a mais mínima dúvida. O que é real é que, o conhecimento das técnicas do contraponto, fuga, harmonia, forma, orquestração, análise das grandes obras dos compositores de gerações anteriores, continuará a ser a base a partir da qual se concebe, se sonha, se imagina música, independentemente da sua complexidade ou simplicidade.
Daniel Schvetz
Junho de 2025
© MIC.PT
NOTAS DE RODAPÉ
1 Entrevista a Daniel Schvetz conduzida pelo MIC.PT em Março de 2015: LIGAÇÃO.
2 Ibidem.
3 Entrevista a João Madureira conduzida pelo MIC.PT em Outubro de 2016: LIGAÇÃO.
4 Entrevista com Georg Friedrich Haas conduzida por Filip Lech em junho de 2020 e disponível no portal Culture.pl: LIGAÇÃO.
Entrevista Na 1.ª Pessoa com Daniel Schvetz conduzida por Pedro Boléo. Gravação do O’culto da Ajuda em Lisboa (2019.12.02). |
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Na interpretação da Orquestra Metropolitana de Lisboa, com Claudio Constantini (bandoneón), sob a direcção de Jesús Medina.
Ciclo “À Descoberta da América”, Cinema São Jorge em Lisboa, 25/09/2011.
1.º ANDAMENTO | 2.º ANDAMENTO |
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3.º ANDAMENTO | 4.º ANDAMENTO |
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Na interpretação do Coro Lisboa Cantat, sob a direcção do maestro Jorge Alves, com Sonia Alcobaça (soprano), Manuel Rebelo (barítono), Fernando Guimarães (tenor), Francisco Sassetti (piano) e Paul Timmermans (piano).
Na interpretação do Borealis Ensemble: António Carrilho (flauta de bisel) e Helena Marinho (pianoforte).
CD: “Música nova para Instrumentos antigos II” (ed. MPMP Património Musical Vivo · 2016).
“TORU” | “EPÍLOGO” |
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“KOSMOS” |
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