>> English Version
Fantasias amplas num compartimento pequeno
JAKUB SZCZYPA
2010.12.23

“Somos as musas uns dos outros, mas também somos a pornografia uns dos outros”, diz Stephen Plaice, o autor do libreto da nova ópera de Luís Tinoco intitulada “Paint Me”. A obra, encomendada pela Culturgest e com a encenação de Rui Horta, teve a sua estreia mundial no dia 17 de Dezembro em Lisboa.

O inicio é simples e intencionalmente desfocado. Quando o público entra na sala de concerto, no palco aparece uma mulher jovem com um guarda-chuva na sua mão e auriculares nos ouvidos (a ouvir uma ária bel canto). Está a chover (o tempo típico da Inglaterra), a mulher está numa estação ferroviária. Ela leva um embrulho de papel pardo que parece ser uma tela. “Está a chegar à linha número 5 o comboio das 15:12 com destino a Canterbury. Efectua paragens em Tonbridge, Paddock Wood, Ashford International, Wye, Chilham, Chartham e Canrterbury...” Um motivo de marimba simples e repetitivo anuncia o começo da viagem...

“Os Contos de Canterbury” do século XXI

Stephen Plaice é um escritor britânico, que trabalha na área do cinema, teatro e ópera. A história de “Paint Me” desenrola-se num compartimento de comboio, que se dirige a Canterbury. Na carruagem, que segundo o libretista é “uma espécie de laboratório sociológico instantâneo” encontram-se 6 personalidades diferentes (um revisor, uma jovem com um quadro, um padre, duas outras mulheres de passados carregados e ainda um homem cínico e machista) que no decurso da viagem imaginam histórias com um ou vários dos seus companheiros. Os “Contos de Canterbury” de Godffrey Chaucer, escritos no final do século XIV, serviram como o modelo para a peça. O libreto de Stephen Plaice é uma revisão (pós)moderna do texto de Chaucer: “Em «Paint Me», os viajantes também estão a caminho de Cantenbury, mas as suas histórias não são partilhadas; elas são imaginadas nas mentes dos passageiros. O enquadramento torna-se a interacção, forçada e «real» entre eles, no interior do próprio compartimento.”

O libreto de Stephen Plaice tem uma qualidade genuinamente inglesa – trata do nosso lado perverso, fechado no mundo íntimo com uma dose de ironia e distância. Porém o texto tem também uma dimensão mais universal, pois observando as personagens estamos a ver-nos a nós próprios. “Quando optamos por um estilo de vida urbano e moderno, vivemos em estreita proximidade de pessoas de quem pouco ou nada sabemos. Moramos em casas, apartamentos ou quartos que são contíguos a espaços ocupados por estranhos, mas não há qualquer expectativa de que se venha a formar um laço de comunidade”, explica Stephen Plaice. A solidão na multidão das cidades, o isolamento, a falta de comunicação entre os indivíduos, são todos os temas com muita actualidade, especialmente na hora da globalização. Basta lembrar a famosa “Trilogia de Apartamento” de Roman Polanski (“A Repulsa”, “O Bebé de Rosemary” e “O Inquilino”), que meticulosamente abrange o tema do alheamento e da loucura como a consequência do primeiro. Os filmes de Polanski concentraram-se na análise do isolamento do indivíduo em circunstâncias alheias, enquanto que o “laboratório” de Stephen Plaice, Rui Horta e Luís Tinoco é um confronto de vários indivíduos no ambiente fechado do compartimento. “Na idade moderna, quase todas as viagens decorrem em silêncio e anonimamente”, sublinha Stephen Plaice, portanto, em “Paint Me” existem duas dimensões paralelas, o “teatro do comportamento em público”, em que se cumpre todas as regras da cortesia e gentileza e o “teatro secreto”, construído por pensamentos indecentes, fantasias, que não são para consumo público, mas que constituem...

...O elefante na sala.

“Paint Me” é a terceira obra dramática de Luís Tinoco – o próprio compositor classifica-a como ópera de câmara. Ao nível musical distingue-se nela três dimensões: 1) a música do ambiente de comboio; 2) a música das fantasias; 3) a mistura sonora dos dois tipos anteriores. “Optei por, além da orquestra, ter outra dimensão sonora, que é parte da sonoplastia e alguma electrónica, que vai ser trabalhada em tempo real com os cantores e com a orquestra”, explica o compositor. A criação de Luís Tinoco evoca a música pós-minimalista de John Adams, não só nas suas estruturas harmónicas e repetitividade de certos motivos (como o gesto musical da marimba, que abre a viagem do comboio), mas também na elaboração “romântica” das linhas vocais, tão característica nas suas peças mais recentes. Em “Paint Me” aparecem também partes faladas (recordando um Singspiel...) e outras alusões ao passado musical, tais como uma citação de “Le nozze di Fígaro” de Wolfgang Amadeus Mozart e uma ária virtuosa de la Zaffetta da ópera “La Cortigiana di Santo Stefano”. Luís Tinoco optou por incluir na sua linguagem musical uma variedade de meios distintos. Como é que a música coexiste com os outros elementos da ópera?

O enredo, tal como sublinhei antes, mesmo que muito irónico e cheio de voltas ao estilo dos Monty Python ou de Andy Kaufman (sim, sim o cómico americano...), tem também um impacto forte e “pesado”. A encenação de Rui Horta baseia-se em ideias minimalistas, quase cinematográficas – a dominação da cor branca, um pequeno comboio telecomandado que circula à volta do palco transmitindo ritmo à viagem, os trajes “futuristas” que evocam uma das animações de Hannah-Barbera (“The Jetsons”), visualizações “interactivas”, entre outras. Mesmo assim a música de Luís Tinoco parece não realizar os princípios dramatúrgicos do texto de Stephen Plaice, que tem como fundamento a contradição entre o mundo dos comportamentos convencionais num compartimento de comboio e o mundo de fantasias pessoais, íntimas e vergonhosas, o verdadeiro “elefante na sala” como dizem os ingleses. Ao nível musical, este contraste fundamental é apenas ligeiramente sublinhado, embora, a meu ver, pudesse ter um impacto muito mais forte. Talvez, apesar da variedade de recursos utilizados, a música ainda seja homogénea demais? Talvez o compositor não tenha tido coragem para entrar mais no jogo entre a cortesia, as fantasias e o público? Talvez Luís Tinoco tenha tido receio de revelar “o elefante na sala”? “Afinal, o teatro em que o espectador assiste ao espectáculo é, também ele, um compartimento, um lugar no qual podemos partilhar fantasias com estranhos de forma legítima”, sublinha Stephen Plaice.

Viagens em silêncio

Apesar da minha insatisfação que descrevi em cima, a ópera do trio Plaice – Horta –Tinoco (a ordem não é aleatória) tem a sua importância no contexto mais amplo. A música constitui uma tentativa de sintetizar vários estilos numa peça integral, referindo-se ao passado, à música de actualidade, à música concreta e electrónica e finalmente à cultura popular. A ideia de atravessar géneros, criar misturas e colagens, referir-se a outras artes em busca de novos valores na música, tem ocupado o tempo criativo de vários compositores da actualidade. Não obstante, o valor da peça, fica sobretudo no libreto multidimensional de Stephen Plaice, que numa maneira bem directa expõe a hipocrisia dos tempos (pós)modernos. Se por um lado somos “bombardeados” com as ideias e “a mitologia” de abertura aos outros, facilitada pelos meios de comunicação contemporâneos, por outro, as nossas viagens diárias quase sempre decorrem em silêncio. Os viajantes do século XIV dos “Contos de Canterbury” entretiveram-se na conversa e escuta das suas histórias enquanto que as multidões dos viajantes (pós)modernos em transportes públicos, comboios ou aviões não conseguem sair das suas próprias fantasias. Parece que é mais seguro sonhar com a pessoa que vemos no reflexo da janela do que criar uma interacção verdadeira. Porquê?

A ópera “Paint Me” trata também da necessidade de dar nomes às coisas, criar convenções tanto na vida como na arte, todavia, esta, tal como as nossas fantasias, excede os limites que desejávamos estabelecer. “É pelos adjectivos que começamos quando estamos perante uma obra de arte. Cada imagem contém a sua reacção contrária. Gostamos e odiamos da mesma maneira. A carne de um homem é o veneno do outro. A arte de um homem é o aborrecimento do outro”, cantam os intérpretes em coro, confrontados com as pinturas expostas numa galeria imaginária. Todavia, no fim concluem: “Pinta-me, pinta-me, suplica o belo, mas é o pintor que o pincel do pintor revela.” Parece que o acto de pintar é de facto o desejo implícito de contacto e apreciação.

Pequenas cortesias no fim

No fim do texto cabe-me, ainda, fazer alguns elogios para manter um equilíbrio entre os vários recursos da ópera, tanto positivos e neutros como negativos. O primeiro vai para os músicos dirigidos pela carismática Joana Carneiro. O segundo dirijo aos cantores, que não só desempenharam vários papéis mas também apresentaram muita flexibilidade, visto que inclusivamente a ópera para além do texto cantado, tem também texto falado e elementos coreográficos. “Posso dizer com bastante satisfação que os seis cantores são da nova geração. Vamos ter a possibilidade de mostrar valores, na minha opinião, muito consistentes e promissores”, sublinha Luís Tinoco. Finalmente o meu terceiro elogio vai ao humor negro e aos elementos surreais que, embora nem sempre propriamente enfatizados ora pela música ora pela encenação, estavam presentes durante o espectáculo inteiro e não apenas no palco, pois as fantasias também ocupavam as mentes dos ouvintes...

 

>> Top