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Saudades do passado
JAKUB SZCZYPA
2011.02.03

A 29 de Janeiro de 2011, Liviu Scripcaru, um violinista romeno que vive e trabalha em Portugal deu um concerto de música contemporânea portuguesa para violino solo. O evento fez parte da Temporada 2010 / 2011 da Orquestra Metropolitana intitulada “A música por dentro”. O programa incluiu obras de Emmanuel Nunes, Daniel Schvetz, Miguel Azguime, Christopher Bochmann, Sara Carvalho e Ian Mikirtoumov, com uma estreia nacional e três estreias absolutas.

O concerto decorreu no Museu da Música Portuguesa situado na Casa Verdades de Faria (Monte Estoril) que esteve desde sempre ligada à música pela vivência cultural dos seus sucessivos donos. Visto que cheguei ao lugar cedo demais, tive a oportunidade de admirar o prédio dos finais do século XIX e enquanto estava a passear pelo pátio consegui ouvir o violinista a praticar na sala do primeiro andar...

O público era um grupo relativamente pequeno e ligado sobretudo aos meios académicos de música contemporânea. Deixem-me agora interromper um bocado o fluxo de eventos para fazer uma digressão curta. É muito bom e também óbvio que compositores e pessoas “do meio” compareçam aos eventos de música contemporânea, não obstante, estava a pensar se não seria mais vantajoso para a criação musical contemporânea se as pessoas “de fora” também assistissem aos concertos. É, contudo, possível? Parece que esses eventos são organizados apenas para um grupo específico de ouvintes académicos (esta palavra aparecerá várias vezes ao longo do texto). A música não é suposta ser uma linguagem universal, disponível a todos? Porque é que a música contemporânea não provoca mais curiosidade, pelo menos entre os melómanos comuns?

Estas perguntas ocupavam a minha cabeça enquanto estava a espera do violinista, entre as outras pessoas “do meio”, na sala pequena do Museu da Música Portuguesa. Podia-se sentir alguma tensão no público. No palco estavam seis estantes a espera do músico. Como será?

Liviu Scripcaru apareceu, cumprimentou o pequeno auditório e começou a tocar.

A primeira peça foi de Emmanuel Nunes – “o visionário e o solitário” da música contemporânea portuguesa, como percebi depois de cinco meses da minha estadia e trabalho cá. A sua peça, “Einspielung I” (1979), é um estúdo envolvendo várias técnicas de interpretação incluindo passagens em tempos diversos (com accelerações e abrandamentos abruptos) que sempre voltam à nota principal – uma base ou uma espécie de pedal, como na música tradicional. “Einspielung I” é um desafio para o intérprete, que Liviu Scripcaru não conseguiu cumprir, tornando a peça numa espécie de exercício académico. Durante três anos seguintes Emanuel Nunes escreveu mais duas peças com o mesmo título – “Einspielung II” e “Einspielung III”.

Alguns dos compositores estavam presentes durante o concerto e Liviu Scripcaru convidava-os para fazerem introduções curtas antes da execução. Isso deu um acento agradável e informativo ao concerto, dando oportunidade de conhecer as origens das peças.

A segunda obra do programa, “Picolo studietto in tango style per violino”, foi criada por Daniel Schvetz. Segundo o próprio compositor ela foi escrita para estudantes da música num projecto especial inspirado por Astor Piazzolla. E assim soou, como um estudo “com uma sombra” dos tangos do compositor argentino...

A terceira obra do concerto, “Soit seul sûr de son” de Miguel Azguime, foi escrita entre 2004 e 2005 e foi interessante em termos dos meios usados para explorar os valores acústicos do som. Ao nível da construção formal a peça baseia-se na oposição entre os passos virtuosos e os que tiram partido das qualidades acústicas do som de violino – das cores diferentes, dos timbres e dos tons de alíquota. Infelizmente a interpretação de Liviu Scripcaru, algo plana e simples, não sublinhou todas as nuances da peça e contrastes abruptos entre as partes virtuosas e mais orientadas para o timbre.

A seguir, Christopher Bochmann entrou no palco e fez uma introdução curta para as suas peças, “Lied I” e “Cavatina”. A primeira, influenciada e dedicada ao compositor grego Dimitri Terzakis, foi escrita em 2002 quando Christopher Bochmann esteve em Leipzig, enquanto que a segunda resulta de um exemplo académico, desenvolvido para as circunstâncias de execução. O estilo de Christipher Bochmann apresentado nas duas peças curtas é bastante intelectual. Na música “isobemática”, como o próprio compositor a denomina, todos os parâmetros são relativizados. “Numa música que não tem tonalidade e que não tem compasso, e não tem estas hierarquias, tudo é igual, tudo é «isobemático» (os meios tons, as colcheias, as semicolcheias, as tercinas, etc). É uma questão de relacionar uma coisa com a outra”, explica Christopher Bochmann.

Liviu Scripcaru tocou mais duas peças durante o concerto no Museu na Música Portuguesa – “Solos I” de Sara Carvalho, uma peça mais virtuosa com várias secções contrastantes e também “Poisk” de Ian Mikirtoumov. Segundo o compositor, o título enigmático da peça é uma palavra russa que em português significa “pesquisa” ou “procura”. Ela é mantida no estilo pós-moderno, fazendo referências a música sentimental e romântica para violino, especialmente no tema que reaparece ao longo da sua duração.

Deixem-me só por um momento passar para a minha segunda digressão. Penso que programar concertos apenas para um instrumento solo precisa de muita coragem artística. A meu ver, o músico solo é como um cómico ou um actor que está sozinho no palco. Ele tem que manter a tensão, cativar constantemente o público e saber exactamente quais cordas puxar. No passado “as damas” costumavam desmaiar ao ouvir e ver os virtuosos a tocar, mas tenho uma impressão que esses tempos já passaram. Talvez eu deva levar em consideração que o passado sempre nos parece idealizado e deformado. Admito que conheço a maioria das personalidades musicais do passado apenas de filmes e livros.

Estive a pensar muito sobre o concerto durante a minha viagem do Monte Estoril até para casa (não consigo resistir a não mencionar que a vista do rio a entrar no mar ajudou-me muito a chegar às conclusões mais generalizadas e mais “aprofundadas”).

Tal como mencionei acima o concerto pareceu-me bastante académico, tendo em conta vários aspectos – não apenas o público e a programação, mas também a execução. O repertório escolhido era homógeno demais e na interpretação faltou a componente virtuosa e mais profunda para enfatizar os elementos chave das composições. O que aconteceu ao espírito Leste Europeu e “romântico” de Liviu Scripcaru? Afinal, o violino é considerado um dos instrumentos com mais paixão. Talvez eu precise de voltar à minha ideia inicial acima – “os tempos de grandes virtuosos passaram”. Hoje em dia acontece com frequência que as peças matematicamente compostas sejam executadas segundo os padrões académicos, mas a música é muito mais do que isso, não é?

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