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"BANKSTERS" — Ópera na Ópera
MANUEL PEDRO FERREIRA
2011.03.21

A nova ópera de Nuno Côrte-Real, com libreto de Vasco Graça-Moura, tem todos os ingredientes para desconcertar: é trágica no seu fundo, mas na sua forma, burlesca; oscila violentamente entre o vernáculo desbragado e a expressão erudita; exibe teor moralizante, numa sociedade simultaneamente ávida e suspeitosa das morais; sendo absolutamente contemporânea, elege um argumento e convoca referenciais artísticos do passado.

Não obstante, a ópera impõe-se. Como explicá-lo?

"Banksters" nasceu para ser, na Ópera, um clássico. Um clássico na forma, um clássico no potencial de intemporalidade. O ser artístico não é ser-moda, é apontar para além da moda. «Banksters» nasceu situado, sim; mas fora-de-moda, para que em futuros nossos, nos possa ainda acompanhar.

À partida, foi encomendado o libreto a um exímio manipulador da língua, o poeta e romancista Vasco Graça-Moura. A base foi a peça de José Régio, "Jacob e o Anjo". Foi feita uma adaptação e reescrita radical, passando o personagem central a ser um banqueiro (Santiago Malpago), rodeado da sua corte, sendo evocados motivos tão actuais como os offshores, os subprimes e o I.R.S. O libreto, escrito em verso, vive do diálogo, e inclui recitativos, ariosos, arietas e árias, dando ainda oportunidades para um terceto e um quinteto vocal; essa clareza rítmica, essa estruturação e essa variedade, em que facilmente se reconhece a tradição operática, permitem uma comunicabilidade imediata. Esta comunicabilidade é acentuada por dois factores: o literário, em que se afirma a verve e graça de Graça-Moura, e o musical, em que se admira a prosódia certeira de Côrte-Real.

O libreto e a sua dicção não são, contudo, senão um aspecto de "Banksters". A obra tem uma organização musical a larga escala que lhe dá uma grande unidade, apesar da diversidade estilística que compreende. Essa unidade é conseguida com recurso quer a motivos condutores ou materiais associados a personagens ou situações, quer a extrapolações composicionais de âmbito mais alargado. A variedade abarca tanto os ambientes harmónicos (incluindo os atonais) como as texturas, os perfis rítmicos, as pequenas formas musicais integradas no discurso dramático; encontram-se passagens pontilhistas ao lado de uma valsa, sem que essa justaposição deixe de fazer sentido. Mesmo as citações (La donna è mobile, justamente evocada por quem tem Rigoletto no nome) e alusões musicais (por exemplo, à Habanera da "Carmen") surgem de maneira coerentemente integrada na narrativa. Só em dois momentos não me pareceu inteiramente conseguida a alusão, ou o processo artístico: o "fado" no 2º acto, cuja identidade estilística é ténue, e o "arioso" do Accionista no 3º acto (cena 4), que surge longo e demasiado saturado, no acompanhamento orquestral, de tema e de reminiscências entrecortadas. A orquestração é, de resto, de uma riqueza e uma segurança magistrais. Também aqui a variedade de recursos e combinações tímbricas é surpreendente e a capacidade de gerar ambientes coesos, diferenciados, impressionante. Havendo originalidade, há sobretudo saber-fazer: tira-se proveito até dos velhos truques da ópera italiana (duplicação da linha vocal na ária final de Santiago Malpago). Talvez haja uma ou outra revisão a fazer (um acorde final harmonicamente mais rico no final do 2º acto; o remate da cena 3 do 3º acto, sonoramente reforçado; uma presença da guitarra eléctrica menos episódica), mas em geral, do generoso uso dos metais ao solo de fagote e ao violão em palco, o compositor revela um ofício invejável.

Talvez a sua qualidade mais notável seja, ainda assim, a gestão do tempo dramático. O 1º e 2º actos, unidos na execução por um entreacto orquestral, duram 35 minutos cada um, aproximadamente. O 3º acto ocupa perto de 50 minutos, dos quais 30 correspondem às primeiras cinco cenas, que formam uma primeira parte bem demarcada. Em tudo isto, não há (com a possível excepção atrás assinalada) um momento morto. Nuno Côrte-Real agarra-nos e arrasta-nos de cena em cena, de surpresa em surpresa, de inevitabilidade em inevitabilidade, sem que a tensão se desvaneça; as diversas secções fluem, sem descontinuidade, e as suas proporções surgem-nos como naturais. No 3º acto, quando a acção se detém ao fim de trinta minutos, um compositor de imaginação criativa menos pujante ou focalizada teria grandes probabilidades de soçobrar. Mas este sustém ainda, sem esforço aparente, 10 minutos de diálogo; a ária final e epílogo duram, por si sós, outros 10 minutos. É o tempo de Santiago Malpago ganhar a glória divina, mas é também, para Nuno Côrte-Real, um tour-de-force glorioso, que lhe traz em sublinhado a adesão do espectador.

Esta adesão foi também, nas duas primeiras récitas, o reconhecimento pelo excelente trabalho da orquestra, dos cantores, do encenador e da restante equipa técnica. A direcção musical de Lawrence Renes teve vitalidade, precisão e subtileza. Os dois papéis principais foram desempenhados pelo barítono Jorge Vaz de Carvalho (Santiago Malpago), que esteve inexcedível na sua inteligência de cantor-actor, e pelo tenor Musa Nkuna (Angelino Rigoletto) que, apesar de algumas imperfeições na dicção, foi na emissão vocal primoroso e se esforçou por ter uma presença cénica adequada. A soprano Sara Braga Simões, no papel de Mimi Kitch, foi sempre convincente em palco, e musicalmente certeira na sua voz ágil e fresca (da jovem mulher do banqueiro não se pede nem se espera, contrariamente a algum público, que tenha um vozeirão). O barítono Diogo Oliveira compôs um impecável Accionista; nota muito positiva merecem também a soprano Chelsey Schill (Porta-Voz), o baixo Nuno Dias (Presidente da A.G.), o tenor José Lourenço (Magistrado), a soprano Ana Ferro (Médica), o barítono José Corvelo (Advogado) e demais cantores, incluindo os do Coro, cujas intervenções foram poucas, mas exigentes. Perante um libreto com pouca acção, o cineasta João Botelho, que se estreou como encenador de ópera (com cenografia e figurinos de Silvia Grabowski), reafirmou o seu proverbial bom gosto, gerindo com economia visual e rigor luminotécnico as três dimensões do espaço, criando polaridades significativas, fazendo fluir as movimentações ou acrescentando-lhe outras musicalmente justificadas (dançarinos), pelo que está igualmente de parabéns.

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