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Materializar o pensável
ÂNGELO MARTINGO
2011.10.08

Virgílio Melo (n. 1961) esteve em evidência, sábado, 24 de Setembro, no Teatro da Vilarinha. Em cartaz, obras que cobrem um período de 22 anos de criação musical – por ordem cronológica, “Nó” (1985; 13’), para flauta baixo solo; “A Tre” (1990; 3’), para três clarinetes; “A Glimpse of the Holy Darkness” (1995; 22’), para flauta, clarinete e violoncelo; “Circuitus” (2000; 13’), para flauta alto, flauta baixo e electrónica em tempo real; e “Canso Entrebescata II” (2007; 17’), para violino solo. A servir esse percurso, músicos com um vasto curriculum – Monika Streitová (flauta), Jorge Salgado Correia (flauta), Radu Ungureanu (violino), Filipe Quaresma (violoncelo) e Luís Filipe Santos (clarinete) –, a par com os jovens intérpretes Fábio Menezes e Valter Palma (clarinete), e Rui Dias na electrónica.

A reflexão crítica do evento que agora se apresenta constitui uma elaboração sobre um dos aspectos com que lapidarmente introduziu Álvaro Salazar o recital – é reconhecível em Virgílio Melo uma personalidade artística singular e coerente.

Embora não caiba aqui definir essa singularidade, importa apresentar o que a torna, e o que ela torna, evidente – uma tensão entre a literalidade do texto e a pluralidade do sentido, entre o rigor da escrita e aquilo irredutivelmente disperso que ela possa veicular. É nesse contexto que ganham contornos a pertinência e expressividade da electrónica e das técnicas instrumentais, convencionais e não convencionais, usadas, fruto de uma imaginação que voluntariamente se disciplina e restringe, prevalentemente, aos instrumentos tradicionais, mas não sem explorá-los nos seus limites.

Dito isso, o conjunto das obras em cartaz, compostas entre 1985 e 2007, e espaçadas entre si em cerca de 5 anos, oferece-se à reconstrução de um percurso artístico em que é observável um crescendo e estabilização na exploração de possibilidades composicionais.

Desse ponto de vista, e numa quase coincidência com a regra de ouro, encontraríamos em “Circuitus” (2000), um clímax em que a palavra, desprovida do seu valor significacional, emerge com um carácter alucinatório no seio da música que sai dos instrumentos e daquela que, discreta, resulta, como mão invisível, da electrónica em tempo real.

A obra mais recente em cartaz – “Canso Entrebescata II” é mais económica nos meios, apresentando uma informada e refinada exploração das possibilidades instrumentais, em que o virtuosismo que se exige ao intérprete contrasta com o volume e com a espectacularidade – tudo se passa, parece, no corpo e na superfície do instrumento. Naquilo que poderia ser entendido como uma extensa elaboração do incomunicável, o atrito das cerdas e resina nas cordas e no cavalete do instrumento, o aflorar das cordas na produção sistemática de harmónicos são estendidos em 17 minutos em que raramente uma sonoridade forte é atingida.

“A Glimpse of the Holy Darkness” revela o mesmo conhecimento das possibilidades dos instrumentos, bem como uma eficaz e equilibrada escrita camerística. Pontos e frases, servidos por técnicas instrumentais convencionais e não convencionais, são aí articulados numa escrita refinada em que a temporalidade emerge também como elemento importante – frases de duração ritmada são sucessivamente postas num extenso conjunto em que raramente é permitido um clímax.

Tudo isso se encontra, com a força que têm as coisas emergentes, em “Nó”, cronologicamente, a primeira do conjunto. De duração considerável, sobretudo para um instrumento monofónico a solo, a obra torna manifesta uma construção e gestão impecável da tensão no interior, articulação, e sucessão de frases em que a imaterialidade do sopro (pneuma), a materialidade do instrumento, e o contínuo do som (altura definida/indefinida) concorrem para um conjunto coerente e expressivo.

Na perspectiva em que é articulada esta reconstrução de sentido, “A Tre”, para três clarinetes, permanece distinta do conjunto. Trata-se de uma obra mais imediatamente evidente nos processos de escrita e eficiente do ponto de vista comunicativo – um compacto conjunto de 3 minutos num contínuo registo meio-forte/forte que se extingue num longo trilo.

A terminar, destaque para a Oficina Musical – o recital resulta do Ciclo Compositores Portugueses Contemporâneos, integrado na 34.ª temporada desta instituição fundada em 1978, por Álvaro Salazar, que, consistentemente, e a um nível de excelência, tem prestado um inestimável serviço à cultura em Portugal no domínio da música contemporânea.

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