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Tradição e imaginação
VIRGÍLO MELO
2012.01.25

No passado 19 de Janeiro, encetou-se no Teatro Constantino Nery, a temporada 2012 do Quarteto de Cordas de Matosinhos. Esta inclui a estreia de três encomendas da Câmara Municipal de Matosinhos a outros tantos compositores: Eduardo Patriarca, Telmo Marques e Paulo Ferreira-Lopes. As partituras dos dois últimos terão a primeira audição no próximo dia 22 de Fevereiro; esperando, por essa altura, efectuar a sua recensão, ocupar-me-ei em comentar "Processione" de Eduardo Patriarca. O programa foi completado com obras de Haydn e Luiz Costa, cumprindo afirmar que, apesar do interesse do repertório e da qualidade dos intérpretes, a iniciativa pecou por insuficientemente divulgada.

No delicado exercício do discurso crítico, e mesmo na vertente mais aprofundada do discurso analítico, não é incomum o uso, algo apressado e superficial de certos vocábulos taxativos que, sob escrutínio mais cuidado, se revelam de vaga definição; é comum associar-se o termo serial às melodias em dente de serra e à não-repetição, pós-moderno à justaposição referencial de pastiches vários, e assim por diante. No caso de "Processione" de Eduardo Patriarca (nascido em 1970) tais generalizações aparecem como escorregadias e contraproducentes, tanto mais que o próprio compositor sempre se afirmou marcado por uma estética espectral e esta é vulgarmente conotada com um discurso de lenta evolução e imbricações, ocasionalmente estimulado por choques, à imagem de uma transcrição de um espectro sonoro com a evolução dos seu harmónicos e seus transitórios de ataque. Ora, nada mais desajustado do que tais imagens, para descrever o trabalho de Patriarca. Se bem que se iniciando com um locus classicus (harmónicos do espectro do dó grave do violoncelo) as sinuosidades do discurso que se segue, a sua riqueza formal e sonora é surpreendente e digna de nota. A regra do jogo das citadas encomendas era a de se basearem numa melodia tradicional portuguesa. Neste caso, o compositor escolheu uma melodia de Torres Novas, a Marcha dos Círios, aqui aludida na sua cor modal e nas ressonâncias poéticas da sua função social. A música de Patriarca atinge uma notável ductilidade técnica no trabalho dos seus pressupostos, o que lhe permite construir um requintado discurso na interpenetração dos gestos expressivos, indo de um contraponto original e expressivo, até uma agitação harmónica do pormenor mas que se sente governada por uma evolução mais lenta, a qual sustenta habilmente a grande linha. No final, o espelho dos compassos iniciais não soa como mera simetria, mas outrossim, revela, no sentido mais forte do termo, o percurso percorrido. Uma excelente partitura que, para além do mais, se afigura prenhe de desenvolvimentos futuros.

O Quarteto nº 2 em ré menor, da autoria de Luiz Costa (1879-1960), embora datado de 1930, é uma obra recentemente descoberta pelos bons auspícios da musicóloga Christine Wasermann Beirão, que se tem dedicado ao estudo do acervo do compositor. Apesar de notável personalidade musical em muitos aspectos da sua múltipla actividade, Luiz Costa, enquanto compositor, não consegue ultrapassar uma banalidade distinta, no seio de uma estética marcada por um apego excessivo à tradição; uma série de trechos em que não se manifesta nem o suficiente desenvolvimento ligado à forma-sonata nem, e isto apesar de algumas pesquisas tímbricas, a pregnância bastante para os transformar em peças de carácter bem sucedidas.

Embora algo fora do âmbito temático deste Espaço de Crítica, não poderia deixar de mencionar a excelente interpretação que o Quarteto de Cordas de Matosinhos ofereceu do Quarteto op. 20, nº 1 de Joseph Haydn. Mas, por outro lado, a inclusão da música do mestre clássico permite constatar uma das suas grandes lições: na monumental série dos seus sessenta e nove quartetos, prima a imaginação e a vontade expressa de nunca repetir fórmulas e receitas, por mais bem sucedidas que elas tenham sido no passado. A permanente interrogação e procura é uma das marcas da tradição erudita europeia e uma das que a torna perene. Dos dois compositores mais hodiernos presentes no programa deste concerto aquele que mais respeita, ama e digere essa tradição, é, indubitavelmente, aquele cujo mundo sonoro parece, à primeira vista, mais arredio da mesma.

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