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Quatro mini-óperas
MANUEL PEDRO FERREIRA
2012.03.06

Em resultado de um concurso, promovido pela Arquipélago (Associação de Compositores de Portugal) e pelo Teatro Nacional de São Carlos, foram apresentadas em estreia absoluta no Salão Nobre deste Teatro quatro cenas operáticas independentes, de outros tantos jovens autores: Sofia Sousa Rocha, Luís Soldado, Edward Luiz Ayres d'Abreu e Tiago Cabrita. Todas estas peças foram encenadas por Luís Miguel Cintra, que logrou articulá-las imaginativamente num espectáculo contínuo, com João Paulo Santos a dirigir com eficácia músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa e um punhado de cantores solistas.

A primeira constatação é que o espectáculo contou com profissionais de primeira ordem: para além dos citados, foram notáveis o empenho dos instrumentistas e a prestação vocal (limpeza técnica, riqueza tímbrica, rigor musical, clareza declamatória) da meio-soprano Maria Luísa de Freitas, do tenor Marco Alves dos Santos e dos barítonos João Merino e Mário Redondo, com a soprano Sara Braga Simões a ter menos exposição, mas presença não menos segura.

A segunda constatação é que a qualidade da escrita musical não deixou nada a desejar. Não fui nunca assaltado pela vaga sensação de poder imaginar ou fazer melhor, sensação talvez irrealista ou soberba, mas que, quando se intromete na experiência estética, é geralmente sintoma de uma qualquer falha por parte do compositor ou do intérprete em questão. Pelo contrário: fiquei plenamente convencido, por exemplo, de que dificilmente conseguiria sustentar em peça minha o ritmo endiabrado de "Manucure" (Edward L. A. d'Abreu), ou atingir o equilíbrio músico-dramático do "Fado olissiponense" (Luís Soldado/Rui Zink). São obras extraordinariamente maduras, nas quais há total sobreposição entre intenção percebida e efeito conseguido. Criações exemplares, em que os meios se adequam plenamente aos fins. E no entanto, não podiam ser mais diferentes entre si.

Antes de me alargar sobre o assunto, gostaria de referir as mini-óperas inicial e final. "Inês morre", de Sofia Sousa Rocha, baseia-se na peça do mesmo título, de Miguel Jesus, da qual o autor extraiu, por encomenda, um libreto. Este incorpora diálogos, mas, tomando como ponto de partida uma Inês de Castro já morta, tem orientação reflexiva e onírica. O facto de reflexão e sonho se cumprirem sobre o ponto culminante do drama de Inês tem uma consequência musical que faz simultaneamente a força e a fraqueza da obra: toda ela é um cume emocional, toda ela é intensidade evocativa. A linha vocal polariza e magnetiza, sempre, a textura, desenrolando em sublinhado as várias cores harmónicas, enquanto os timbales marcam obsessivamente o horizonte fúnebre. Inês morre excessivamente.

"A vida inteira", de Tiago Cabrita, tem como base um libreto de António Carlos Cortez a partir do poema de Ruy Belo «Um dia não muito longe». Disse libreto? Seria assumir demais. Um libreto é outra coisa (alguém explique a história e identidade do género, alguém mostre como se constrói). De um texto poético intensamente melancólico, mas insuficientemente seccionado, em torno da morte quotidiana, fez-se uma cena dramática que peca, naturalmente, por falta de contraste musical. Mas a expressividade é poderosa, congruente e planificadamente sustentada, e só um compositor de raro talento conseguiria, como Tiago Cabrita conseguiu, contra o próprio «libreto», preparar e construir um final de cortar a respiração.

Contrariamente a este caso, temos com Luís Soldado e Rui Zink uma equipa consolidada por várias colaborações; lembro-me só de «Alfa» (2007), cena operática estreada no Teatro S. Luiz, em que era já patente quer o estreito entendimento entre compositor e libretista, quer a eficácia do resultado no plano de uma comicidade intrinsecamente musical. Na presente mini-ópera, "Fado olissiponense" (cuja relação com "Hotel Suite" da mesma dupla, recentemente estreada, mereceria melhor explicação no programa, sendo ambas inspiradas no episódio nova-iorquino que levou à detenção de Strauss-Kahn), o ritmo dramatúrgico é, se possível, ainda mais afinado, com o compositor a explorar todas as oportunidades de contraste, sendo exímio nas mudanças de tempo, a que correspondem cores e texturas diversificadas, e naturalmente, diferentes ambientes expressivos: compare-se o dueto Ulisses/Penélope — telefonema da mulher — com a ária de Ulisses que se lhe segue. A música de Luís Soldado incorpora com naturalidade elementos alheios sem nunca se tornar estilisticamente servil ou harmonicamente previsível; estabelece, pelo contrário, as próprias regras de jogo à medida que as joga, e nos joga nelas.

Finalmente, o poema "Manucure" de Mário de Sá-Carneiro deu azo, na escrita de Edward Luiz Ayres d'Abreu, a um "Delírio futurista em doze números". E de facto está lá tudo: a sirene, o ruído, a aceleração, a dispersão da modernidade segundo a cartilha futurista, ambiente conseguido com recurso às notações informais da década de 1960, misturadas com outras, mais tradicionais. Um ritmo imparável de imagens sobrepostas, vorazes de sucessão, de auto-aniquilação. Uma energia consumida na pura dicção de si mesma. Uma imaginação prenhe dela própria. Uma homenagem totalmente adequada, totalmente convincente ao futurismo de há quase um século, e ao mesmo tempo uma gostosa afirmação de liberdade face às várias cartilhas hoje vigentes e ao afunilamento institucional dos modos de expressão.

Mais do que um espectáculo rente ao presente, esta série de mini-óperas mostrou que é justo esperar um futuro, em Portugal, para a composição músico-teatral.

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