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Novas Artes do Som
MANUEL PEDRO FERREIRA
2012.06.04

Um concerto do Sond'Ar-te Electric Ensemble: assim mesmo, um nome anglo-luso, jogando com o som, desejando projectar no mundo esse mesmo jogo entre arte e pesquisa. Desta vez, a projecção sonora, incluindo quatro estreias absolutas, restringiu-se a Cascais, em cujo Centro Cultural, no primeiro dia de Junho, se realizou o concerto. Tendo este chegado a seu termo, concluo e publicito que o resto do mundo merece também ouvir.

Talvez a primeira obra tocada pertença, não obstante, a outro campeonato, um campeonato em que a profusão se substitui largamente à construção. "Die Lebensfreude" do brasileiro Eduardo Reck Miranda (encomenda da Miso Music) prende, com a solidez de pioneses, fragmentos sonoros a um ténue fio condutor, que é veiculado sobretudo pelo piano; no 2º andamento, esse fio acolhe-se, por capricho, à evocação caseira da Bossa Nova. As projecções visuais que acompanham a música distraem, quando não repelem, dentro de um espírito que será mais ingénuo que ligeiro, mas que se arrisca a passar por pretensioso.

Os restantes compositores representados deixaram por sua vez transparecer, na variedade das suas propostas, uma tradição recente de grande exigência estética e sofisticação técnica; três deles receberam, aliás, formação na mesma instituição, a Escola Superior de Música de Lisboa. "Pensamentos perdidos" (2012) de Ana Seara (escrita para o Sond’Ar-te) é uma obra electro-acústica de enorme densidade e riqueza, em que todos os elementos e camadas, por mais díspares, surgem perfeitamente integrados num fluxo sonoro em permanente transformação, a que não falta um momento carregado de lirismo. Uma obra compacta, surpreendente, madura, que clama por repetidas audições.

"Intensités", de Ricardo Ribeiro, numa versão para clarinete e sistema electrónico de processamento em tempo real (2008 ou 2009), era a única das obras programadas que havia sido anteriormente estreada. Valeu a pena ouvir a linha monódica, poderosamente estruturada num idioma atonal de escrita tradicional, expressar a sua angústia com a respectiva aura sonora, parasitariamente pejada de eventos. O compositor, bem compreendido pelo clarinetista Nuno Pinto, conseguiu ser veemente e preciso no seu discurso.

Seguiram-se duas obras encomendadas pelo Sond'Ar-te a António Chagas Rosa e a Bruno Gabirro. "Música de cena para Santo Antão" (2012), de Chagas Rosa, é uma peça de natureza puramente acústica, que dá continuidade a um estilo muito pessoal, pleno de dramatismo. Estrutura-se em três andamentos, reservando-se (à maneira barroca) o tempo lento para o segundo, e a maior vivacidade para o último. As suas proporções relativas não me pareceram, contudo, completamente afinadas. O primeiro andamento caracteriza-se por uma retórica de grandes gestos cuja fluência e contrastação dinâmica e tímbrica pediriam mais uma orquestra do que um pequeno conjunto de câmara; sendo notável, ainda assim, o que se consegue sugerir, o efeito de insistência e a confluência na regularidade métrica produzem redundância, pelo que o prolongamento da experiência auditiva diminui o seu impacto estético. O segundo andamento, agradavelmente meditabundo, surge-nos, depois, demasiado curto. Só no último andamento, em que blocos pianísticos sincopados, de carácter vagamente jazzístico, se unem aos agudos saturados, nos pareceu haver completa congruência entre proporção e conteúdo.

A última obra, de título invulgarmente longo, "but I have many friends, and some of them are with me" (2012), foi uma surpresa. Bruno Gabirro oferece-nos nela um discurso admirável no arrojo e na elegância da formalização. O arrojo manifesta-se, em primeiro lugar, na continuidade entre ruído e som tradicionalmente "musical": a ideia não é nova, mas a forma como várias modalidades de sopro (sopro de fundo, sopro soprado) se sucedem e convergem, ou a forma como se confere intencionalidade musical ao virar das páginas, anula, mais radicalmente do que o costumado, aquela distinção. O arrojo manifesta-se também na continuidade entre som e silêncio: mais uma vez, a ideia já tem barbas, mas a sua exploração minimalista revela-se especialmente corajosa. A escolha do material harmónico supera as costumadas oposições estilísticas, e o uso dos instrumentos é, no mínimo, arejado. Depois, a forma da peça, que a pouco e pouco se constrói, vai-se afirmando com uma coerência própria. Por isso, quando o corpo da obra termina, sente-se, com justeza, o seu termo. A inclusão de uma coda pianística, pela qual se espera interminavelmente, é talvez a única decisão cuja necessidade artística não é evidente para o ouvinte.

Resta chamar a atenção para o profissionalismo do Sond'Ar-te Ensemble demonstrado neste concerto. Sob a direcção segura de Guillaume Bourgogne, tocaram Ana Raquel Lima (flauta), Nuno Pinto (clarinete), Elsa Silva (piano), Suzanna Lidegran (violino) e Filipe Quaresma (violoncelo), com assistência técnica de José Grossinho, pontualmente apoiado por outros colaboradores.

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