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Música Viva 2012 no Goethe-Institut
BENOÎT GIBSON
2012.10.26
A concluir o Festival Música Viva 2012 – Dar Voz! realizaram-se dois concertos no Goethe-Institut, Lisboa, nos dias 8 e 10 de Outubro.

— Concerto Extraordinário em Homenagem a Emmanuel Nunes

O primeiro concerto foi ocasião para prestar homenagem ao compositor Emmanuel Nunes, falecido no dia 2 de Setembro passado aos 71 anos de idade. Como introdução ao concerto valeram o testemunho pessoal e as palavras eruditas de Pedro Amaral, compositor e discípulo de Emmanuel Nunes. O programa foi também ocasião para ouvir obras cujas gravações são de difícil acesso ou simplesmente não disponíveis em CDs: “Einspielung I” (1979) para violino solo, “73-Oeldorf-75” (1975), música electrónica, e “Sonata a Tre” (1986) para trio de cordas.

Einspielung I” (1979) para violino solo é a primeira das três “Einspielungen” compostas por Emmanuel Nunes. É marcado por uma nota pedal, um ré que atravessa toda a obra, e por intervalos que caracterizam cada uma das secções. Para o intérprete, a constante mudança dos tempi e as dificuldades técnicas necessárias para a realização dos trechos representam um desafio de grande envergadura. A interpretação de Suzanna Lidegran foi notável e revelou um grande domínio técnico. Soube destacar os pormenores das articulações e as duas vozes que constituem uma grande parte do tecido da obra. Deixa-nos grandes expectativas para ouvirmos a gravação em CD de “Einspielung I” prevista pela Miso Records.

“73-Oeldorf-75” (1975) pode ser considerada a única obra electroacústica de Emmanuel Nunes, embora não figure no seu catálogo. As notas de programa do concerto mencionam que a obra "foi construida a partir de fitas magnéticas de três diferentes obras do compositor, sendo elas «Fermata» (1973), para orquestra e banda magnética, «Voyage du corps» (1973-74) para coro, sintetizador e banda magnética, e «Ruf» (1975-1977) para orquestra e banda magnética." Nas palavras que antecederam o concerto, Miguel Azguime informou-nos que a versão apresentada foi trabalhada com o próprio compositor para o festival Música Viva de 2003. “73-Oeldorf-75” é constituído principalmente por "tramas", de sons longos e homogéneos que evoluem gradualmente. Dentro de cada secção, as tramas sobrepostas surgem e dissolvem-se progressivamente. A presença ou ausência das tramas graves marca a articulação interna das secções onde ainda se destacam notas, ou acordes mais directamente associados ao som do órgão. Depois de se terem ouvido tantas notas em “Einspielung I”, a difusão no espaço de “73-Oeldorf-75” proporcionou uma experiência de imersão sonora contrastante e satisfatória.

O concerto concluiu-se com “Sonata a Tre”, para trio de cordas, a terceira das cinco passacaglias que constituem a obra “Wandlungen” (1985/86) para 25 instrumentos e electrónica em tempo real de Emmanuel Nunes. É uma obra curta, com uma duração de cerca de 5 minutos, baseada em poucos acordes onde sobressai um núcleo de alturas fixas. Dessas alturas, o sol, o ré e o mi bemol do registo mediano na parte inferior dos acordes, além de destacarem o intervalo de quinta perfeita, conferem a esta obra uma dimensão relativamente estática. A interpretação, por três elementos do Quarteto de Matosinhos, Vítor Vieira (violino), Jorges Alves (viola) e Marco Pereira (violoncelo), foi exemplar, nomeadamente no que diz respeito à coordenação entre os instrumentos e a forma como a mudança de texturas foi executada.


Guillaume Bourgogne

Rui Penha
Arash Safaian
Miguel Azguime e Nuno Peixoto de Pinho
Henrik Ajax
Hugo Ribeiro, Nuno Peixoto de Pinho, Rui Penha

O concerto em homenagem a Emmanuel Nunes organizado pelo Festival Música Viva 2012 foi um momento musical de alto nível. Infelizmente, a afluência do público não esteve à altura da qualidade do concerto nem do compositor homenageado.

— 2º Fórum Internacional para Jovens Compositores do Sond'Ar-te Electric Ensemble

O segundo concerto, realizado no âmbito do 2.º Fórum Internacional para Jovens Compositores do Sond'Ar-te Electric Ensemble, iniciou com a obra “Pendulum” do compositor Rui Penha, composta para flauta, clarinete baixo, piano, violino, violoncelo, electroacústica em tempo real e vídeo. Para a execução da obra, o piano situa-se no palco, a flauta e o violoncelo são colocados do lado direito da sala e o violino e o clarinete baixo, do lado esquerdo. “Pendulum” inspira-se numa ideia simples: a sobreposição dos movimentos de pêndulos de vários comprimentos e os fenómenos de periodicidade que resultam dessa sobreposição. Durante a execução da obra é projectado um vídeo que representa movimentos de pêndulos. Embora cativando os olhares, as imagens projectadas mantêm uma relação relativamente abstracta com a experiência sonora; ainda que alguns elementos pontuais e repetitivos no registo grave sugiram uma certa forma de periodicidade. Na sua vertente harmónica, “Pendulum” insere-se na estética da música espectral. Baseia-se num único espectro, relativamente simples. Mas a aparente simplicidade dos recursos harmónicos convida-nos a entrar dentro do espaço do som e a partilhar a sua vida interna. Os pormenores da escrita concorrem para esse fim, como o tratamento do som em tempo real. O compositor, de forma subtil e inteligente, soube integrar o espaço como componente essencial da obra.

“In Symmetrie” do compositor Arash Safaian possui uma conotação minimalista, impressa de uma personalidade original. A obra divide os instrumentos em dois grupos. O piano, que se opõe ao grupo formado pelo violoncelo, o clarinete, o violino e a flauta, garante o suporte harmónico ao tocar em tremolos sucessões de acordes reconhecíveis. A maioria desse acordes progridem por movimento conjunto com desfasamentos entre as vozes, criando efeitos interessantes de dissonâncias e de sobreposição harmónica. Esses efeitos são ainda acentuados pelo uso de delay na parte electrónica. Em oposição às modulações contínuas do piano destaca-se, nos outros instrumentos, uma pulsação subjacente mas constante que resulta da sobreposição de linhas melódicas ou da partição entre eles de linhas melódicas fragmentadas. As articulações e os acentos, notados com precisão, acrescentam um nível rítmico suplementar. É com base nessas texturas que “In Symmetrie” evolui no plano formal atribuindo a cada um dos grupos uma trajectória ou um espaço dentro dos registos.

Homenagem aos 150 anos do nascimento de Claude Debussy, “Dialogismos II” do compositor Nuno Peixoto de Pinho baseia-se em obras de outros compositores, dentro dos quais Claude Debussy, Jorge Peixinho, Woflgang Mitterer e Mauricio Sotelo. Não sabemos o que une esses compositores ou que critérios motivaram a escolha das obras de referência. Mas o prelúdio para piano de Debussy “…Des pas sur la neige” constitui o fio condutor de “Dialogismos II”. A obra articula-se em 12 secções contrastantes, alternando solista e conjunto. Dentro das secções, concebidas como um diálogo entre os compositores que inspiraram esta obra, o ritmo em ostinato que, no prelúdio de Debussy ‟deve ter o valor sonoro de um fundo de paisagem sonoro triste e gelado” (“Ce rythme doit avoir la valeur sonore d'un fond de paysage triste et glacé”), constitui um dos elementos mais salientes, de certa forma deturpado da sua função original por encontrar-se frequentemente em primeiro plano. A última secção da obra refere-se de forma ainda mais explícita ao prelúdio de Debussy. Inicia com uma orquestração da última melodia, para a qual Debussy indicou: ‟Comme un tendre et triste regret”. Ao transcrever a parte do piano para flauta, clarinete, violoncelo e violino, é curioso que uma nota num dos acordes que acompanham a melodia tenha sido alterado. Terá sido intencional? A obra termina com a citação literal, ainda que com electrónica, dos últimos compassos de “…Des pas sur la neige”. O interesse de “Dialogismos II” situa-se mais nos processos de transformação do material e na forma como são utilizados os meios electrónicos do que nas referências reconhecíveis.

“Drawing lines” do compositor Henrik Ajax divide-se em três andamentos e afixa uma clareza formal que resulta em parte da simplicidade dos materiais utilizados, nomeadamente a polarização sobre a nota lá ou o uso de escalas diatónicas. A oposição entre os instrumentos ou grupos de instrumentos manifesta-se de forma evidente, através das texturas e dos registos, sendo o segundo andamento o exemplo mais saliente de contraste, entre a linha melódica lenta e expressiva do violoncelo solista e os fragmentos rápidos e homofónicos dos restantes instrumentos sobrepostos como agregados cromáticos. O terceiro andamento constitui a parte principal da obra. Evoca logo de início a música de Ligeti, em particular a textura da micropolifonia do primeiro andamento do “Kammerkonzert”, com a combinação dos timbres da flauta e do clarinete. A polarização do lá nota pedal no registo grave confere um caracter estático à secção seguinte, mas serve de início à construção de um processo que leva ao clímax da obra poucos compassos antes do fim. É nessa dramatização do gesto formal que “Drawing lines” sustenta o nosso interesse.

O concerto acabou com a obra “et alibi” de Hugo Ribeiro, composta para flauta, clarinete, violino, violoncelo, piano e electónica. “et alibi” pode ser dividido em dois momentos distintos. O primeiro apresenta uma sucessão de pequenos gestos articulados com acordes contrastantes onde transparecem o domínio da escrita instrumental e um sentido apurado da forma. O segundo ocorre quando os instrumentos se calam e surgem fragmentos de músicas como que produzidas por caixas de música. Da sobreposição desses fragmentos distinguem-se melodias conhecidas. E “et alibi” termina, não sem sentido de humor, depois de uma das caixas de música, isolada, ter deixado ouvir as notas finais do “Parabéns a você”. Em português, esta frase final corresponde ao momento em que se canta ‟uma salva de palmas”. A salva de palmas que seguiu foi amplamente merecida, para o menino Hugo...

Não se pode concluir sem salientar a qualidade musical e o profissionalismo dos músicos do Sond'Ar-te Electric Ensemble (Silvia Cancela, flauta; Luís Gomes, clarinete; Suzanna Lidegran, violino; Nelson Ferreira, violoncelo; e Joana Gama, piano) que actuaram sob a direcção segura, precisa e inspirada do maestro Guillaume Borgogne, e louvar a iniciativa do Fórum para Jovens Compositores do Sond'Ar-te Electric Ensemble pela importância que tem para a criação musical contemporânea.

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