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Quatro estreias, três compositores, duas gerações
VIRGÍLIO MELO
2012.12.10

Em dois concertos da sua recente programação (17 e 27 de Novembro) a Casa da Música presenteou-nos com quatro primeiras audições de compositores nacionais, todas elas, aliás, encomendas da instituição. No primeiro concerto, a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, sob a direcção de Andrew Grams ofereceu-nos "Non"sense%)8$messages#_! (for a nonsense reality)" de Igor C. Silva e "Imagens Sonoras" de Filipe Pires; no segundo, interpretadas pelo Remix Ensemble, sob a direcção de Peter Rundel, ouviram-se from "underground_03" do mesmo Igor C. Silva e o Triplo Concerto Grosso de Álvaro Salazar.

As partituras de Igor C. Silva (nascido em 1989 e compositor em residência na Casa da Música) causaram uma favorável e forte impressão. O jovem criador patenteia apuro técnico e uma personalidade musical marcante, eivada de laivos de um surrealismo multímodo e generoso. Na obra para a formação sinfónica, o delicado problema do equilíbrio entre a orquestra e electrónica é excelentemente resolvido, por meio de uma escrita em que o entrosamento das sonoridades é realizado com a naturalidade e mestria de um orquestrador (ou se preferirem, sintetizador) nato. Mas, não se pense que a fusão ilusionista é o único registo em que a obra aposta, já que Silva não receia o programático. O gesto inicial consiste na intervenção de um narrador acusmático que proclama "You are losing your mind" lançando frases/sonoridades que permeiam, com diferentes graus de perceptibilidade, o continuum musical. Incrustados neste, aparecem, amiúde inteligentemente esbatidos, gestos musicais mais caracterizados, culminando num notável momento: o solo para violoncelo amplificado, única ocasião aliás em que tal artifício é utilizado nos instrumentos.

Na obra para o Remix Ensemble, nota-se a mesma personalidade, mas sem repetição de receitas. A partitura divide-se mais claramente em diferentes secções e, segundo o próprio autor, reflecte o seu gosto por um grande leque de géneros musicais. Talvez isso provoque a aparição de alguns gestos instrumentais menos subtis (rítmica um tanto primária, tutti à oitava) necessitando, quiçá, uma certa depuração, entendendo-se tal termo no sentido de uma certa digestão das influências e vivências e não no de um qualquer coarctar da benvinda variedade dos gestos. De qualquer modo, estamos perante uma carreira que merece ser seguida com atenção e empatia.

A execução a alguns dias de distância de obras de Filipe Pires (nascido em 1934) e de Álvaro Salazar (nascido em 1938) chama a atenção para uma geração que se afigurou fundamental no romper com as peias académicas de um ensino avesso a toda uma série de desenvolvimentos modernos da arte musical, tanto da Segunda Escola da Viena, como das revoluções sonoras pós-45. O contemplar dos diferentes trabalhos desta geração, que inclui outros nomes como Cândido Lima e culminando nos já desaparecidos Jorge Peixinho e Emmanuel Nunes, permite também ver a origem de problemáticas e tentações que não deixam de iluminar algumas tendências do período actual que já, acertadamente, se denominou "segundo Renascimento da composição em Portugal".

Filipe Pires sempre reivindicou a liberdade de utilização de uma variedade de estilos, desde os seus primeiros amores neoclássicos até à música electroacústica e forma aberta. Estas "Imagens Sonoras" são uma transcrição da peça para piano intitulada Estudos de Sonoridades. Cumpre afirmar que, apesar de um passado de sólida formação pianística, o medium de eleição do compositor é a orquestra; como em qualquer boa transcrição, esta é perfeitamente satisfatória enquanto peça autónoma, nunca se sentido vestígios do pianismo original. Filipe Pires sempre foi um excelente orquestrador e, diga-se de passagem, sempre soube transmitir aos seus alunos esse sentido da utilização requintada da orquestra sinfónica. A algo rebarbativa linguagem neoclássica do original, ganha com o tratamento instrumental que, embora seguindo fielmente a trama da peça de piano, consegue, pela inteligente repartição dos grupos instrumentais, um interessante efeito de distanciação e um dramatismo acrescido. Mas importa levantar a questão da já referida digestão das influências e a da liberdade criadora: esta temática reaparece em tempos em que muitos autores, amiúde com menos competência técnica e mundivivência cultural, se entregam, com deleite infantil, a empolar a pertinência estética de mal disfarçados exercícios de escola. O trabalho de Pires demonstra seriedade e excelente artesanato mas suscita questões que transcendem largamente a sua praxis composicional.

Nos antípodas de um tal pragmatismo competente situam-se a ética artística e a obra de Álvaro Salazar. Numa cerimónia que antecedeu o concerto de dia 27, o compositor foi agraciado com a medalha de honra da Sociedade Portuguesa de Autores; essa homenagem proporcionou ao músico a oportunidade de explanar o seu credo artístico. Mas melhor do que as suas palavras, aliás notáveis pela pertinência e sentido de humor, falou a sua obra. Este magnífico Triplo Concerto Grosso, confirma, por um lado, Salazar como um dos nosso grandes compositores em actividade, e por outro, revela mais uma faceta de um estilo coerente e variado. Ao nível mais imediato, a extraordinária invenção instrumental em que silêncio e som, som e "ruído" se fundem e interpenetram de modo mágico. Indo mais além, num tentame de descrição verbal de uma poética tão ancorada no sonoro, é digno de nota o sentido de mistério das várias camadas de leitura (o palimpsesto caro ao autor), numa música que (mesmo quando ironicamente se pretende incomunicante) desperta, surpreende e honra a inteligência e a sensibilidade daquele que a frui.

Uma moderna prosa musical em que se tem a sensação de que a música nasce no momento mesmo em que é interpretada, mas sem a menor impressão de improvisação deletéria. Os grupos instrumentais alternam entre si, de modo não sistemático, as funções de concertino e ripieno, tendendo o todo para uma surpreendente cadenza de violoncelo que, aliás, foi brilhantemente executada por Oliver Parr. Uma grande obra que, aliás, teve um caloroso acolhimento por parte do público.

E já que citámos um dos intérpretes, não podíamos deixar de referir a grande qualidade interpretativa dos dois concertos. Andrew Grams dirigiu Igor C. Silva e Filipe Pires com o mesmo rigor e musicalidade com que nos ofereceu uma notável versão da Sinfonia em Três Andamentos de Stravinski. Peter Rundel, em particular na obra de Álvaro Salazar, apreendeu com profundidade o fio do discurso musical, nunca fazendo sentir as costuras entre a escrita medida e as liberdades locais.

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