2021.05.14-15 · O'culto da Ajuda, Lisboa
Rui Silva e Bruno Gabirro · “Aduf&lectrónica”
Manual do Adufe: tocar singelo, tocar dobrado
Tiago Schwäbl
Rui Silva e Bruno Gabirro
Rui Silva e Bruno Gabirro no O'culto da Ajuda

Da plateia do O'culto da Ajuda testemunhamos no palco um polo bicéfalo, metade estantes e adufes, metade computador e parafernália eletrónica, enquanto no pano de fundo vão surgindo os títulos: Aduf&lectrónica de Rui Silva e Bruno Gabirro, 19h30, 14 e 15 de Junho de 2021.

adufe digital
Inicia o concerto enevoado em estática, Rui Silva (adufe) e Bruno Gabirro (eletrónica em tempo real + adufe) chegam para (re)(des)sintonizar a tradição e o mito, chamando (xamãndo?) a prática adufeira à colação da música erudita; aliás, a carta de intenções do projeto fora previamente afixada: “Se essa condição [autóctone] acabou por lhe conferir uma aura mítica, tem-lhe retirado também verdadeiras possibilidades de desenvolvimento e expansão enquanto instrumento em si”.
Mirando absorto o verde adufe atravessado pelo ruído branco, Rui Silva encarna a pesquisa, circulando de objeto quadrado nas mãos como quem procura rede, até que um dedo, em gesto decisivo – digital – de quem toma opções num tablet, desliza: algo fecha, tudo silencia. “Slide to unlock” intitula a faixa e novo gesto de dedo sobre o quadrado ativa a estática, em movimento literalmente digital – testando o sinal, colando o ruído à pele – de uma proposta a que o compositor, para com os seus botões, responde atento, ativa e desativa, bloqueia e desbloqueia. Adufe. Adufe. Adufe.
Deslizar é tocar, tocar é desbloquear, ergo deslizar é desbloquear. Desbloquear um adufe. Partilhar os códigos, os códigos-base do adufe e os recém providenciados e experimentados pelos músicos. A estática serve de atmosfera amniótica a este estudo de caso, abrindo espaço à extática da associação e dissociação, ao assombro do digital. Porque, afinal, digital, digital, é o adufe. Tal trocadilho rapidamente será colocado em prática, na ambiguidade das possibilidades dedais e digitais, no reconhecimento pelo sistema de novos dígitos, na (des)codificação de um novo repertório. O jogo performático de emulação sugere a abrangência do uso, tocando-se como o mais trivial dos objetos, como, por exemplo, um telemóvel.
Nem de propósito, um telemóvel toca na plateia (“não desliguei isso”) e, no público, alguém replica, involuntariamente, o gesto começado no palco (deixou-se o adufe ligado). O concerto é muito isso: o adufeiro inicia o gesto e a eletrónica replica, no duplo sentido do termo: reproduzir (réplica) e retorquir.

Prosseguindo a analogia do neologismo, este instrumento é, à letra, uma interface: duas faces do adufe, uma encostada ao corpo, roçando o mito, outra de frente para o microfone que lhe dá voz, que a capta, amplifica e devolve.
Na verdade, a eletrónica condensa em si não só a interface por via da amplificação de depurações sonoras que de outra forma não se fariam ouvir, mas também a mistura de sons oriundos dessa dupla face-interface do adufe e do aparato eletrónico; expõe-se assim em dupla fonte, de forma alternada ou simultânea, ora alimentando-se do adufe, ora regurgitando ecos entre a reverberação mais subtil e o desfasamento mais torcido. Tarda o som definido: há todo um caminho de pele por acariciar, palmilhar, raspar, retardando a todo o custo a dimensão mais tamborileira da expetativa percussiva. Estamos ainda no domínio da estática.
Até que finalmente se culmina na vibração concreta, decorrente de golpe mais incisivo na superfície que define os tons. A partir daí é a desconjunção da forma, um desdobramento corporal que acompanha as dimensões performáticas da caixa, nos seus diversos planos, como numa aula de geometria – rebatimento de planos, eixos alterados, adufe agitado e um universo de caricas a repique. O adufeiro é o jongleur, e o adufe a apoteose do malabarista. Assim termina a primeira peça.

Presenciamos a mostra-mãe do cardápio adufal, basta olhar e aprender com os novos mestres a dar som ao que fazemos, de forma simples e direta, tornando uma coisa – um adufe? – um objeto de todos. Afigura-se uma pre-meditação pedagógica naquele à-vontade com o instrumento, uma atitude: conhecer, aproximar ao corpo, pegar... algo naquela movimentação próxima ao quadrado de pele, tão versátil, minuciosa e expandida no seu uso, nos convence desse intuito: qualquer um de nós poderá replicar, recuperar aprender, dar-lhe uso e torná-lo ouvido, abaná-lo até extrair um som.

Enquanto abana a caixa, a quadrifonia altifalante impele o unboxing (im)possível: esta (nova) forma de tocar abre ao mundo os sons de uma caixa bem (?) aparafusada. Ou aparafusada de forma regulável: esta é a outra face, a evolução do instrumento, como explicará o construtor Rui Silva. Porque é de tecnologia que falamos, de etnomusicologia protésica. Este é o velho novo adufe, pronto a tocar em qualquer palco, em qualquer contexto. O jovem adufeiro, aprendiz de xamã, que, invocando as primeiras adufeiras, revela no O’culto da cidade o seu novo adufe.

Rui Silva: Hoje em dia os adufes são do território de Idanha-a-Nova e da aldeia do Paul na Covilhã e no resto de Portugal tocam-se nas cidades. (…) Provavelmente há mais gente a tocar adufe nas cidades hoje em dia do que nas aldeias em Idanha-a-Nova.

Diz-me então, caixa, o que conténs.

Uma lição de etnomusicologia: “no verão, os adufes tocam sempre”
Encontramos um Rui Silva contemplativo, às portas do O’culto, à sombra, a olhar para um adufe a secar ao sol. – Os adufes são instrumentos com pele natural e são muito sensíveis à temperatura e à humidade, como qualquer instrumento de pele natural e como qualquer instrumento musical. Mas afinal, o que é um adufe? É a tarde do ensaio geral, e o músico-investigador-construtor-artesão, explica enciclopédica e dedicadamente as especificidades deste (seu) instrumento.
(Calha bem. Nem de propósito, a dois passos fica o Museu de Etnologia: o adufe é “um bimembranofone quadrado de aro baixo”.)
Rui Silva: O adufe faz parte da família dos frame drums – instrumento de moldura ou caixilho ou aro [frame] –, tal como o Riq, pandeiro árabe, ou Daf, da Pérsia, ou o tambor xamânico, (…) muito próximo de uma prática musical em que podemos tocar, cantar e dançar ao mesmo tempo, e que está perto de nós, tocado com as mãos.
São instrumentos rudimentares [tocados pelas adufeiras; tal como o riq, também o adufe é tradicionalmente manobrado por mulheres]. É como se fazia desde sempre: pregam-se quatro tábuas iguais de uma maneira especial (dependendo de construtor para construtor, há várias formas de pregar as quatro tábuas para elas não colapsarem) e depois a pele é curtida e trabalhada (…) e cosida no adufe. Esta maneira de fazer manteve-se, é uma forma muito rudimentar, muito simples: por aquilo que podemos ver nos adufes que se fazem hoje artesanalmente e nesses que existiam há cento e tal anos, é praticamente igual, não há assim grande variação.
Sem grande variação na construção ao longo dos tempos, todavia sujeitos à variação do tempo:
O que acontecia era: as pessoas tinham esses adufes rudimentares e nos dias de sol os adufes têm as peles esticadas e nos dias de chuva e de humidade não tocam… Como as romarias na Beira Baixa são todas no verão, os adufes tocam sempre.
Quando se traz os adufes para o litoral para tocar, basta vir o primeiro dia de chuva e já ninguém consegue tocar adufe. As adufeiras contornam esse problema no verão (há sempre sol); ou então, quando querem tocar no inverno, aquecem os adufes à lareira.
Ora, isto para os músicos tradicionais também era um problema porque há determinadas técnicas e sons que só funcionam se a pele tiver uma determinada tensão. Se nós não controlamos essa tensão, estamos sempre sujeitos ao ambiente para podermos tocar ou não aquilo que queremos.

Um instrumento aparentemente indomável, tão caprichoso quão sensível às intempéries. Eis o dilema-provocação: preservar a tradição e deixá-lo quieto no inverno, ou acordá-lo da hibernação, retirá-lo da sua sensibilidade original, interferir no meio, autonomizá-lo, enquanto se incorre no seu inevitável distanciamento? Esse distanciar e aproximar, reavivar e matar, evoluir e adaptar, amplificar e ecoar, acompanha todos os passos do concerto… O que fazer, deixar a fera oculta no seu habitat ou desO’cultá-la?
Na prática, não chega sequer a ser um dilema, porque toda a gente fica contente: adufeiras, músicos profissionais, habitantes do litoral e público da Travessa das Zebras. Graças a essa uniformização, inaugura-se o toque em dias de chuva. À boleia da inovação, logo se sucedem outros -ões: evolução, profissionalização, distribuição, universalização, apresentação…, set de percussão: a partir do momento em que entra num, garante-se o interesse oficial. Assiste-se assim ao processo de revitalização do adufe.
Mas, frisa Rui Silva: Estes também não deixam de ser rudimentares na sua tecnologia e eu quero mantê-los assim. Nunca tinha havido um adufe com afinação até agora. (...) O que este sistema permite é: eu posso escolher a tensão que tenho na pele ao tocar. Assim, não estou dependente do ambiente e há técnicas que precisam de mais tensão na pele, por exemplo as técnicas com os dedos, que não são as do adufe, mas que podem ser adaptadas e posso [melhorar], por exemplo, em termos de articulação e clareza.

Manual técnico do adufe amplificado
Segue-se um duo para adufes, a seco, sem eletrónica. A sala vibra ao som das pancadas, soa o adufe enxuto, a quatro mãos, em ritmos singelos oriundos da circunscrição de quatro ripas. Escutamos o enquadramento histórico dessa delimitação, repetido até fazer sentido; lembra Steve Reich (bem a propósito, como se comprovará no final): a transcrição e padronização de elementos tradicionais, novas combinações de possibilidades pré-existentes... Bastará um esboço de partitura – Duo para dois adufes – para entrar no cânone e assegurar a legitimação?
Bruno Gabirro: Em vários casos há uma partitura, há música que está escrita; outras têm partes escritas e portanto há uma forma da peça. Mas permite variações ou improvisação. E outras são improvisadas.
Entretanto, reconheceremos as técnicas aplicadas, explicadas à tarde por Rui Silva:
O polegar da mão forte, principal, fica apoiado na ilharga do instrumento, no caixilho, e faz de pivô. (...) O adufe dá três sons: um grave, um agudo, e uma nota ornamental na mão esquerda. A combinação desses três sons faz os ritmos, ao contrário de um tambor, em que se toca praticamente sempre no mesmo som e é uma coisa plana.
Num frame drum, tu podes fazer melodias rítmicas, como os outros instrumentos, no norte da África… Então, a repetição e cadência dos ritmos – o fraseado – é feito pela alternância entre o grave, o agudo e a nota ornamental. Mas a mão direita, que é a mão principal, conduz os ritmos, ou seja: há pessoas que tocam muito bem a mão direita e não tocam a esquerda; há pessoas que tocam uma vez – o que as adufeiras chamam o "tocar singelo" (ornamentam uma vez) –, e depois há quem seja tenha mais experiência e mais destreza e toca duas vezes – "tocar dobrado". São termos das adufeiras. É isto que acontece: o ritmo é conduzido com a direita e depois a ornamentação é feita pela esquerda.

& a eletrónica, assomando espacial e quadrifónica, ajuda no contraponto à orquestralidade e na completude das técnicas, proporcionando cisternas de pianíssimos sem macular a precisão. A sintonização simbólica do adufe traduz-se em ruído branco, que por sua vez alude a sinal de amplificação. Adufe sob escuta. Um exercício dobrado de amplificação metafórica e prática: sacar a panóplia de técnicas e lugares, dissertar entre raízes e ramificações, peles e folhas. Mas também construir andaimes metálicos e barulhentos em seu torno, não obstante construtivos.
Aproximemo-nos do set montado em palco e apontemos mais umas notas para o nosso manual:
Rui Silva: Isto é uma lima com uma bola de borracha, a que chamamos superball: é uma bola de brincar normal mas que gera atrito com a pele e estimula a sua vibração e [respetivos] harmónicos. Uns guizos de pesca que eu ponho aqui por fora do adufe para ser mais um elemento sonoro. Uma corrente que eu encosto à pele do adufe e que também gera uma vibração muito própria e posso usá-la também como elemento percussivo, aqui a bater, a baloiçar. Depois tenho vassouras de palha, que fui eu que fiz também. E tenho uma baqueta para tocar com mais volume de som e para tocar lá como os espanhóis tocam em Peñaparda. Pronto, isto são as ferramentas que eu uso.

O concerto prossegue em alinhamento alternando entre peças dos dois músicos-investigadores-compositores. Aqui e ali, fragmentos de técnicas multifacetadas, rotativas, crivadas por efeitos eletroacústicos, apresentadas em elementos lentamente espelhados que transmutam a sua pulsação primária, como um “caleidoscópio de ritmos tradicionais”.
Funciona porque, inserindo-se na rubrica da Miso Music Portugal “Intérpretes Extraordinários”, Rui Silva toca com entrega e intensidade. O adufe é rei e senhor e faz ricochete na eletrónica, que recambia o contraponto, deixando quase a solo o mandatário do despique, tal qual um mestre das danças da ilha do Pico, o chamado “puxador”.

O que um adufe impele
Sucedem-se as cadências, empurra-se o ritmo; incansável companheiro do toque, o instrumento não pode deixar de ser batido. Se tocar dobrado equivale a dominar a técnica, dobrar o adufe como um sino assinalará quais exéquias? Exaurir o adufe, desdobrá-lo física e eletronicamente, fazê-lo suar as peles, expandir e matar o mito, fazer tábua pele rasa das técnicas do adufe; reconhecer, treinar, instituir, adaptar, acrescentar: tocar dobrado a fundo.
Aqui e agora, o adufe entra a pés juntos no cânone: (mais -ões) recuperação, legitimação, reinterpretação... Talvez um dia se possa vagamente (não) situar a mudança hoje apresentada, talvez um dia um adufe seja tudo isso já completo, ou uma outra memória reiteradamente analisada, precariamente fixa e reinterpretada, como qualquer outro instrumento "antigo”… Mas, para já, este investimento investigatório é datável. Eles explicaram e mostraram. Agora toquem-no. Pois este é o Manual do Adufe Contemporâneo.
Um manual em versão concerto, técnicas e sons do ofício em concerto-exercício que é também um concerto-prova e um concerto-mostra de potencial coetâneo de tradição e inovação futura, bem como, no final, um concerto-prova de adaptação a outro repertório.
Arriscar-se-á talvez a construção (demasiado?) consciente de um repertório dependente de uma lista, mas este é um concerto-necessário, é um ponto no i no & [e comercial] de aduf&letrónica, um concerto-missão de desmistificação. A condição ambígua e polivalente entre apresentação de um património, a sua preservação, e simultaneamente a mistura, a mutação e criação concentra vários passos num só adufe. Pode um instrumento transportar-se para fora de si enquanto ainda si define? Aguentará um adufe a exposição que lhe dedicam? Será talvez ingrata e forçada esta concentração num só medium, mas Silva e Gabirro detetaram o privilégio de um nicho: têm a oportunidade de acompanhar “em tempo real”, enquanto o adufe é ainda tocado tradicionalmente pelas adufeiras, de aplicar o processo de recuperação da “nova música antiga”, de saber como se toca, de construir um arquivo simultâneo de legado herdado e repertório por eles criado, congregando consciência histórica e intuição artística composicional. De facto, este é o momento. Adicionar uma entrada ao cânone; recuperar os passos em atraso, prevenir (provocar?) especulações futuras. Várias etapas de investigação num só concerto, o adufe puxado e repuxado. Tocando, o que se preserva? Adaptando, onde se chega?
Seremos aprendizes dos sons perante um instrumento que é mais velho que nós. Parte dessa reflexão ocorreu ao longo do processo:
Bruno Gabirro: …até por causa da origem do instrumento – da origem atual, pelo menos, e do seu uso. Para mim, como para a maioria das pessoas, o adufe era assim uma coisa entre o mito e o desconhecido, como normalmente os mitos... Era uma ideia, uma memória fabricada; obviamente, não quer dizer que não tenha ouvido, como a maior parte das pessoas, mas não fazia parte do meu mundo. De qualquer forma, há uma memória que todos acabamos por criar. No princípio era muito difícil pensar sequer no instrumento e fazer alguma coisa com ele.

Eis agora que tudo se faz com ele.
Novo ruído branco, agora em estática localizada: do marulhar plástico nas mãos, desenrolam-se as técnicas expandidas do percussionista experiente, todas as cartas são jogadas, em todas as faces possíveis, um adufe enquanto interface multifacetado. Rui Silva é um músico exímio, explora tonalidades e relevos em micro gestos variados, do orquestral ao subtil, todo o repertório na manga arregaçada. Somos todos ouvidos.
Rui Silva: ...é tudo captado para o microfone; há peças em que o som é amplificado para a sala e outras peças em que depois o Bruno trabalha – esses sons que eu, ao provocar no adufe certo tipo de sons e frequências… – , ele depois manipula ali.
A minha relação com a eletrónica é incrível porque, para além de explorar as técnicas performativas do adufe e doutros frame drums – técnicas com dedos e outras maneiras de tocar e de bater –, de repente tocas num instrumento que tem ainda mais uma janela, uma porta, mais uma divisão de sons completamente espetaculares. É isso que é fascinante.

Uns ritmos são absorvidos pelo sistema quadrifónico, outros nunca entram no eco sombrio da eletrónica. Tantas portas abertas, de uma delas saltará uma roda de mulheres – a convocação das adufeiras –, de outra escaparão gritos do outro mundo altifalante.
Um adufe a duas mãos, por vezes quatro, um mesmo gesto constante, três batidas escarranchadas. O percussionista sabe jogar a estereofonia; a &letrónica dá uma mão.

Uma lição de harmonia: “Quase sempre vamos juntos”
Tal caleidoscópio, no qual os espelhos amplificam a base crua dos resíduos materiais, a eletrónica, sóbria, acompanha de perto o ofício-artifício do adufe, eco-reagindo (“Delay”, “Reverb”) a cada alteração digital percutida, a cada mudança de baqueta, contrapondo desfasamento e eco, propondo idas e voltas de espetros subtis, por vezes imitação e fuga, retroalimentação, reação e espera.
O mito construiu-se no toque singelo, desmistifica-se agora no multi-toque dobrado e amplificado de “um projeto que procura trazer o adufe para a tradição da música erudita”.

Bruno Gabirro: …a eletrónica não é outra coisa, mas está dentro dos instrumentos e com os instrumentos e tudo tem de estar sincronizado. Quando digo sincronizado é tocar junto.
Normalmente experimento com ele. Aliás, isto sem o Rui seria absolutamente impossível. Também estudo adufe com ele, para aprender, precisamente – era um instrumento mítico... – o que é que iria fazer, e senti essa necessidade… para o ir conhecendo e ir entrando nesse mundo, nessa família de instrumentos, e especificamente no adufe.


Vibração e baqueta, varinha mágica e cortador de relva, agulha e vitral, ruído e destruição, drones e acufenos, massa e estilhaço, todos os registos puxados, nenhum por levantar. “Harmoniemusik” é a peça mais elaboradamente eletrónica (num dos extremos do concerto-lista), a que mais sai do eixo regional e entra na máquina, a que mais nos transporta, rasgando a mera amplificação e imitação fugada, distanciando-se sonoramente do adufe, embora dele dependa simbioticamente; usando-o como trampolim, transcende-se o adufe, e puf!, um adufe não é mais um adufe. A eletrónica rep(l)ica agora o toque dobrado do adufe, em mergulho radical, reação eletrónica adversa, vidro quebrado, minuciosa sucateira e excruciante agulheza. Um pico de corrente.
(Atenção: sugestão de apresentação. No dia seguinte, o resultado pode ser outro.)
Rui Silva: E este carácter aleatório deste som que surge enquanto nós tocamos sempre me fascinou.
Bruno Gabirro: Quase sempre vamos juntos, não há propriamente... à exceção da primeira, que surge de uma peça que ouvi dele, e esta serve de resposta. Juntos, mas uma certa dissociação. O que acontece na eletrónica só acontece devido ao que ele está a fazer e depois o que eu faço na eletrónica, também é escrito.
A ideia de rodar uns botões, não é a mesma coisa que tocar um instrumento, mas o que se passa entre nós os dois é...


…música de câmara
Voltamos (saímos?) ao espaço não filtrado de encontros imediatos. É a vez de dois adufes mais pequenos, um azul, outro branco, darem a pele à intensidade histórico-rítmica, ao momento de (+ões) legitimação e aceitação, atestado de capacidade e versatilidade do adufe, com voucher de apadrinhamento da autoridade de um clássico e bónus de doce final para o público: “Clapping Music”, de Steve Reich.
Os dois músicos imergem na famosa premissa rítmica do compositor nova-iorquino: na palma da mão o adufe recebendo na pele a música das palmas. Reconhecemos no tema o fôlego, que em si concentra o movimento acordeónico de todo o concerto – fase e desfasamento –, e a bengala confortável da durabilidade de um padrão. Insere-se o adufe no trilho do cânone por via da certificação do cover. Paradoxalmente, ao cobrir versões, atribuindo-lhe capacidade multi-funções, expandindo as técnicas, ao tornar-se elemento de escolha num set de multi-percussão, torna-se calibradamente substituível, tal como o próprio adufe acaba por substituir as palmas de “Clapping”. Mas a música sobrevive-lhe e perpetua-se no tempo, ora independente do meio, ora dele vestindo a pele. Terminamos com o “simples” adufe, a toque singelo, em território conhecido, completando um arco lógico bem planeado.
Clapping, logo replicado por palmas no público.

No final, já à saída do O’culto, despede-se o Rui em (habitual) tirada provocativa e jocosa:
Depois disto, pouco mais haverá a tocar no adufe…

Gravação do concerto disponível na secção Media – Vídeos: >> ligação

O Autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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