2021.11.7 · 2021.11.16 · Festival Música Viva 2021
Filipe EstevesSul e Sueste (concerto monográfico)
Todor Todoroff e Flo Menezes
O'culto da Ajuda, Lisboa
As 9 vidas da acusmática
PEDRO BOLÉO
Orquestra de Altifalantes · Miso Music Portugal
Orquestra de Altifalantes · Miso Music Portugal

No Festival Música Viva deste ano houve vários concertos de música electroacústica com a Orquestra de Altifalantes, todos eles no O'Culto da Ajuda, em Lisboa. Neste texto referimo-nos a dois deles: o concerto com obras de Filipe Esteves (dia 7 de Novembro) e aquele que juntou peças de Todor Todoroff e Flo Menezes (no dia 16 de Novembro).

Apesar do ponto de contacto evidente (concertos de obras acusmáticas), foram concertos bem diferentes. No dia 7 o compositor Filipe Esteves foi apresentado na abertura do concerto como “revelação” e lançava no festival o seu disco inaugural, Sul e Sueste. Filipe Esteves, apesar de ser “revelação” no domínio da electroacústica graças a este disco, tem um percurso de duas décadas na composição e conta já 43 anos feitos.

E Sul e Sueste é de facto uma revelação: a diferença em relação ao CD editado pela Miso Records é que ao vivo, com a Orquestra de Altifalantes da Miso Music Portugal, a obra ganha toda uma outra dimensão. Ouvimos sons que os elementos naturais produzem sem a nossa interferência (águas nas pedras, ventos nas águas) e outros sons depurados gravados em período de confinamento, naquela altura em que as cidades ficaram quase silenciosas e a escuta se podia aguçar. Neste caso, o ponto de partida foi a cidade do Barreiro. E se tudo a princípio é apenas soundscape, com os sons dos comboios da gare a sugerir chegadas e partidas, logo se transformam numa viagem maior.

O que emerge então é o acto de composição electroacústica que Filipe Esteves faz, construindo uma voz interior que começa por deambular, para logo se pôr a imaginar e a... compor. No caso de Filipe Esteves, esse compor com os sons gravados e transformados electronicamente assemelha-se a um trabalho de artífice – pode o compositor ser um vidreiro, temperando os sons? Ou será um ceramista que molda e pinta, mas tem de esperar a obra sair do forno? Ou teremos melhor metáfora com a serralharia artesanal, dobrando o metal com fogo ou sem ele? E ao mesmo tempo, é de música que falamos: são vozes e linhas que se autonomizam a partir da paisagem, abstractas polifonias que vêm à tona a partir do som das águas à beira Tejo, ou desenhos melódicos sobre texturas quase orquestrais que emergem dos sons dos comboios ou dos motores da cidade.

Uma agradável surpresa, este concerto com 5 obras no total, 3 delas em estreia absoluta. E a sua projecção sonora permitiu uma escuta concentrada e colectiva, ali com as colunas a olharem para nós, levando-nos na viagem. O título Sul e Sueste toma o nome da linha de caminho-de-ferro que tanta importância teve na história do Barreiro. Hoje é – também – um lugar onde um compositor (Filipe Esteves é dali mesmo, do Barreiro) pode respigar sons para, trabalhando-os como numa oficina, propor uma viagem musical a outras (imaginadas) terras.

Já o concerto de dia 16 de Novembro reunia obras de dois compositores consagrados, veteranos destas coisas, autores de percursos já longos e com obra “firmada”, como às vezes se diz. Consagrados? Mas quem conhecerá bem por cá a obra de Todor Todoroff e Flo Menezes? Veteranos? Todoroff nasceu apenas em 1963 e Menezes em 1962... ainda não completaram sequer 60 anos. Todoroff nasceu na Bélgica, em Bruxelas, onde estudou engenharia (no campo das telecomunicações) e onde trabalha como compositor, criador de instrumentos virtuais e sistemas interactivos. A sua obra tem estreita relação com outras artes, como a dança (destacando-se aqui a colaboração com a coreógrafa Michèle Noiret) ou o vídeo.

Todor Todoroff esteve em Lisboa para apresentar o seu concerto e para fazer a projecção sonora das suas próprias obras e do seu colega brasileiro Flo Menezes (que infelizmente não pôde deslocar-se a Lisboa).

O concerto de dia 16 começou com Cahier de sons, de Flo Menezes, peça acusmática para 8 canais onde ouvimos folhas que se viram e abrem diferentes “páginas” de um caderno. O que importa aqui é sobretudo a qualidade dos sons: o que é interessante num som, afinal? Menezes gosta de rugosidades e sons que parecem insectos, rangedores e sinos, vozes e seus ruídos, mas também sons “liquefeitos” ou sugerindo atracções magnéticas entre detritos metálicos. Este Cahier de sons (título que tem uma referência a Paul Valéry e aos seus Cahiers) assume-se como um “bloco de notas”, mas nunca se limitando ao registo. Há sempre uma elaboração estética, por mais pequena que seja a ideia sonora encontrada. Quando o concreto se faz abstracção, então o caderno faz-se música.

Veio depois uma das peças que integra o seu Ciclo das errâncias: tratava-se de Hymnus – il cielo candrà verso il fondo, uma peça ainda mais “espacial”, para 16 canais, cujo título lembra imediatamente Hymnen, de Stockhausen. Este Hymnus é uma peça de exaltação da presença humana, da sua diversidade e da sua potência. Ouvimos aplausos, vozes e músicas numa montagem que nos faz pensar nas obras cinematográficas de Dziga Vertov. Errante e tendencialmente universal, a peça de Flo Menezes expõe a beleza, mas também o que se lhe opõe. Está ali presente a potência revolucionária (até a canção El pueblo unido de Sergio Ortega é citada pelo meio) mas também a melancolia (“tudo o que está no céu cai, tudo acaba”). Mas o que sobressai é o trabalho musical que pretende ecoar a vibração intensa da vida colectiva. Menezes parece aqui preferir os sons que “tremem”, sejam eles de máquinas ou de percussões tocadas na rua. É a vibração das multidões, de um mundo em revolução permanente. Curiosamente a peça tem a dedicatória, simultaneamente musical e política: “Beethoven 250, Engels 200 e Trotsky 80 in memoriam”.

Depois do intervalo, vieram as peças de Todoroff: primeiro a música criada especialmente para o filme Jeux des reflets et de la vitesse de Henri Chomette, um filme abstracto e experimental de 1925, talvez a peça mais estimulante do programa, em que Todoroff assume a sua ligação estética às vanguardas abstracionistas dos anos 20. Seguiu-se Voices III – Resistance, uma obra onde as vozes estão em primeiro plano. Todoroff interessa-se por vozes indefiníveis, que o tocam por motivos às vezes subjectivos. O que o atrai é a voz como matéria sensível e sensual. Nesta parte de Voices, a sua “exploração intuitiva dos mistérios da voz”, como ele próprio diz, é inspirada por textos de autores que resistiram à censura na União Soviética: A Margarida e o Mestre, de Mikhail Bulgakov e textos da poeta e cantora dissidente Yanka Diaguileva. O fascínio da voz falada está lá, mas a peça inclui voz cantada e até a voz de um instrumento electrónico (inventado por um russo), o Theremin.

A terminar, pudemos “ouver” o vídeo de Alexader Derben feito a partir da distorção de paisagens várias (realizado numa versão do programa Final Cut), que metamorfoseia (daí o título M3tamorph) não apenas as fotografias de pedras ou lamas, mas também, a seu modo, a obra musical Dédales (de Todoroff) que lhe serviu de base. Por sua vez, Dédales provém de uma obra feita para se relacionar com uma dança/instalação de “corpos que fazem sons”. Proximidades e afastamentos com outras artes, um dos maiores interesses de Todoroff, a que a música electroacústica se parece prestar particularmente bem. Dédales explora a justaposição de espaços distintos, a partir de distorções e metamorfoses sucessivas dos sons. O vídeo de Derben, relativamente pobre e repetitivo nos seus meios, embora tenha esse mesmo sentido de distorção e metamorfose, não faz, contudo, jus à interessante proposta sonora de Todoroff.

Em resumo, dois concertos bem estimulantes do Música Viva, mostrando que a música electroacústica fixa em suporte não viveu ainda as suas 9 vidas felinas, na diversidade das suas possibilidades e das suas ligações. Do concreto ao abstracto, do real ao imaginário, do político ao estético. Mas também da música à procura dos gestos, das imagens, dos corpos, das montagens e das moldagens das outras artes.

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