2021.11.12, 2021.11.13, 2021.11.14
Música Viva 2021 · Festival EASTN-DC
O'culto da Ajuda, Lisboa
laboratório tintinabular em diferido
TIAGO SCHWÄBL
Sond'Ar-te Electric Ensemble com Petter Sundkvist
Rui Penha · Auditorium · Música Viva 2021 · Festival EASTN-DC

Recensão do Festival Música Viva [FMV’21]:
três concertos de EASTN-DC


Nos anos subsequentes à invenção do fonógrafo por Thomas Edison em 1877, o uso proclamado apontava ao auxílio empresarial (business); no livro The Audible Past: Cultural Origins Of Sound Reproduction (2003), o autor  Jonathan  Sterne   partilha  uma  lista   de  intenções  fonográficas:
1) ditar cartas sem necessidade de as estenografar, 2) livros fonográficos para cegos, 3) ensino de locução, 4) reprodução de música, 5) recordações e gravações de família, 6) caixas de música e brinquedos, 7) anunciadores vocais de horários, 8) preservação de línguas, 9) propósitos educacionais, 10) conexão com o telefone. Testemunhamos hoje que tudo isto aconteceu, mas Sterne sublinha que “a forma específica por elas tomada foi determinada pelo mutável mundo dos seus utilizadores” (p. 202). Algo frustrados com a fraca adesão, os agentes comerciais começaram a aplicar os fonógrafos em feiras populares, onde por umas moedas se escutavam as vozes do além; nesse negócio da coin-in-the-slot é que estava o dinheiro – no entretenimento. Estes desvios e entrecruzamentos entre tecnologia e cultura constatados no final do século XIX replicam-se e assentam que nem uma luva – ou um joystick – neste concerto do início do século XXI e no respetivo programa europeu que o proporciona: EASTN-DC.

Europa
No O’culto o que (não) vemos são ainda tiros no escuro, ocultos pelo tempo histórico que há de vir. A última edição do EASTN-DC, sub-festival alojado no FMV’21, pontua o resultado de criações e residências artísticas apoiadas por um fundo europeu dedicado à “aculturação ativa da sociedade”, bem como o seu “treino e educação” tecnológica. Acrónimo de European Art Science Technology Network for Digital Creativity, o programa EASTN-DC aponta três “questões quentes” (hot questions): a “re-tangibilidade” (ou a tentativa de restaurar as práticas inter-corporais com corpos digitais, lembrete aos nerds para a existência de matéria), o formato (e a nossa falta de flexibilidade ou adaptabilidade no mundo real: enquanto mandam satélites para o espaço nós ainda lutamos com impressoras) e a relação com a tecnologia (technophilia vs technophobia, maniqueísta como manda a lei). O acrónimo manifesta-se através das seguintes atividades (em inglês, por favor): “Residence” or “Immersion”, “Touring” or “Ride” e “Communication” or “Ripples”. E porque não há Europa sem fundos, o apoio foi de 1.374.788 EUR, distribuído entre 2017 e 2022 por treze entidades participantes. A coordenação, a par do Programa Cultural da União Europeia, esteve a cargo da instituição ACROE presidida por Claude Cadoz que, no seu manifesto «Digital Creativity», procura a criatividade para lá da passividade, defendendo que the computer creation tool, while offering virgin grounds for the exercise of the creation process, being at the same time, in essence, a tool of objectification and sharing, makes possible the objectification of the process of creation itself, and hence its analysis and understanding, the transmission of this understanding. Traduzindo, advoga e aproveita a “ferramenta da criação informática” enquanto novo mapa de exploração, tirando partido não só da possibilidade de partilha como da sua objetivação que, neste sentido específico, permite a sua análise, compreensão e transmissão passo a passo.

O’culto: EASTN-DC no FMV’21
No O’culto da Ajuda toda a ajuda é pouca; a compreensão na plateia é amiúde inversamente proporcional aos profusos textos-projeto dos artistas contumazes nestas andanças: as propostas e respetivas folhas de sala criam por vezes uma desassociação entre um texto que cambaleia sob o peso de uma costura frankensteiniana de neologismos e uma prática sirénica à qual o público amarrado a frágeis cadeiras dificilmente resiste (e se afoga, não pelo potencial apelo, mas pela overdose dos bytes), sendo forçado a uma convivência artificial; mas é mesmo disso que se trata: espaços artificiais digitais.
A fim de dar uma ideia deste conflito, recorrer-se-á abaixo à citação das explicações artísticas e a algumas hiperligações para que possam confrontar estas descrições de memória auditiva, mero testemunho da sua receção, com a sua memória prática registada audiovisualmente pelo próprio artista. Naturalmente, prevalecerá a palavra e o registo do criador; aliás, a lógica é a da acumulação arqueológica: se já varremos todos os compositores e partituras imaginárias do Barroco, daqui a cem anos procuraremos estes, mesmo os secundários e obscuros – não saberemos que obras irá o tempo ou a história destacar, desconhecemos por ora o seu ranking na corrida à aculturação digital. Todavia podemos, para já, fazer o simples exercício de observar as propostas e compará-las com os “eventos”. Para um ouvinte “normal” (“average”, se preferirem) ou desprevenido, com ou sem noção do contexto, o som soa frequentemente pobre, o resultado dececionante.
Por outro lado, salvaguarde-se que algo complexo possa não se entender à primeira escuta, no limbo onde complexidade, estranheza e banha da cobra se confundem: por vezes é difícil perceber se algo é genial ou simplesmente uma grande banhada. Estes concertos são uma sopa da pedra de digestão imprevisível: ora cai mal, ora pesa, ora se desfaz num tacho de texturas e sabores avulsos com variados graus de ebulição, falhanço ou desinteresse. É o preço do laboratório vivo, são necessários espaços (plataformas, interfaces…), é útil a discussão, não há outra maneira…. Haverá sempre algo do domínio do incompreensível que nos capta a atenção, nos prende, nos fixa.
Uma particularidade concordante nestas obras mais recentes é o deslumbramento pelo novo, o que, em si, não é novo, sendo até desejável em obras “contemporâneas”, “novas” mesmo; mas o que aqui acontece é uma fixação pelo novo gadget (que palavra antiquada) ou pelo interface, que, através das multifunções pré-preparadas (set de fábrica), turva algumas balizas da composição musical, da respiração do ouvinte, do enquadramento artístico, da própria música. Por vezes soa só ao trailer do último spin-off da Netflix; a sensação que dá, do lado de cá, é a mesma de quando visitamos um sobrinho que recebeu uma playstation nova, sabem do que estou a falar. Tal como o homem que viu as nereidas, do conto de Yourcenar – Saiu do mundo dos factos para entrar no das ilusões, e acontece-me pensar que a ilusão é talvez a forma que as realidades mais secretas adquirem aos olhos do comum. –, aqui o encantamento da técnica e o entusiasmo pelas regras intrínsecas da máquina isolam-no nessa paixão-vítrea-aditiva, fazem-no perder a noção musical da escuta e do outro; as peças então viram secas que nem bacalhau e – porque há coisas (na criação) que precisam mais do que um cabo ou do que wireless para nos atingir – desligam-se do público. Talvez o tal “inefável” tão suado no Romantismo e ainda tão onanizado hoje em dia possa ser destilado e aplicado a conta-gotas nestas criações digitais, por vezes estéreis ao ouvido humano.
Neste fim de semana de novembro de 2021, à boleia da rede EASTN-DC, deram-se três “concertos” e três workshops, cumprindo a faceta didática de expansão e partilha da nova tecnologia, parte dos princípios do projeto europeu. Os workshops foram orientados por Claude Cadoz & Nicolas Castagné (“Physical modelling for sound synthesis and musical composition with GENESIS-IV”), Marko Ciciliani (“GAPPP – Gamified Audiovisual Performance and Performance Practice”) e Iannis Zannos (“Embodied Telematic Live Coding”). Os concertos intitularam-se “Asymmetric Thought – Italian music for guitar and electronics” (sexta-feira, dia 12 de novembro), “Multidisciplinary Works” (sábado, dia 13) e “Rave Séance” (domingo, dia 14).

ao som das taças (dia 12)
Marginal ao enquadramento da EASTN-DC, com incidência em orquestra de altifalantes sem grandes arrojos digitais (bem pelo contrário), este concerto passa nas franjas digitais à boleia da circulação e do esforço pedagógico. Convenhamos também que não há propriamente uma fronteira, embora se alinhem graus tecnológicos (a começar por ligar algo à tomada). A primeira parte deste concerto já foi aqui esmifrada, regressamos agora à segunda para a contraparte eletroacústica, a da floresta de altifalantes.
Antes de avançar, talvez valha a pena relembrar algumas noções – Denis Dufour elaborou um pequeno glossário que nos poderá ser útil:
L'électroacoustique recouvre l’ensemble des genres musicaux faisant usage de l’électricité dans la conception et la réalisation des œuvres. Ainsi sont électroacoustiques les œuvres de support (identifiées à l’art acousmatique), les œuvres mixtes (mêlant instruments et piste sonore fixée sur support), les œuvres ‘live electronic’ (synthétiseurs ou ordinateurs en direct, corps sonores et instruments avec dispositifs de transformation électronique ou numérique…), les œuvres pour instruments acoustiques et transformation en temps réel préprogrammée, les œuvres pour instruments ou corps sonores amplifiés (à condition que cette amplification intervienne de manière décisive dans l’esthétique et les choix de composition), les installations sonores interactives, etc.
L’art acousmatique regroupe les musiques concrètes ou acousmatiques, les créations radiophoniques et Hörspiele, les musiques acousmatiques d’application (pour le théâtre, la danse, le cinéma, la vidéo…), les installations sonores travaillées sur support audio diffusé sur haut-parleur (dont la conception visuelle n’installe pas de rapport direct de cause à effet avec le résultat sonore entendu) (1), certaines réalisations de poésie sonore (2) pour celles qui se rapprochent de la création radiophonique.

Destaque-se alguns termos-chave: uso da eletricidade, obras do suporte, variantes mistas de obras ao vivo ou apenas gravadas, dispositivos de transformação digital, amplificadas e transformadas… Há um lado apelativo nas criações eletroacústicas: o mais óbvio prende-se com o nosso imaginário e com a possibilidade de criar sons nunca antes ouvidos – um passeio por terras de ninguém. Por outro lado, atuamos por referências, tornando-se espinhoso inventar o inaudito sem saber o que é. Paralelamente, o fascínio incide no jogo (este é o termo mais praticado) das impressões de escuta tornadas audíveis – criar efeitos e torções de som que emulam a nossa audição “normal” no “exterior”, ou seja, gerar condições artificiais em que o som é puxado para outros estádios, explorando corpos eletrónicos interiores, artérias e redes de canais que desaguam para o exterior impressões de escuta, sons fundados nas restrições de certos ambientes (túneis, longinquidades, desertos, caves, pistas, fragmentos, enxaquecas, ultrapassagens, feridas, memórias alteradas…). Para os compositores há ainda um engodo que lhes permite obliterar o intérprete ou os mediadores e ocupar o lugar do criador-intérprete-maquinista (enquanto a própria máquina não monopoliza a totalidade do processo). Aqui chegados, quão comprometidos estamos com a possibilidade técnica? Fazemos o que a tecnologia nos deixa fazer? Resulta disto que grande parte das obras soa familiar, com forte incidência tinintabular, no domínio do sino e do metálico: as taças.

No dia 12 de novembro, para além de duas composições-sininho, destacaram-se duas nos antípodas, uma com vídeo, outra com vozes, uma que mostra as vísceras e possibilidades do software, outra que deixa correr o hardware. A primeira dispara uma mensagem automática do sistema e exige pausa de 5 minutos para resolver problemas técnicos de sincronização entre áudio e vídeo: as Dante’s Songs de Gianluca Verlingieri, segundo a explicação, usa remanescentes de uma ópera sua comemorativa do 750.º aniversário de Dante Alighieri, e a esses pedaços de voz acrescenta-lhe agora uma flauta contrabaixo para agravar os 700 anos sobre a morte do mestre italiano (escutar a peça aqui, aos 34’35’’). Nova camada é adicionada via vídeo, com fragmentos de um filme de 1911 de Giuseppe de Liguoro sob a lupa e remastigação de Carlos Franklin, que podemos encontrar em projetos de abordagens tipo vídeo-jogo a quadros históricos. A música não se apresenta propriamente como uma banda sonora, mas antes como uma transmissão ao vivo (intrinsecamente em diferido) da Divina Comédia, e o vídeo vai mascando o filme com filtros-lupa, recurso recorrente da reflexão sobre a temporalidade aplicado em todos os filmes desta temporada.
Por contraste, Giuseppe Gavazza lê-nos Numeri-Numbers, leitura que é um clássico das peças vocais experimentais (ouvir, por exemplo 1-100 de Charles Bernstein): o fascínio reside na contagem, ideia simples continuada até ao infinito, contagem mesmérica da máquina industrial. O princípio é o do ovo de Colombo – sustém-se na repetição oral de números, algo quantitativo que, sem a referência do que se está a contar, se torna oco. Se por um lado acumula uma tensão crescente, por outro rodopia linguagem matemática, simbólica e abstrata, desprovida de referentes e de significado reduzido ou nulo, que se contabiliza. Para além do mais, enfatiza a cadência numérica associada a toda a música: o enquadramento rítmico, a frequência, a matemática da música, são agora mais que ritmo, apropriam-se da cadência harmónica, só número, só voz. Neste caso, o compositor beneficiou de toda uma estrutura de altifalantes para veicular e expandir um pequeno loop de números difundidos em 24 canais que, consoante as repetições, facilmente se amplia de 10 minutos a 10 horas; basta multiplicar os números pelos canais para nos deixarmos embalar pelo lado percussivo e rítmico da linguagem, cadência encantatória da multidão numérica.

interatividade háptica (dia 13)
Há vários termos que grassam no jargão académico atual: multidisciplinaridade, transversalidade, (de preferência em inglês, a nova língua franca digital), embodiment, digital, big data, haptic... E agora entramos no antro teórico que tanto anima as novas correntes artísticas (e talvez o termo “correntes” seja, à letra, demasiado industrial, fin de siècle), replicamos aqui a explicação da explicação e repercutimos o cansaço das belas argumentações para aquilo que ainda não conseguimos tocar. “Háptico” – do grego haptόs ou haptikόs, palpável ou apto ao toque – enquadra-se no departamento da “re-tangibilidade” do EASTN-DC, podendo ser atribuído a qualquer interação em qualquer ambiente, real ou digital, tal como o definem em 1997 os técnicos Srinivasan e Basdogan do Laboratory for Human and Machine Haptic no Massachusetts Institute of Technology (MIT):
Haptics refers to manual interactions with environments, such as exploration for extraction of information about the environment or manipulation for modifying the environment. These interactions may be accomplished by human or machine hands and the environments can be either real or virtual.
Esta frase é citada no livro Archaeologies of Touch (2018) de David Parisi, que, como o próprio título indica, escava a cronologia das diferentes fases do toque; por exemplo, uma 5.ª fase seria quando empresas de videojogos começaram a publicitar “Touching is Good”, “Touching is Believing” ou “Touch the Future”. Parisi escreve que the sense of touch had been forgotten, left behind, and marginalized by a media interfacing schematic overdependent on audiovisual technologies (p. 9); ou seja: dada a carga visual, aplicou-se um esforço para devolver ao público — utilizador — parte do gozo táctil ausente dos jogos.
Porém, o que acontece por vezes é cair na emulação do háptico através de vídeos sugestivos. Como podem ver, há várias frentes de toque… São camadas (layers) ou cortinas rasgadas? (Lembram-se da acusmática? 1966, Pierre Schaeffer…)

Disso é exemplo Image Schema (2019), de Henrik Frisk, com sons criados para um projeto de vídeo do pianista Johan Fröst a tocar Debussy. As imagens sucedem-se moleculares, como gotas de água estabelecendo contacto. Aqui o processo de composição emula a abordagem do vídeo na procura dos sons, segundo esclarecimentos do próprio Frisk.
Prosseguindo essa busca, Rui Penha, de pernas cruzadas, apresenta de seguida a prestidigitação dos sons inaudíveis, impelindo à meditação do tempo antecedente e consequente, da diferença entre tocar de imediato ou postumamente amplificado, dando conta do material surdo através da demora (delay), jogando com a expetativa de escuta. Auditorium (2014) quase subtrai o tinnitus às orelhas, via sininhos e bolas dentro de taças; boiamos ainda no domínio das caçoilas, embora sob cobertura filosófica.
Dos efeitos da imediaticidade aumentada, territorial e internetamente, Iannis Zannos importa IDE-Fantasy (2020), uma performance de dança telemática com sons controlados pelas dançarinas Natali Mandila em Lisboa e Mary Randou em Corfu. Os filmes de ficção científica correm à nossa frente e aumentam o fosso entre expetativa e capacidade real, para além de que muito do fantástico acontece no microcosmos da codificação ainda não descodificada, pelo que assistir a dois corpos com duas luzes de sinalização aérea nas mãos, uma em palco outra num vídeo, “à distância”, não causa um imenso espanto; para além do mais, perde-se a relação entre os sons (comunicação radio estática com voz aos pedaços) e os movimentos, sendo custoso perceber quem manobra o quê ou quem. Por vezes as tentativas de futuro, de algo advindo, são ainda imperfeitas, esquissos. No entanto, o projeto é ambicioso – partilhado no workshop sobre Embodied Telematic Live Coding –, pressentindo-se um claro potencial.
Estas três obras podem ser revistas no canal de YouTube da Miso Music Portugal.

Na segunda parte do concerto – “Marta, liga!” –, todos os preparativos obrigam à convivência ou sincronia entre um vídeo-que-afinal-não-é-um-vídeo e um rolo (scroll) sonoro. Da peça de Claude Cadoz (Quetzalcoatl-III, 2020), exigindo gesticulação de maestro e marcação de compasso, eis o que se vê-ouve: atmospheras (com ph) aeronáuticas, imagens cósmicas, globos de universos azuis e amarelos em flor, foguetões em gráficos descritivos, sons sinusoidais e acufenos torcidos. Intui-se que este jardim visual simplista constitui apenas a fachada de uma estrutura mais complexa; no entanto, a olho-ouvido nu, não se nota correspondência. Deduz-se dedicação infinita ao vídeo, mas tanta tecnologia aplicada assemelha-se a efeitos do cinema mudo, confunde-se a infância da tecnologia com a imaturidade do tecnólogo. Os cálculos serão complexos, o domínio da tecnologia exigido para a manobrar dista da performance, perdemos contacto com o conceito, a taxa de esforço do criador é inversamente proporcional à fruição do ouvinte.

(Antes de nos socorrermos de uma visão mais interior e informada, eis outro termo composicional: a síntese, base de maioria das obras aqui mencionadas, que se define, grosso modo, pela (re)criação de sons de forma artificial a partir de um (im)pulso elétrico. Sabemos que um som acústico é formado e distinguível, entre outros parâmetros, pela junção de frequências. Dessa análise se constrói a síntese. Eis alguns exemplos desse potencial de construção, bem como uma boa estratificação dos processos, e outra ligação a um glossário mais detalhado acerca de como a partir de um sinal elétrico se ergue todo um novo sistema (universo, mesmo) que lentamente se expande em espaço próprio. Este processo dá origem comercial aos sintetizadores (como o moog) (eis aqui imagens da sua evolução) e seus sucessores.)

Nesta obra de Cadoz presenciamos não apenas a criação sintética dos sons, assistimos também ao mapa da sua orquestração, ao desenrolar da partitura que contém não só os sons, mas a forma como os sons são tocados; mais do que a criação do som, ocorre a criação do gesto da interpretação – cada som tem uma abordagem pensada (criação e interpretação concentradas num só comando em centralização informática, a que não será alheia uma antítese, noutros campos, de partilha comum/ composição colaborativa). Cadoz inventou um software que introduz o gesto e a qualidade do gesto: imaginemos uma orquestra e a possibilidade de nós gerirmos a respiração e o toque desses instrumentos virtuais:
GENESIS-IV is the very last version of the software environment developed by Claude Cadoz & Nicolas Castagné in ACROE, allowing to create interactively and with elegant ergonomics physical models. (...) Modeling techniques developed by C. Cadoz make it possible to emulate gestural force feedback devices when they are not accessible.
(...) Once a model is built, the user chooses the values of the modules' physical parameters so as to define the behavior of the model. Several tools help the user to that aim, e.g. to target the properties of various matter (wood, metal, …), to tune frequencies and decay times or to work on vibrating modes.

Em conferência, Claude Cadoz explica de que se trata este tipo de composição. Olhar para os cálculos não suscitará provavelmente grande frémito a quem não entender os códigos e os propósitos, mas dá para imaginar a excitação do estudioso ao perceber o alcance da coisa. É verdade que se trata de um laboratório, mas confunde-se performance com apresentação de um paper académico para académicos (acaba por ser, na verdade, dada a vintena de público, mais compositores que público casual). Argumentar-se-á que os leigos lá perceberão, mais tarde, e que os workshops veiculam e partilham as boas novas. Reconhece-se o potencial, mas exigir a compreensão automática, a fruição da música pela música por parte do público quando propriamente os criadores se debruçam na obra pelo processo, fascinados e enredados nele, quando só nos mostram o resultado final, torna árdua a digestão da pedra bruta e a sua receção, sem acesso a outros níveis de compreensão. Concedam que ainda caminham verdes na obra por trilhos datados e contextuais. Expliquem e deixem-nos vibrar também.
É verdade que num teatro de sombras não nos interessa tanto ver para lá delas; ou que perante um quadro de Monet não precisamos necessariamente de mexer nas tintas. Mas aí está clara a dimensionalidade das telas. Aqui é como se congeminassem uma tridimensionalidade sónica, mas a tapassem com uma cortina, dando ao público as migalhas de um contentamento acusmático.

A próxima obra é um (outro) simulacro forçado de Djing e Vjing (= dj [disk jockey] versão vídeo, mas eis definições mais elaboradas) por Alexandros Kontogeorgakopoulos, George Kontos e Odysseas Klissouras (Fractions, 2020) para escolhas, montagem e alimentação de uma composição conjunta putativamente em tempo real que por alguma razão não acontece. Então, mais uma vez, mostram-nos o vídeo (mais um).
Within the continuous live editing, the unsettling film experience never really takes a complete form. Overall the artists seek to construct an imaginary environment, a virtual reality where fractions of space/environment and sound/music fuse together.
Vale a pena ler a descrição em inglês, para percebermos o contraste entre o esforço da gíria e o resultado prático. O substrato da performance é ingrato para quem a fez em tempo real e para quem a recebe de forma fixa e tardia: apresentar a imediaticidade de forma diferida revela-se um enorme flop. Para não falar do conteúdo: filtros, janelas sobre janelas, lógica dos vídeos de telemóvel com bainha, tela desfocada e focada, repetida, sem distinguir o que é real, live, vivo ou pré-gravado, com que expetativas jogamos, imagem estática e filtros, banda sonora para um 2001 odisseia no espaço fora de prazo versão série de tv, pedaços de cidade e películas, diapositivos, negativos, janelas em edifícios, número da tinta da china raspada sobre lápis de cera versão vídeo, sons vocais ocasionais, cordão umbilical para a presença da humanidade, clipping infinito e banalização da imagem, qualquer coisa serve, captações aleatórias com efeitos aleatórios, aqueles que o software pode dar, recursos do antigamente reproduzidos digitalmente, o cinema do cinema, a caixa negra, oscura, a câmara clara, à velocidade do cartoon e, claro, pessoas a editar, a dançar, sempre live, vivos, provavelmente os criadores, live bigbrother, exibindo-se a si mesmos, irresistível, quando tudo é admissível, pseudo narrativa evitada, vozes antigas ao fundo, quase um vídeo publicitário a películas antigas, resgatar o tempo, palimpsesto digital criado, multiplicidade sem nexo, justaposição, sofreguidão, voz litúrgica para atingir o sublime, aceder ao obsoleto via new gadget, escolar, sem criatividade, justificação do futuro balbuciando o que se aprendeu no passado.
Such interrogations lead to considerations of biomechanics, cognition, technological systems and creative processes, resulting in the recent emergence of pluridisciplinary Musical Haptics communities. Indeed, haptics provide a viewport through which physical interaction, including with virtual entities, may be observed. In particular, force-feedback technologies coupled with physical simulation techniques may allow for bidirectional, energy based physical interaction with virtual musical instruments, resulting in a new category of digital musical instruments (DMIs), grounded on the analysis of human/musical instrument interaction as dynamically coupled systems, thus yielding instrumental dynamics in the digital context.
Acabou por não ser interativo, mas apenas um vídeo, porque não estavam presentes os interatores.

O concerto continua a resvalar – não obstante o EASTN-DC bem luminoso – para erros de casting; são as malhas abrangentes de criação digital, que é isto tudo e um par de botas. Mas não deixa de ser interessante a reflexão, as expetativas: o que é isto do digital? Beambreaker/ 1st mov. (2020) de Tadej Droljc veio ao engano, ou talvez não. Imaginem o filme Matrix na quinta sequela com música de Hans Zimmer em loop
a work for laser, light, bended mirrors and sound, is a performance that deals with volumetric audiovisual objects emerging from tight synchronization between broken light beams and broken sounds waves.
Tela preta e luz de projeção, punk rock elétrico, focos de luz e vapores, lâmpadas, música dos Nirvana enrodilhada em banda sonora foleira, emulação cósmica terrestre. Replicar estados naturais, será esse o triunfo digital e pessoal, o desafio mecânico de recriação de atmosferas “naturais” em ambiente digital. Sem dúvida. No entanto, esse deslumbramento carece de timbre, visualmente parece uma proteção de ecrã (screensaver) ou efeitos do windows media player em modo aleatório para banda sonora de filmes de ficção científica com sofisticados meios de efeitos especiais aos quais, claro, não falta a própria plateia dentro do filme a delirar com o seu próprio sucesso medido em multidões, a presença humana a observar a espetacularidade de raios e drones numa enorme rave.
Por falar em rave, vamos a mais uma? É já o próximo concerto.

discopia xamânica (dia 14)
O título a néon RAVE SÉANCE, de Marko Ciciliani, prometia uma interactive live-installation. Embora tenha congelado na prática do descalabro adolescente, a rave tem as suas raízes na perda dos sentidos e no delírio, partilhados em parte na palavra francesa “séance” – sessões espíritas. Essa perda de sentidos é hoje maioritariamente alcoólica ou pastilhada a golpes de (sub)graves em colunas gigantonas de decibéis que competem com os nossos martelinhos do sistema auditivo em busca do tinnitus eterno. Em qualquer uma das sessões, o estranhamento é espacial e sónico, seja pela disposição circular, seja pela expetativa de um som “outro” ou inusual. Saímos preparados para a “night” – estado mental que aguente horas de deambulações ao calhas, desencontros, entusiasmos do vazio e expetativas trocadas, como nas fases de um contador da luz: Energia de Vazio, Energia de Ponta, Energia de Cheias, Energia de Super Vazio, Energia Total. A disposição na “garagem” do O’culto poderia ser a de uma fogueira à noite no descampado mais próximo, 5 mesas em redor de uma estrela de néon mutante, 4 delas com 3 botões cada, o DJ Marko Ciciliani de boné-bola-de-espelhos numa trincheira de cabos, botões e teclado a disparar os samples e as luzes a ponto e linha, ocasionalmente falando numa voz alterada que não chega a ser biónica mas se contrapõe à vozinha pink “open yourself to the infinity/ mistery, possibility of the infinity, freedom”, O som é fatela, bem kitsch e foleirinho, pop dos noventa remisturado, luz em estrela, interrupções em modo hoquetus (soluço medieval), discoteca suburbana com todo o aparato coral de um Bach pink, contraponto em máquina vocal artificial, caprichos eletrónicos, secção rítmica em pinceladas de tecno-punk, uma tecno comidela, as secções repetem-se em loop ao longo de várias caves e ecos de caves de disco, uma distopia pouco imaginativa de uma party adolescente num baldio desolado e frio, em ambiente discópico: é o primado da discopia.
Não obstante, estávamos com espírito afim perante as mesas mágicas, a nossa expetativa (alimentada pela temática da festa/ rave) era a da interação. Quando as luzes acendiam carregávamos que nem malucos nos botões iluminados e as mesas tremiam, batucavam. É curioso, efetivamente ficamos na expetativa de uma comunicação pendente e retrospetiva, responsivamente atentos, instados à resposta, como um alimentador de inputs.
Será provavelmente assim uma sessão espírita, mas ao final de um bocado, sem perceber o grau de interação ou de feedback, fomos desistindo. Não era propriamente uma rave, mas ainda assim o pouco público estava disposto a brincar e a cooperar. Nada feito, até essas poucas almas de boa vontade foram eficazmente afugentadas. Sabem aquelas noites em que o dj já não consegue levantar a festa, seja por cansaço do público, seja por cortes e más transições?
O delírio não foi propriamente coletivo, o canal estava obstruído, a ligação cortada, o caminho impedido, foi a apresentação de um delírio que era só uma citação numa folha de sala, o artista nem ponderou à partida que um certo delírio se contagiasse ou concretizasse. Será que não nos podia ter ao menos apresentado um outro sonho ou potencial? Ou, pelo menos, deixado brincar? Na verdade, talvez se tenha aproximado sem querer do âmago da frustração de tudo isto, de todo o entretenimento. Mas esta já é uma declaração frustrada póstuma, vítima do desencontro anterior, um desalento em cadeia a tentar dar algum sentido à relação com a tecnologia do além. Talvez tenha sido a manifestação mais honesta de um uso não consumado, de uma tecnologia deslocada (displaced) em entretenimento que ainda não será final, que tem de passar e experimentar todos os caminhos e vielas até encontrar o formato (comercial ou outro) que mais se lhe adequa. O próprio Mark Ciciliani está ciente disto (GAPPP: Gamified Audiovisual Performance and Performance Practice) quando escreve:
The project creates an audiovisual environment that fuses aspects of Rave culture and esoteric séances. By combining aspects of techno music – a form of music characterized by electronic sound production and mechanical repetition – with pseudo spiritistic practices, it thematizes the seemingly contradictory coupling of scientific discovery and magic, which has existed since discoveries in the field of electricity have entered popular culture in the 18th Century.
Mas pergunto-me se constatar a frustração contraditória através da frustração contraditória não será um pleonasmo que só perpetua o que se poderia constatar noutra vivência; organizar uma má festa para comprovar como as festas podem ser más e decadentes… para quê o banho de realidade da constatação?
E assim ficou o artista interativo sozinho com a parafernália toda para si.

Eis o culminar de tudo isto, com uma party que (para nós) foi fria. Mas o malogro não invalida todo o potencial laboratorial. Enquanto não nos barrarem à entrada, estamos dispostos a entrar.

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