2022.01.29-30 · O'culto da Ajuda, Lisboa
João Quinteiro – Depurações para um “Regresso”

João Quinteiro (espacialização/ composição)
Henrique Portovedo (saxofone tenor), Sinem Tas (vídeo)
Fernando Brites (acordeão), Júlio Mesquita (actor/ narração)
Marco Fernandes (percussão), Teresa Doblinger (bailarina)
Uma op-era à esp-era
PEDRO BOLÉO
Fernando Brites e Júlio Mesquita · © Sinem Tas
Fernando Brites e Júlio Mesquita · © Sinem Tas

Nos passados dias 29 e 30 de Janeiro, apresentou-se no O'culto da Ajuda, em Lisboa, “Depurações para um Regresso”, do compositor João Quinteiro. “Regresso”, com maiúscula, porque se trata de um projecto de ópera com esse título de que estas “Depurações” são parte. Ou, pelo menos, parte do caminho.

É preciso explicar melhor: João Quinteiro e os seus cúmplices estiveram em residência no espaço da Miso Music Portugal, desenvolvendo três obras para instrumento solista espacializado ao vivo e performance (com vídeo, narração e dança). Nas palavras do compositor «As três obras apresentadas fazem parte das cinco peças para instrumento solista espacializado e performance que compõem o universo das dez obras satélite da ópera “REGRESSO”, cinco obras afectas a personagens da ópera (Eurídice, Penélope, Sísifo, Hermes e Prometeu) e cinco obras que envelopam os quadros e ambientes de cada personagem (quatro Madrugadas e um Crepúsculo)».

Henrique Portovedo · © Sinem Tas
Henrique Portovedo · © Sinem Tas

Ouvimos e vimos em palco, portanto, três obras-satélite que gravitarão em torno de uma ópera futura. Na primeira ouvimos Henrique Portovedo, saxofonista de destaque actualmente na música contemporânea (com excelentes capacidades técnicas e expressivas), mudando constantemente de estantes e deslocando-se no espaço. O quadro chamava-se “Hermes, nove da noite”, para saxofone tenor espacializado ao vivo e vídeo. Interessante a pesquisa sonora realizada (originalmente em estreita ligação com André Correia, o seu primeiro intérprete, e agora com Henrique Portovedo), com a proposta de uma pesquisa «migrante», com o saxofonista explorando técnicas alargadas no instrumento: multifónicos, técnicas de slap tongue (a língua «batendo» no bocal), e experimentações sonoras com ruídos, articulações e sopros de todo o tipo.

Hermes, entre outras qualidades e atributos, é deus das estradas e das viagens. Aqui, na sua aparição contemporânea, é um distribuidor de pizzas, trabalhador precário e duplamente migrante, vindo de outras terras e movendo-se na cidade de um lado para o outro. A cena parte de um dos poemas de José Mário Silva, que infelizmente não pôde estar presente como recitante como estava previsto (covid oblige). Os belos e interpeladores poemas de José Mário Silva do seu livro de 2001, “Nuvens & Labirintos”, são aliás a base de todos os quadros e personagens. Nomes que vieram directamente da mitologia grega para assolar (ou será para revelar e abrir?) o nosso presente e o nosso quotidiano. Grécia antiga na cidade moderna, proposta poética que tem acompanhado João Quinteiro há vários anos, desde que começou a imaginar e a compor estes satélites de “Regresso”.

No sábado dia 29 houve alguns problemas técnicos com a espacialização sonora que afectaram a realização da ideia musical, ao que parece melhorados no dia seguinte. Mas um problema mais grave afectou esta apresentação: a dificuldade de definir cenicamente os quadros propostos. A partir de uma pesquisa musical estimulante e de textos poéticos muito bem conseguidos, não emergiu uma invenção cénica correspondente. No primeiro quadro o saxofone ficou longe da projecção vídeo, com imagens interessantes propostas por Sinem Tas (entre um mar «grego» e a cidade contemporânea, com uma bela fotografia de roupa estendida entre duas árvores, algures...), mas sem capacidade de ligar as coisas ou, pelo menos, de as fazer ressoar uma na outra (música e vídeo, neste caso).

No segundo quadro, “Sísifo, cinco da tarde”, para acordeão espacializado ao vivo e narrador, a opção cénica parecia radical: Sísifo é um almeida (trabalhador na recolha do lixo), e circula sem parar por todo o espaço cénico. É preciso explicar que parte do público ocupou uma faixa do palco do O'culto da Ajuda, enquanto o resto dos espectadores estava em dois pontos laterais, deixando livre a zona da habitual plateia para os performers e alargando ao máximo a zona de movimentação de músicos, actor e bailarina. Mas não basta pôr este Sísifo dos nossos tempos a circular repetitivamente pela sala para invocar o castigo imposto a este mortal que desafia os deuses e a morte. Ou seria preciso radicalizar ainda mais a sua correria constante, à roda de um monte de lixo (copos de plástico deitados no chão). O interessante trabalho musical em torno do acordeão (com o cuidado e a entrega de Fernando Brites) não encontrou eco, mais uma vez, na invenção cénica (ou na falta dela), apesar do cansaço de Júlio Mesquita, que adoptou o duplo papel de actor e recitante, rodando sem parar na sala. E, em cena, o que não se transforma, perde-se.

No quadro final, “Euridice, sete da manhã”, o percussionista Marco Fernandes fez um bom trabalho ao lado da bailarina Teresa Doblinger. Aqui, sim, a cena despertou. E os copos de plástico fizeram parte da dança e do som, num trabalho que aponta caminhos bem mais interessantes de invenção da cena (coreográfica, neste caso).

Porque é preciso inventar a cena num laboratório de op-era (um termo proposto por Miguel Azguime para designar a possibilidade de uma ópera para os nossos tempos). Ou seja, parece-nos que é preciso enriquecer o processo do encontro e o estabelecimento das ligações entre o que vemos e o que ouvimos (e mesmo entre as suas partes). Elas não podem ser apenas «ideias», têm de encontrar-se dialeticamente no processo de construção da acção simultaneamente musical e visual, seja com o vídeo, com a performance do actor ou com os gestos da dança.

Aplaudimos a proposta laboratorial de invenção de um novo teatro de sons e a vincada afirmação de João Quinteiro da necessidade de abrir a música à experimentação permanente, num trabalho de relação próxima com os intérpretes, com os meios instrumentais e tecnológicos disponíveis. Mas as obras não podem eternamente ser in progress. Não sou dos que pensam que não existem obras, que só há processos. Creio que é necessária uma relação dinâmica entre os processos de criação e usufruto que inclua o risco de fixação de uma forma, mesmo que a entendamos como forma aberta dos objectos e dos materiais em movimento. É preciso escolher, remover as impurezas. Não é isso «depurar»?

Gostamos de ver ensaios. Mas é preciso a coragem de chegar a formas finais, mesmo que temporárias, precárias, fragmentadas, reticentes ou interrogativas. Mesmo que Sísifo tenha de repetir o gesto e subir a montanha outra vez, remover de novo o lixo, lutar outra vez por aquilo em que acredita, continuar a labuta. Não Sísifo sozinho, mas com os amigos e os cúmplices do incessante combate pela criação, entre Madrugadas e Crepúsculos. Eurídice, Hermes, Sísifo! Venham, e tragam também Penélope e Prometeu para desafiar os nossos tempos.

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