2022.11.19 · O'culto da Ajuda, Lisboa · Festival Música Viva 2022
Frederic Cardoso (clarinete e clarinete baixo) · Lux et Umbra
Música de Rúben Borges, João F. Ferreira, Bernardo Lima,
Rodrigo Cardoso, Luís Neto da Costa e André Rodrigues
Trocar as voltas ao clarinete
PEDRO BOLÉO

Frederic Cardoso é um clarinetista comprometido com a criação musical da actualidade e procura trabalhar em estreita colaboração com compositores portugueses de hoje. Lançou no ano passado um disco intitulado Lux et Umbra (Artway Records) que deu origem a este recital de clarinete (clarinetes, na verdade) que é uma lufada de ar fresco na criação contemporânea para este instrumento.

“Contemporâneo” é um adjectivo que pode querer dizer várias coisas. Pode simplesmente significar “do nosso tempo”. Mas também pode ter o sentido, talvez mais polémico, de algo que se confronta com o seu tempo dele discordando, alargando-lhe horizontes, ou procurando bifurcações inesperadas no tempo presente. Nesse sentido, nem toda a música feita hoje seria “contemporânea”, porque não se inscreve numa contenda dinâmica com o presente (e com o passado), antes se refugia no já sabido e no já conhecido.

Ora o recital de Frederic Cardoso no O'culto da Ajuda, integrado no Festival Música Viva e com uma casa bem repleta, foi um exemplo de uma atitude de quem quer colocar-se inteiramente no nosso tempo, mesmo se a opção de base seja propor a escuta de uma diversidade estética considerável. Nesse sentido, a proposta do clarinetista é a de, colocando-se ao lado dos criadores e fazendo-se mediador entre eles e o público, solicitar a composição e a escuta de músicas diferentes. Nesse gesto duplo, em torno do seu instrumento de eleição, ele pretende ao mesmo tempo expandir as possibilidades expressivas do clarinete. Tecnicamente apto a tocar tudo o que lhe aparece à frente, Frederic Cardoso mostrou a sua versatilidade e o seu contemporâneo empenho através deste estimulante recital.

Não é hoje surpreendente o uso de técnicas especiais no clarinete, do som produzido pelas chaves (o clarinete também percute!) até ao uso de multifónicos, passando por todo o tipo de respirações e formas de articulação e produção sonora. Essas técnicas percorreram todas as seis obras apresentadas no recital, mas elas estavam ao serviço de linguagens bem diversas (para não dizer divergentes).

Em quase todos os casos, as peças eram também para electrónica, o que acrescenta possibilidades, mas também problemas aos compositores: como integrar a electrónica e o instrumento solista sem deixar, uma e outro, “perdidos”? Como ligá-los de forma expressiva, sabendo que eles estão sempre em planos diferentes (de produção sonora e de escuta), por mais que se procure “fundi-los”? E se a opção for separá-los, como fazê-lo sem um divórcio total?

As respostas a estes problemas foram bem diversas: Rúben Borges lança na sua peça Limen uma espécie de “sopros electrónicos” onde pairam intervenções melódicas fragmentárias do clarinete baixo, com vários momentos de multifónicos e sopros sem altura definida chamando de novo a electrónica pré-gravada a trazer sons “de lá de fora” (por exemplo sinos que se ouvem ao longe, ao lado de ecos e reverberações electronicamente gerados). Nas fronteiras, como também o título Limen parece sugerir.

João F. Ferreira escreveu Stereochromatic, onde linhas melódicas agudas começam por surgir sobre uma paisagem electrónica que rapidamente se torna tensa. Apesar dos gestos bem curiosos do clarinete (com pequenos motivos ondulantes), a timidez e algum convencionalismo da electrónica acabam por acrescentar pouco à expressão global, deixando-a como que prisioneira num pano de fundo.

Sem electrónica, mas com uma atitude bastante radical, é a pequena peça viva e surpreendente de Bernardo Lima, Ékleipsis, para clarinete em mi bemol solo. De novo com o uso de multifónicos e gestos rápidos, alternando aqui e ali com passagens mais calmas, desenha-se um “eclipse” - mas de que planetas, de que luzes? Os gestos fortes e velozes ganham preponderância, cada vez mais no agudo, cada vez mais teimosos, até um final (como que um resumo de toda a peça) quase virtuosístico, no agudíssimo.

Veio depois Sobre o contorno, de Rodrigo Cardoso, uma interessante peça para clarinete baixo e electrónica, acompanhada por um belíssimo trabalho de vídeo. O clarinete, quase sempre calmo, como que estudando uma melodia possível, parece fazer mover as imagens arenosas que se fundem com planos de árvores frondosas. Da simples repetição de pequenos motivos (ou simples contornos musicais), com ligeiras diferenças, podem surgir coisas inesperadas. E a electrónica ajuda esse “inesperado” a surgir e a crescer. Uma tensão quase dramática surgirá dessa conjugação, mas é logo interrompida. Na secção final, voltamos ao mesmo clima (aparentemente) repetitivo, mas sempre diferente. Já nada é como dantes. E, também no vídeo, uma árvore se transfigura noutra.

A penúltima peça, para clarinete baixo e electrónica, Texturas de sombra, de Luís Neto da Costa, foi uma das peças mais cativantes de todo o programa, estabelecendo um diálogo entre o clarinete baixo e seus “fantasmas” na electrónica, pré-gravada inteiramente com sons de clarinete. Uma obra que resulta especialmente bem ao vivo, criando com os quatro canais amplificados uma espécie de clarinete baixo expandido. Uma série de gestos que aparecem rememorados atingem a certa altura uma cacofonia (quase um protesto!) e uma rica densidade rítmica. É preciso dizer que o clarinete baixo é um instrumento tremendo, não só na sua extensão, mas também nas suas capacidades expressivas, aqui alargadas a novos horizontes pelo compositor e pelo intérprete.

Finalmente a peça de André Rodrigues, Lux et Umbra II, mais uma vez para clarinete baixo e electrónica, em que o desafio central é precisamente a tentativa de pôr em contacto a parte acústica com a parte electrónica. O início da peça é promissor, com o clarinete baixo pintando de sons uma electrónica que parece expandir-se ao fundo. Mas o problema da sua interligação permanece e a parte final (onde surgem excertos de um canto gregoriano que “migram” depois para o clarinete) não nos parece resolver a questão de forma convincente.

Não é fácil fazer música electroacústica e talvez seja ainda mais difícil fazê-lo na relação com um instrumento solista: por um lado, ele é o centro das atenções e, por outro lado, tem limites tímbricos relativamente bem definidos, por muito que sejam estendidas as técnicas de execução. A diversidade de hipóteses colocadas no conjunto destas seis peças, na excelente interpretação de Frederic Cardoso, um clarinetista corajoso, mostra que os caminhos dessas interligações são vários e que as músicas de hoje têm sempre mundos a descobrir, formas a inventar, hipóteses a arriscar. Sendo contemporâneas, isto é, trocando as voltas às voltas do mundo.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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