2022.11.24 · O'culto da Ajuda, Lisboa · Festival Música Viva 2022 · Recital Antena 2
Ipsis Duo · Marina Camponês e Clara Saleiro (flautas)
Música de João Quinteiro, Emmanuel Nunes, Hugo Vasco Reis,
Pedro Pinto Figueiredo, Ângela da Ponte e Philippe Hurel
Ipsis Duo e as ressonâncias de Syrinx
PEDRO BOLÉO
Ipsis Duo · Clara Saleiro e Marina Camponês
Ipsis Duo · Clara Saleiro e Marina Camponês

O deus Pã perseguia Syrinx, mas o amor não era correspondido. Quando a ninfa, fugindo em desespero, pediu às ninfas do rio para a esconderem, elas acudiram-na e transformaram-na num canavial. O estranho som do sopro do vento nas canas ficou, para Pã, como a única recordação possível da sua paixão. A flauta é esse instrumento antiquíssimo que guarda a memória do desejo de Pã. De certa forma, a história de Syrinx é símbolo de toda a música: aspiração de um desejo inatingível, signo sonoro e movente de uma procura interminável.

Vem a mitologia grega a propósito deste concerto de um duo de flautas muito especial. Em primeiro lugar porque juntou duas jovens intérpretes e amigas – Marina Camponês e Clara Saleiro – que se dedicam abundantemente à música dos nossos tempos, essa música nova que procura sem cessar e nunca se contenta. Depois porque, cereja no topo do bolo, tivemos oportunidade de ouvir quatro obras nupérrimas e duas em estreia absoluta, com vários dos compositores presentes. Afinal, é um festival dedicado intensamente à criação mais recente. E se as intérpretes foram as que puseram o sopro das “canas” em movimento, quem preparou as peças merece também destaque nesta ocasião.

O concerto começou com Canção IV – Echo, Wiederholung und Metamorphose, do compositor João Quinteiro, uma belíssima estreia de uma peça dedicada “com admiração” a outro compositor, Beat Furrer. Sopros de inquietude (e desejo, porque não?), com espaço para o silêncio e suscitando uma escuta activa e atenta (como gosta de propor João Quinteiro). Aparentes repetições – afinal irrepetíveis – e pequenas metamorfoses do som desenham ecos, regressos aspirações de um lugar “outro” também na macro-estrutura, feita de idas e voltas. Aspiração de uma flauta esquecida, talvez. Perdoem a poesia mitológica: é como se as canas de Syrinx quisessem outra vez sair das mãos de Pã e voltar ao convívio com o rio.

Veio depois uma peça para flauta baixo de Emmanuel Nunes, Ludi Concertati n.º 1, que Marina Camponês tocou muito bem, fazendo jus a uma obra muito difícil na forma das variadas articulações (já para não falar nalgumas rapidíssimas passagens), com diferentes modos de produção sonora (flatterzunge e formas de rolar ou “golpear” com a língua ou a garganta, percussões com chaves, e outras técnicas hoje habituais na música para flauta). Uma obra que resulta da colaboração de Emmanuel Nunes com o flautista Pierre-Yves Artaud nos anos 80, depois do marco de Grund. Ludi Concertati (que significa em latim qualquer coisa como “jogos concertados” ou “brincadeiras organizadas”) provém precisamente dessa peça, sendo em parte uma transcrição para flauta baixo da flauta em sol de Grund (uma peça que tinha abundante electrónica, aqui ausente).

Mas a peça de Nunes, embora nela ainda esteja muito por descobrir, já tem 37 anos(!) Quando foi escrita, tinha Hugo Vasco Reis, o compositor da peça seguinte do programa, apenas quatro anos de idade. Dizemos isto não para acusar de “ultrapassada” a peça de Emmanuel Nunes nem de “novato” o compositor, mas para pôr em perspectiva (o que este concerto também fez) a música mais actual para flautas que ouvimos. Música para uma passamanaria, de Hugo Vasco Reis é na verdade uma peça muito curiosa, em que os ornamentos musicais, habitualmente com um papel secundário, se tornam aqui as personagens principais. A peça pretendia estabelecer um contacto histórico com o lugar onde foi estreada, a galeria Appleton em Lisboa que foi uma fábrica de passamanarias (fitas, galões e outros adornos de tecidos). O que se passa, através de gestos repetidos na flauta e de um ímpeto rítmico crescente, é que entramos num espaço sonoro que “cita” o trabalho fabril e a cadeia de montagem dos tecidos, até ao final em que algo se “avaria”. Uma referência resolvida com grande criatividade, numa obra simples, clara e comunicativa.

Seguiu-se a peça Amini de Pedro Pinto Figueiredo, que tem vindo a desenvolver um percurso de compositor ao lado do seu trabalho como maestro. Nesta ocasião deu às intérpretes (que conhece e com quem colabora) a possibilidade de brilhar com uma peça formalmente muito bem construída. Elas começaram com uma fita adesiva a boca, numa peça que se cruzou com uma notícia da actualidade, a do assassinato de Mahsa Amini, jovem iraniana de 22 anos, depois de detida pela polícia “de costumes” por usar o véu de forma supostamente incorrecta. Peça que se tornou “política” durante o processo de composição e que passou a incluir, por exemplo, articulações (de flauta) construídas com palavras em persa. Cruza-se “a realidade com o objecto sonoro”, nas palavras do compositor, e esta peça para duo de flauta ganha significados inesperados. Um compositor que sabe que a realidade, por muito que um artista lhe feche a porta, nos entra pela janela

Também de aflições contemporâneas se faz a peça de Ângela da Ponte. Referimo-nos àquilo que na peça se refere às limitações impostas na sequência do vírus do COVID-19 nos anos de 2020 e 2021. O título da peça faz referência a essas regras e máscaras (We can't breathe), embora ressoe ali também inevitavelmente o “I can't breathe” de George Floyd, assassinado pela polícia em Minneapolis, nos EUA, em 2020.

Claro que, para uma flautista, respirar é o mais importante. A peça, para uma só flauta e electrónica, interior e interrogativa, explora respirações e formas de ataque diversas, muitas vezes com sons sem altura definida, e procura dar-lhes corpo e forma. Clara Saleiro tocou a obra com clareza e proximidade, enquanto a electrónica, sobretudo em processos de justaposição, deixa ouvir a flauta como se tivesse com ela uma conversa pessoal. We can't breathe também responde ao “real”, mas por outra via, criando o seu tempo próprio, íntimo.

Houve ainda uma peça de Phlippe Hurel de 2003 (Loops III) para duas flautas, peça com passagens muito rápidas e espectaculares, que exige algum virtuosismo técnico e que foi tocada muitíssimo bem por Marina Camponês e Clara Saleiro.

Um concerto onde criação, interpretação e escuta foram irmãs. Esteve ali a procura incessante de compositores e compositoras de ontem e de hoje e a busca sonora precisa e concreta das intérpretes. Mas para uma obra se completar é preciso haver também os ouvidos do público, a curiosidade e a imaginação de quem escuta as estranhas ressonâncias de Syrinx. Assim foi.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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