2023.03.31 · Os faroleiros (cine-concerto) · Culturgest em Lisboa
filme de Maurice Mariaud (1922) · música de Daniel Moreira
Arditti Quartet: Irvine Arditti (violino), Ashot Sarkissian (violino)
Ralf Ehlers (viola), Lucas Fels (violoncelo)
Música pelos olhos adentro
PEDRO BOLÉO
Daniel Moreira · © Alexandre Delmar
Daniel Moreira · © Alexandre Delmar

Daniel Moreira interessa-se há vários anos pelas relações da música com o cinema enquanto investigador, mas também como criador de música para filmes. Teve agora mais uma ocasião para juntar as suas reflexões teóricas à prática de compositor, que vai muito para além da música para cinema. Na Culturgest foi projectado Os faroleiros, de Maurice Mariaud, com a música original de Daniel Moreira, encomendada pelo Batalha Centro de Cinema para este filme restaurado e digitalizado no âmbito do projecto do FILMar, operacionalizado pela Cinemateca Portuguesa com o apoio do programa EEAGrants 2020-2024.

Uma música que procura uma ligação estreita às imagens, o que é muito bem conseguido na primeira parte do filme. “Numa aldeola portuguesa, em frente do oceano...”, lê-se no primeiro intertítulo, localizando de forma vaga a acção do filme. Só mais tarde percebemos que o lugar será ali na margem sul do Tejo, numa praia da Costa da Caparica. Mas a rodagem de Os faroleiros foi na realidade feita em diversos outros locais, nas zonas do Guincho e do Cabo da Roca e no estúdio da Quinta das Conchas. A história decorre numa comunidade de pescadores, onde um triângulo amoroso conduzirá a tragédias várias. Ao centro estão as personagens de João Vidal, interpretado pelo próprio Maurice Mariaud e de António Gaspar, um estranho rapaz interpretado por Alberto de Castro Neves. Ambos amam a mesma mulher, Rosa (Abegaída de Almeida). Uma história de paixão, crime e vingança que ultrapassa em muito o drama moral sobre justiça e honra, que também lá está.

Quarteto Arditti · © Alexandre Delmar
Quarteto Arditti · © Alexandre Delmar

A música procura desde o início pontos de articulação com o filme, tentando, ao mesmo tempo, desenvolver a sua linguagem própria. Nalguns momentos é ilustrativa de um gesto de um actor ou de um movimento de câmara, mas fá-lo apenas momentaneamente, para depois desenrolar a música integrando os motivos suscitados pela imagem. Por exemplo nos motivos rítmicos que surgem quando António bebe um copo na taberna, ou quando Rosa martela o pau que ficará a segurar as cabras. A música de Daniel Moreira oscila entre a criação de um ambiente e a resposta directa à imagem, mas consegue, nas primeiras partes do filme, um equilíbrio interessante, quase sempre numa linguagem modal/ tonal. Na parte central do filme, à medida que o drama se adensa, a música vai-se tornando crescentemente atonal. O uso da microtonalidade vai aumentando também, na verdade mais como efeito sonoro do que como elemento estrutural, provocando oscilações melódicas expressivas aqui e ali. O Quarteto Arditti fez um trabalho rigoroso no que toca às ligações directas à imagem (quando são exigidas simultaneidades expressivas importantes com o filme), com Irvine Arditti num papel de direcção. E o quarteto parece ter compreendido bem, na globalidade, as ideias musicais de Daniel Moreira.

Contudo, essas ideias musicais perdem fôlego na terceira e quarta partes do filme. Não é fácil manter uma ligação forte com a imagem (como é proposta no início) e, simultaneamente, conseguir dar tempo ao drama cinematográfico, acompanhá-lo no seu adensamento, mantendo uma linguagem musical relativamente autónoma. Porque a música não pode saltitar sempre com as imagens, tem de encontrar a sua própria forma de se desdobrar, o seu tempo próprio. Esta é uma das dificuldades maiores de uma música de cinema que não queira ficar presa aos clichês, nem que se mantenha apenas “paralela” à presença da imagem em movimento. Daniel Moreira enfrentou o problema corajosamente, mas nem sempre terá encontrado a solução mais feliz. Mas existirá uma só solução feliz? Não serão sempre tentativas, experimentações, resultados perceptivos sem garantia? Na música para cinema parece (ainda mais do que noutras criações) que é assim, porque é difícil e instável a avaliação dos “resultados perceptivos” do choque entre som e imagem. O próprio filme (independentemente da música) parece ir-se abaixo na parte central, por motivos de ordem mais dramatúrgica do que técnica, continuando a supreender pela riqueza de recursos expressivos que (em 1922, lembremos!) são ali sabiamente utilizados: planos “subjectivos” (olhamos por vezes pelos olhos das personagens), planos aproximados em jeito expressionista, montagem dinâmica e por vezes quase “contrapontística”, ao jeito dos cineastas russos do seu tempo (talvez mais próximo de Pudovkin do que de Eisenstein). E ainda há ali espaço para sonho e fantasia, fantasmas e ilusões, coisas escondidas e coisas que aparecem, dentro e fora-de-campo. Tudo isso é inspirador para a música de Daniel Moreira, apesar da dificuldade de manter aceso o drama na música na parte central do filme.

Mas, na sua parte final, o filme propõe uma longa cena quase carcerária passada no farol, com os dois faroleiros inimigos de morte – e diametralmente opostos na sua ética – juntos naquele exíguo farol com três patamares. E aí a música de Daniel Moreira volta a ganhar fôlego, optando por, mais do que criar suspense, dar som ao carácter psicológico das personagens. E aí rima bem com o lado expressionista que o filme também tem (mas é um expressionismo de praia e de mar, não de cidades e ruas esconsas). Apesar disso, parece-nos que era preciso escolher mais. Não se pode fazer tudo, querer de novo ilustrar as ondas do mar e manter a atenção nos traços e nos gestos das personagens – que nesta parte final se tornam estranhos, inquietantes, quase inverosímeis.

É preciso escolher: se as ondas adensam o drama (Eisenstein chamava-lhe a “natureza indiferente”, algo que dá força às acções humanas e deixa respirar a reflexão do espectador), elas podem estar só na imagem e não ter correspondência marítima na música. Ou, ao contrário, o mar poderia estar (musicalmente) dentro das terríveis maquinações do preguiçoso António e da justeza do trabalhador cumpridor (até à morte) que é João Vidal.

Não pretendemos aqui julgar em detalhe as opções de Daniel Moreira, que fez um trabalho cuidado na análise do filme e mostrou muita capacidade inventiva na composição para um quarteto de cordas. Queremos sobretudo pôr em evidência as dificuldades e as bifurcações possíveis da música para cinema. O compositor poderia sublinhar a presença do álcool (decisiva e premonitória no filme), ou a curiosa e obsessiva presença dos relógios. Ou poderia preferir dar motivos musicais a personagens (Daniel Moreira sugere que pode ir por aí no início, mas abandona esse caminho). Ou seja: as opções musicais alteram profundamente a percepção do filme, sublinham-lhe coisas diferentes. Mais do que isso: a música propõe, com o filme, ao lado do filme, no filme, uma nova audiovisão – a música também faz aparecer a imagem em movimento. E ainda mais sendo um filme pré-existente, a que a música pode dar um sentido novo e que o som pode trazer para o presente, coisa que a composição de Daniel Moreira sem dúvida fez. José Manuel Costa, director da Cinemateca Portuguesa, falou no início, antes da projecção e da música, das várias vidas deste filme mudo reencontrado (durante muito tempo e até 1993 julgou-se perdido) e recuperado agora com as tintagens originais, numa cuidada versão digital. A música original de Daniel Moreira deu-lhe agora ainda mais uma nova vida, com uma música que está fora da imagem, mas que entra pelos olhos adentro.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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